Título: Os acordos nas investigações de cartéis
Autor: Gaban, Eduardo Molan
Fonte: Valor Econômico, 16/07/2007, Legislação & Tributos, p. E2

Com a publicação da Lei nº 11.482, em 31 de maio de 2007, passou a ser permitida a celebração de termos de compromisso de cessação de prática (TCCs) em investigações por prática de cartéis. Em outras palavras, torna-se legalmente prevista a possibilidade de acordo para suspender o andamento de processos administrativos no âmbito do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), a fim de que os agentes econômicos investigados possam se livrar de uma eventual condenação em troca de um compromisso de cessação de atitudes tidas como suspeitas e incursas nas hipóteses legais de incidência pertinentes à colusão em todas as suas modalidades. Para ser aplicável, o dispositivo ainda depende de regulamentação.

Publicada em 1994, a Lei nº 8.884 inicialmente previa esta possibilidade de solução alternativa à condenação para todas as formas de investigações de infrações contra a ordem econômica, incluindo-se a prática de cartéis. A título de exemplo, em 1995 foi celebrado um dos primeiros acordos para suspender uma investigação no setor de processamento de suco de laranja concentrado congelado, cujo processo foi definitivamente arquivado em 1999.

Com o intuito de reforçar o mecanismo de combate aos cartéis e por impulso das autoridades do SBDC, em dezembro de 2000 alterou-se a Lei nº 8.884, vedando-se expressamente a celebração de acordos em investigações de cartéis. Nesta mesma reforma parcial do diploma antitruste, novos meios de investigações foram incorporados, como, por exemplo, as ações de busca e apreensão, as inspeções e os acordos de leniência, os quais, nos anos subseqüentes, sustentaram uma significativa ampliação das atividades do SBDC no cenário jurídico-econômico nacional. Sem dúvida, a cultura da livre concorrência ganhou maior expressão nacional, em que pese calcada na lógica da coercibilidade máxima aos conluios.

É válido assentir que grande parte das técnicas que influenciaram esta amplificação das atividades no controle de condutas adveio da experiência americana, com a troca de informações com a Federal Trade Comission - a agência americana antitruste - e com o Departamento de Justiça, e das "soft laws" e "best practices" de organismos internacionais como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a International Competition Network (ICN) e a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), divisão da Organização das Nações Unidas (ONU) que se ocupa da matéria relativa à defesa da concorrência.

-------------------------------------------------------------------------------- As multas impostas às empresas podem, em última análise, acabar transferidas aos preços, ou seja, à sociedade --------------------------------------------------------------------------------

Entretanto, apesar de incorporar quase integralmente as influências estrangeiras, a possibilidade de acordos existente em outras jurisdições - como o "plea bargain" e o "consent decree" nos Estados Unidos - não fora incorporada, situação que passou a causar algumas externalidades negativas, fruto das diversas investigações abertas em vários setores da indústria nacional, como em outra ocasião foi o caso do setor de setor de processamento de suco de laranja concentrado. Este raciocínio ganhou força quando, em novembro de 2006, ainda na vigência da vedação à celebração de TCCs em investigações por prática de cartéis, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) negou a celebração de um acordo pretendido pelas partes investigadas com fundamento na razão formal da existência da vedação legal expressa para tanto, em consonância com a manifestação do Ministério Público Federal, mas não deixou de externar que, conforme os posicionamentos da Secretaria de Direito Econômico (SDE), da Procuradoria Geral do Cade e de uma série de pareceres de renomados juristas e economistas, o ideal para o mercado, para a indústria nacional e, conseqüentemente, para a sociedade, seria a celebração do referido termo. Meses depois, foi alterada a Lei nº 8.884 nesse sentido.

Interessante observar que, em razão das particularidades contextuais do Brasil, o SBDC enfrentou nos últimos anos um problema verdadeiramente paradigmático no combate aos cartéis: como conciliar a lógica desse combate, que prega a punição à maioria das espécies de auto-regulações de mercados, face a segmentos da economia historicamente afeitos a este tipo de dinâmica, inclusive com auxílio estatal até meados da década de 1990 - com o Conselho Interministerial de Preços e com setores que passaram por processos de privatização -, e que até os dias de hoje convivem com um elevado índice de informalidade? Temos como exemplo de auto-regulação a fixação de regras para a definição de preços ao longo de cadeias industriais, a vedação ao aliciamento de fornecedores e representantes comerciais de concorrentes e o respeito a delimitações geográficas de atuação.

Neste ponto de vista, o empresário brasileiro, que convive com uma considerável carga tributária, tem de enfrentar o ônus de processos por prática de cartel em razão da continuidade conferida a costumes históricos motivados, até o passado recente, pelo próprio poder público, que hoje coíbe tal comportamento, mas sem garantir a redução da informalidade e de práticas reprováveis que geram competição desleal à indústria e prejuízos aos consumidores.

O resultado deste cenário é a existência de vários processos contra empresas por prática de cartéis, independentemente do contexto econômico "in casu" e sem se identificar se a performance resulta de uma "naked practice" - conduta que não possui qualquer racionalidade econômica que não a extração de renda de parte da indústria para seus participantes por meio da redução da concorrência proveniente de acordos de fixação de preços, divisão de mercados, clientes etc. - ou de uma estratégia de auto-regulação histórica mantida, por exemplo, para fazer frente à informalidade que abarca o segmento. Todavia, antes de punir por punir, para demonstrar uma proficiência em aplicar a Lei nº 8.884, o SBDC tem estado sensível à atividade educativa que lhe é pertinente nos próprios termos desta lei.

Podemos crer, assim, que um grande ajuste legislativo foi realizado, porquanto a distribuição de estímulos nos mercados poderá permanecer, a depender da regulamentação que será estabelecida pelo Cade, de acordo com o espírito da Lei nº 8.884, em que se veda a prática de cartéis, mas não apenas pela via da condenação e da batalha para a confirmação judicial das decisões do Cade. Esta situação não poderia ser diferente diante do objetivo maior de atender aos interesses da coletividade, uma vez que as multas impostas às empresas por práticas de cartéis - e também os custos incorridos pelas mesmas nas demandas no âmbito administrativo e judicial - podem, em última análise, acabar transferidas aos preços praticados junto aos consumidores, ou seja, à sociedade.

Eduardo Molan Gaban é advogado da área de direito concorrencial do escritório Franceschini e Miranda Advogados

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