Título: Emendas opõem indústrias e revelam conflitos na Lei do Gás
Autor: Rittner, Daniel e Maia, Samantha
Fonte: Valor Econômico, 16/07/2007, Brasil, p. A2

Em fase final de discussão na Câmara dos Deputados, a Lei do Gás encerrou na semana passada a fase de recebimento de emendas parlamentares e teve 110 propostas de mudanças. Os termos finais do novo marco regulatório para o gás natural, que deverá ir a votação em agosto, opõem pesos-pesados da indústria. A definição de como será feita a outorga dos futuros gasodutos, os prazos de exclusividade que terão os construtores para explorar os dutos, a possibilidade de consumidores industriais comprarem gás direto dos produtores e até os conceitos usados no projeto têm sido alvo de forte atuação dos setores envolvidos.

Nas emendas, é possível ver essa disputa de interesses, e o assunto não promete caminhar a uma decisão de consenso. "Ninguém vai sair 100% satisfeito", admite o relator da lei, deputado João Maia (PR-RN), em meio às pressões quase diárias para acatar mudanças. "O que eu quero é pactuar um projeto com o máximo de satisfação para cada um dos envolvidos."

Uma das disputas está entre as distribuidoras de gás, que possuem contratos de concessão com os Estados, e indústrias interessadas em comprar o combustível diretamente do produtor.

De um lado, emendas do deputado Marcelo Guimarães (PMDB-BA) pedem melhor definição para conceitos como "gasodutos de transporte" e "gasodutos de transferência". Na redação atual, as distribuidoras argumentam que há referências indevidas aos usuários finais dos dutos. Isso gera confusão na infra-estrutura de movimentação do gás e invade a esfera de regulamentação estadual, segundo a Abegás, que representa as companhias de distribuição.

Caso a redação proposta no substitutivo seja aprovada, argumenta a associação, "haverá situação de afrontamento à propriedade dos Estados, o que coloca as distribuidoras e os investidores em situação de reavaliação dos investimentos". A Abegás dá um exemplo: sem mudanças no texto, um produtor de gás natural ficará habilitado a transportar o insumo de suas instalações de produção para estações de armazenagem ou processamento, como faz hoje, mas poderá consumir a matéria-prima em outros processos produtivos, passando por cima das distribuidoras e invadindo a regulamentação dos Estados. "A ser admitido o modelo proposto, é de se prever a insustentabilidade econômica das concessionárias estaduais de gás canalizado", diz Guimarães, ao explicar sua emenda.

Os grandes consumidores de gás têm interesse de depender menos dos demais agentes e apostam em conseguir, com a nova regulação, cuidar de transporte e até exploração do combustível. No projeto de lei já existe a figura do consumidor livre, que decide de quem comprar o gás, independentemente da distribuidora da região. Para o transporte do combustível, poderá optar por usar a estrutura da distribuidora, e pagar por isso, ou então construir dutos próprios.

"O gasoduto restrito não fere o mercado das distribuidoras, pois só vai ligar dois pontos", diz Marcos Vinícius Gusmão, vice-presidente da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace). Emenda do deputado Nelson Meurer (PP-PR) defende uma descrição mais clara do que consiste o mercado exclusivo das distribuidoras, medida que fortalece os grandes consumidores na defesa do mercado livre.

Outra reivindicação do parlamentar é que a concessão para a explorar reservas de gás possa ser dada também a consumidores. Dessa forma, eles poderiam explorar para consumo próprio, "mediante a promoção, por sua conta e risco, de gasodutos de transferência", afirma Meurer na emenda. A justificativa é buscar uma redução de custos da produção e melhorar o ambiente de competitividade. A Abrace diz ter potencial fomentador do mercado de gás. "A indústria pode ser uma grande investidora", reforça Gusmão.

Para o economista Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE), as divergências preocupam, porque podem acabar parando nos tribunais. Muitas são causadas, segundo ele, pela falta de conceitos claros. "Existe uma série de ambigüidades nas definições apresentadas, que podem conduzir a contestações e disputas legais", analisa Pires.

Governos estaduais, bem como setores que usam o gás em seus fornos industriais, como vidro e cerâmica, viram inicialmente com preocupação o capítulo redigido pelo relator para dar ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e ao Ministério de Minas Energia poderes especiais para implementar um plano de contingência em caso de racionamento. Muitos setores vêem a intenção do governo de privilegiar o fornecimento às termelétricas, em situações emergenciais, e temiam iam que o desejo de cada Estado fosse passado para trás nas discussões.

Maia assegura que o temor não tem fundamento, pois a Lei do Gás não define consumos prioritários. "Estou convencido que não se fere a autonomia dos Estados", ressalta, referindo-se tanto ao plano de contingência quanto às discussões com as distribuidoras.

A indústria química, porém, quer aproveitar as negociações da Lei do Gás para garantir suprimento da matéria-prima, em caso de contingência. O gás é usado no setor para a fabricação de produtos petroquímicos e fertilizantes. "A substituição do gás é praticamente impossível para nós, e a intenção é que a lei abra possibilidade do CNPE estabelecer um fornecimento preferencial de gás a quem o utiliza como matéria-prima", afirma Guilherme Duque de Moraes, vice-presidente da Associação Brasileira das Indústrias Químicas (Abiquim). Duas emendas iguais, apresentadas pelos deputados Eduardo Sciarra (DEM-PR) e Luiz Paulo Vellozo Lucas (PSDB-ES), atendem a essa solicitação.