Título: " O PMDB tem que construir a antítese do governo atual "
Autor: Heloisa Magalhães e Janaina
Fonte: Valor Econômico, 18/01/2005, Especial, p. A12

Para quem diz não ter pressa em se candidatar à Presidência da República, em 2006, o presidente regional do PMDB e ex-governador Anthony Garotinho faz discurso de quem está em campanha eleitoral. Em entrevista ao Valor, criticou duramente o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e disse que a estratégia que defende no PMDB é de criar o que classificou de "antítese" à proposta do governo atual. Na avaliação de Garotinho, Lula se omitiu ao não ter dado ênfase, nos primeiros anos de seu governo, à questão da reforma agrária, da reforma política e de uma melhor distribuição de renda no país. Defende que sairá vencedor na disputa, em 2006, o candidato que encarnar essa antítese e "demonstrar que o Lula é a continuidade perfeita de Fernando Henrique Cardoso". Para Garotinho, "só o tempo dirá" se em 2006 será o candidato do PMDB à Presidência ou ao Senado: "Tenho 44 anos e já ocupei quase todos os cargos importantes numa carreira política. Quero ser presidente de uma forma natural. Tenho um aliado a meu favor, o tempo". Nesta entrevista, Garotinho também lamentou o tratamento do governo Lula à governadora do Rio de Janeiro, Rosinha Matheus. Segundo ele, "não existe relação" entre o governo do Estado e o presidente da República. Diz que a Presidência não informa à governadora quando viaja à cidade: " É um total despreparo. Uma arrogância e também um pouco de deslumbramento", avalia. Garotinho atua como espécie de âncora da governadora, sua mulher. Ocupa a Secretaria de Governo e Coordenação, instalada na sala ao lado onde ela fica no Palácio Guanabara. Classifica a função como de "articulador". Até as eleições municipais era secretário de Segurança, área muito sensível para o fluminense assolado pela violência. Não se intimida ao ser indagado se deixou o cargo porque teria se sentido impotente. Minimiza dizendo "que não há hoje um traficante importante solto" e que uma a causa da violência nas grandes cidades é fundamentalmente fruto da má distribuição de renda. A seguir, os principais trechos da entrevista: Valor: Como o sr. avalia a relação atual entre o PMDB e o governo federal? Anthony Garotinho: Considero que o mais salutar para o PMDB, para o Brasil e para o governo é a relação que nós propúnhamos. Uma relação de independência, sem oposição radical e sem dependência de cargos. Quando os interesses do governo coincidirem com os da nação, dentro da visão majoritária do partido, votaremos a favor. Quando isso não ocorrer, teremos a liberdade para votar contra. Quando um partido ocupa cargos em uma administração, fica quase que condicionado a votar com as posições do governo. Depois de uma reunião em São Paulo, resolvemos tratar a imagem do PMDB junto à sociedade, elaborando um novo programa para o partido e para o país. Temos que criar uma nova forma do PMDB se relacionar com a população, realizando eleições primárias para a escolha do candidato do partido à Presidência da República e fazendo um recadastramento de todos os filiados, para que só fique no partido quem concordar com o novo programa pré-estabelecido. Valor: Como o quadro eleitoral vai se desenhar para 2006? Garotinho: Vamos ter uma candidatura de direita clássica, que poderia ser a do PFL, uma candidatura de direita, porém revestida de um certo glamour de mercado, do PSDB, uma candidatura de centro, que é a governista e uma de esquerda, representada pelo PSOL. Para preencher esta lacuna falta, portanto, uma candidatura de centro-esquerda. Esse é o perfil que nós queremos dar ao PMDB. O partido é muito forte, mas entendemos que será um trabalho difícil. Sabemos que vamos encontrar oposição principalmente por parte do governo, mas também dentro do próprio partido, onde algumas pessoas estão agarradas à imagem do que foi o PMDB, nos últimos dez anos. Valor: A anulação da convenção do partido e o fato dos ministros do PMDB terem continuado no governo não enfraquece a ala mais à esquerda do PMDB? Garotinho: A convenção não foi anulada. A notícia foi veiculada de forma parcialmente correta. Ao dar sua decisão, a ministra (do Supremo Tribunal Federal, Ellen Gracie), afirmou que não era competente para julgar o recurso. E sim, que o tribunal competente para julgá-lo era o de Brasília. A convenção contou os votos a partir da liminar concedida pelo presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, desembargador José Jeronymo Bezerra de Souza, que ao conceder a liminar, disse que achava um abuso a interferência da Justiça na vida de um partido político. Quando o mérito for julgado, em fevereiro, o PMDB vai ter validado a convenção e tomará as medidas necessárias para que esse projeto seja levado a diante. Valor: O que vai acontecer com os ministros que não deixarem o governo? Garotinho: Nós entendemos que os ministros não vivem em lugares abstratos. Suponhamos que a convenção seja validada e que o deputado Michel Temer confirme a sua disposição de comunicar ao ministro Eunício Oliveira, que, se ele não sair do governo, vai pedir o seu desligamento ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Ceará. O ministro é um excelente candidato ao governo do Ceará, e esse é o seu sonho. A realidade política vai impor uma certa acomodação a esses quadros partidários que são importantes para o PMDB. Valor: O sr. acredita que o governo federal teme a candidatura do PMDB à Presidência da República? Garotinho: Claro. O nosso partido tem os nomes mais fortes ao governo de 16 Estados. Hoje, o candidato no Rio Grande do Sul, seria Germano Rigotto, no Paraná, Roberto Requião, em Santa Catarina, Luiz Henrique, no Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, na Paraíba, José Maranhão, no Rio Grande do Norte, Garibaldi Alves, no Piauí, Mão Santa, em Goiás, Maguito Villela. Isso, numa eleição presidencial, com verticalização, significa que o partido teria muitas chances de ir ao segundo turno com o candidato do PT. Valor: O sr. poderá ser o candidato a presidente pelo PMDB?

