Título: O primeiro teste da Lei de Responsabilidade Fiscal
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 18/01/2005, Opinião, p. A9

A Lei de Responsabilidade Fiscal enfrenta seu teste decisivo em 2005. No ano passado, encerrou-se o mandato da primeira leva de prefeitos, cuja gestão decorreu já em plena vigência da lei. Suas contas devem estar em ordem, sob pena de prisão, inelegibilidade e multas. Do cumprimento estrito da legislação dependerá sua sobrevivência como um dos marcos legais mais importantes até hoje criados para moralizar as contas públicas. Ainda que sondagens preliminares apontem o fato de que centenas de municípios poderão não se enquadrar nos ditames da LRF, a vitrine da aplicação da lei se dará nos exames das práticas orçamentárias das capitais, que manipulam as maiores verbas e cujo exemplo de austeridade ou desleixo tem maior poder de irradiar-se politicamente e abrir precedentes virtuosos ou maléficos. Possivelmente, São Paulo, o município mais rico do país, não deve ser a única cidade a não se enquadrar nos marcos legais, e pode tornar-se um divisor de águas da legislação. Ela foi governada por Marta Suplicy, uma das estrelas mais reluzentes do Partido dos Trabalhadores, que gozava da confiança do presidente da República e que enfrentou uma batalha simbólica em torno do prestígio da administração federal petista. José Serra, que a substituiu, encontrou indícios de condutas ilegais, entre elas o cancelamento de empenhos de R$ 351 milhões, no apagar das luzes da gestão Marta, para despesas que teriam sido realizadas e para as quais não havia cobertura orçamentária, como determina explicitamente a LRF. A assessoria da ex-prefeita tem outra versão e diz que deixou R$ 376 milhões em caixa, para dívidas de curto prazo de R$ 375 milhões, segundo informa a "Folha de S. Paulo" em sua edição de ontem. Caberá ao Tribunal de Contas a palavra final sobre a questão. Marta nunca escondeu seu desejo de renegociar a dívida do município, sabendo que contaria com as portas abertas na administração federal, e ao que tudo indica não se preocupou, no final de seu mandato, quando tentava a reeleição, com uma quantidade razoável de gastos sem as cabíveis receitas. Em 30 de novembro, a então prefeita paulistana não pagou a parcela da dívida do município com a União, o que se repetiu novamente em 30 de dezembro. Seu sucessor quitou a dívida na sexta-feira passada. São Paulo oferece outro desafio para a LRF, referente ao enquadramento de sua dívida nos tetos fixados pelas resoluções do Senado. Eles foram relativamente generosos e estabeleceram que Estados e municípios desenquadrados nos limites de 200% da receita corrente, no caso dos governos estaduais e de 120%, no caso dos governos locais, teriam 15 anos, até 2016, para reduzirem, à razão de um quinze avos por ano, seus débitos. Marta Suplicy venceu a prefeitura com dívidas correspondentes a 192% das receitas e a entregou com 233%, sem ter feito todos seus esforços para atender o limite, de 178%. Isso apesar da exceção aberta pelo Senado, com a resolução 20, que suspendeu de janeiro de 2003 a 30 de abril de 2005 o cumprimento dos limites. Dessa forma, o novo prefeito paulistano terá, se o prazo for mesmo mantido, de realizar cortes de R$ 7 bilhões, ou quase metade de todo seu orçamento, para adequar-se à lei. Há poucos problemas de descumprimento dos limites - Rio Grande do Sul e Alagoas, com o Rio de Janeiro perto de estourar o teto e São Paulo um pouco acima dele, entre os Estados, e São Paulo, entre as prefeituras. De maneira geral, a ameaça da LRF e da Lei de Crimes Financeiros forçou pela primeira vez a maioria dos governantes das capitais e dos Estados a ser cuidadosa na gestão orçamentária. Há ainda um grande número de pequenos municípios que não entregaram sequer as prestações de contas, mas sua participação no bolo da arrecadação de recursos é pequena se comparada aos orçamentos das capitais. Além disso, Estados e municípios, com raras exceções, têm pago em dia suas dívidas. O enquadramento quase geral mostra que a LRF é viável e funciona. Seria um retrocesso inadmissível que por falta de punições e da aplicação rigorosa da lei todo esse esforço fosse posto a perder pelo exemplo de meia dúzia de prefeitos perdulários ou ambiciosos. Um dos principais objetivos da LRF foi acabar com a farra eleitoral das obras e a transferência de despesas irresponsáveis para os sucessores. A LRF foi bem concebida e, para sobreviver, precisa ser executada à risca, sem exceções que deixem pairar dúvidas sobre sua imparcialidade ou tempestividade.