O nome de nosso partido à Presidência passará pelas prévias. Lançaremos candidato em março de 2006"

Garotinho: Por enquanto não. Valor: Alguns partidos estão antecipando este debate eleitoral. O PFL, por exemplo, já lançou o seu pré-candidato. Esta discussão já existe dentro do partido? Garotinho: O nome de nosso partido passará pelas prévias. Lançaremos candidato em março de 2006. Dá tempo de viajar pelo país e articular os setores que perderam a esperança no governo Lula. Valor: O sr. vai deixar de lado os 15 milhões de votos na disputa à Presidência que conquistou em 2002? Garotinho: É cedo para definições. Nosso objetivo hoje é construir a antítese do governo atual e encontrar alguém que vá para o debate político demonstrar que Lula é a continuidade perfeita de Fernando Henrique Cardoso. O Brasil tem hoje uma tese neoliberal defendida pelo PT e pelo PSDB. Nós precisamos de modelo que mostre que há outro caminho. E isso estamos construindo. Não tenho pressa. Valor: Como o sr. avalia a pré-candidatura de Cesar Maia (PFL) à Presidência? Garotinho: Não acho que ele seja candidato a presidente. Ele se colocou apenas para ganhar projeção nacional. A estratégia do PFL é barganhar a Vice-Presidência do PSDB. Acho que ele é candidato ao governo do Estado. Valor: Se o sr. não for candidato à Presidência concorrerá ao Senado ? Garotinho: Não sei. Tenho uma tarefa a cumprir, que me foi dada pela governadora Rosinha Matheus, de fazer a articulação do governo. Farei isso até ser convocado para outra missão. Tenho 44 anos. Tenho um aliado, o tempo. Quero ser presidente de uma forma natural. Valor: Como o sr. avalia hoje o governo de Lula? Qual seria a proposta do PMDB? Garotinho: O governo Lula teria inicialmente que enfrentar cinco desafios, dos quais fugiu a todos. O primeiro seria colocar o sistema financeiro em seu devido lugar. Valor: Como assim? Garotinho: Não permitir que o sistema financeiro torne o país refém do seu poder. Temos uma dívida pública beirando R$ 1 trilhão. Os próprios credores e o próprio governo sabem que essa dívida é impagável. É preciso ter a coragem de reestruturá-la, garantindo o direito dos credores e fazer com que o país tenha fôlego para crescer com os seus próprios recursos. O que não pode é o país inteiro trabalhar, pagar cada vez mais impostos e o governo fazer superávits primários maiores e entregar tudo na mão dos bancos. Ao manter Joaquim Levy, braço direito de Malan (Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda), no Tesouro Nacional, e colocar Henrique Meirelles, representante autêntico do sistema financeiro internacional, no Banco Central, Lula deixou intocável o primeiro ponto, que é a relação do país com o sistema financeiro. Valor: Mas Lula assumiu em um momento que o mercado sinalizava muita incerteza com relação ao governo dele. Garotinho: Sim, mas o sistema financeiro mundial, a nova ordem mundial preconiza que nós façamos uma opção. Ou somos uma nação ou somos um mercado. Isso é tão gritante que no passado chamavam o Brasil de país do futuro. Depois passaram a chamar de país em desenvolvimento, depois de país emergente. Agora, nos chamam de mercado emergente. Não somos mais um país. O segundo grande desafio que Lula tinha que enfrentar era a reforma urbana. As periferias das grandes cidades se tornaram caldeirões de pobreza e de violência. A solução para isso é uma reforma agrária, técnica e ágil. A reforma agrária de Lula é tão ruim que ela consegue ser pior do que a do Fernando Henrique Cardoso porque eles politizaram um assunto que só tem saída se for técnico. Valor: Mas isso para reter a migração. E a situação hoje nas grandes cidades? Garotinho: Primeiro você retém a migração, depois você implementa um programa maciço de habitação popular para impedir a continuidade da favelização dos grandes centros. E começa a fazer uma política de geração de emprego e renda nessas áreas. O foco do Fome Zero é tão errado, por exemplo, que ele começou pelo interior do país. O miserável da cidade, que está desempregado, é menos miserável do que o que está no sertão? Quem está no sertão pelo menos ainda encontra uma galinha para comer, aqui não há opção, ele vai para o assalto. O terceiro ponto é que o presidente tinha que centrar o governo dele em uma política de distribuição de renda e riqueza. Ao optar pelo velho slogan "exportar é o que importa", ele fez com que o Brasil continuasse a crescer para os mesmos, o que aumenta a distância entre os mais ricos e os mais pobres, aprofundando um abismo. A política de exportação é importante, mas o que faz com que a renda e a riqueza se distribuam melhor no país é o fortalecimento do mercado interno. O quarto ponto que se esperava de um presidente progressista é que ele fizesse uma política para acabar com os donos de partidos. Os partidos representam quase sempre as mesmas oligarquias. O PT, que era um partido diferente, ao chegar ao poder disse: por que vou fazer agora que estou aqui? E se acomodou. Passados dois anos de governo, ainda temos dúvidas se neste ano o PT vai tentar bancar a reforma política necessária no país para ter uma disputa eleitoral equilibrada, de idéias, de princípios, e não esse fisiologismo que a gente vê pelo Brasil inteiro. O quinto e último ponto é que o governo tinha que ter a coragem de enfrentar o problema federativo. O poder no Brasil fica cada vez mais concentrado na União, esvaziando Estados e municípios. O que se vê hoje no Brasil é uma tragédia: 2.500 cidades não conseguiram cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Se fosse para valer ia faltar lugar nos presídios só para os prefeitos.

O poder no Brasil fica cada vez mais concentrado na União, esvaziando Estados e municípios "

Valor: Então por que a aceitação do governo Lula é tão grande? É o carisma do presidente? Garotinho: Esses pontos não são perceptíveis à população em um primeiro instante. Quem percebe isso são os formuladores de políticas públicas e os cientistas sociais. Lula tem alta popularidade porque tivemos um ano em que a macroeconomia no Brasil e no mundo foi bem. Mas mesmo para os parâmetros da América Latina, o Brasil não foi tão bem. A média de crescimento da América Latina foi de 5,5%, enquanto o Brasil cresceu 5%. Além disso, o nosso presidente talvez seja o primeiro na história do Brasil que administra pela televisão. Aparece todos os dias fazendo um pronunciamento a nação em todos os telejornais. Isso cria uma certa intimidade entre o eleitor e o presidente. Mas mesmo assim, ele continua com os mesmos percentuais de quando foi eleito. Valor: O sr. acha que o presidente tem beneficiado alguns Estados em detrimento de outros? Garotinho: Isso é um assunto menor. O Lula se acomodou e o que a gente percebe é a tirania do governo central contra Estados e municípios. Quando o país suga todos os recursos das cidades e dos Estados com a finalidade de fazer superávit primário para pagar os bancos, é difícil. Valor: Como anda a relação do governo do Rio com a União? Garotinho: Não existe relação. É a coisa mais anti-republicana que se pode imaginar. Valor: Mas a governadora assumiu batendo no presidente. Garotinho: Não. Não. Não. O presidente assumiu confiscando o dinheiro da governadora. O que ele não fez com a Marta Suplicy, em São Paulo. A Rosinha não assumiu batendo. Nós éramos da base do governo. Eu tinha sido convidado, inclusive, para ser ministro. Sempre critiquei a política econômica de Fernando Henrique Cardoso, mas nunca o ex-presidente deixou de pisar em solo fluminense sem comunicar ao governador. Jamais um ministro de qualquer área deixava de retornar um telefonema. É o mínimo de respeito que se exige. A governadora Rosinha às vezes leva meses para falar com um ministro. Toma conhecimento de que o presidente vem ao Rio pelos jornais. Valor: É briga política? Garotinho: Não. É despreparo, arrogância e um certo deslumbramento. Valor: O sr. acredita que os partidos estão se articulando para formar uma frente contra o sr. e seu candidato ao governo do Estado, em 2006? Garotinho: Eu não me considero tão forte que seja necessário uma frente para me derrotar. Isso tem muito tempo. Política com muita antecedência não dá certo. Valor: O sr. já foi secretário de Segurança, o calcanhar-de-aquiles do Estado do Rio. Por que o senhor saiu? Sentiu-se impotente? Garotinho: Você tem que ver as circunstâncias. Entrei no auge de uma crise em que 20 ônibus eram queimados por dia e existia um descontrole do aparelho de segurança pública. Em um ano reverti o quadro. Não há hoje um traficante importante solto. Hoje, temos uma equipe montada. Valor: O sr. acha que o União tem se omitido? Garotinho: Não existe política. Se o governo federal quisesse ajudar o problema da violência no Brasil, tinha que trabalhar nas fórmulas que vou sugerir: polícia de fronteira contra o crime organizado e, em segundo lugar, proibição da venda de armas no país. O crime organizado se combate com inteligência, com grupos especializados. Delinqüência, roubo de carro com arma de fogo, merecem um outro tipo de tratamento: inclusão social. Se não houver crescimento econômico no país, não existe política de segurança que dê certo.