Título: Alemanha acelera de novo, mas há riscos
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 20/07/2007, Especial, p. A20

No início do ano passado, a agência de empregos de Frank Lüngen tinha 500 vagas disponíveis. No fim do ano, a empresa que ele dirige em Rosslau, no leste alemão, tinha mil empregos a preencher. As companhias estão se queixando de uma carência de mão-de-obra qualificada, diz ele. Simplesmente não há bons profissionais para atender às necessidades.

O relato de Lüngen é típico da recuperação da maior economia da Europa. A Alemanha vinha claudicando por uma década depois que a euforia pós-reunificação deu lugar a uma enorme ressaca; um reaquecimento no fim da década de 90 foi seguido por desalento ainda mais profundo. Agora, o paciente está de novo corado.

O Produto Interno Bruto (PIB) cresceu quase 3% no ano passado, seu mais rápido ritmo desde 2000, e poderá repetir a dose em 2007. O PIB foi superior a 3% no primeiro trimestre (ver gráfico 1), apesar de um aumento de três pontos percentuais no imposto sobre o valor adicionado (IVA). Neste mês, a pesquisa da "Economist" junto a analistas de tendências revelou estarem melhorando as perspectivas para a economia alemã, com uma previsão média de crescimento do PIB de 2,8% no ano, sensivelmente mais alta do que os 2,3% previstos em maio.

Nos últimos anos, o principal motor de crescimento mudou. Quando a economia estava mais desaquecida, em 2002 e 2003, as exportações a mantiveram em funcionamento. Elas continuam bem - nas exportações de manufaturados, a Alemanha é novamente "Weltmeister", isto é, campeã mundial. Mas, já há algum tempo, maior vigor tem sido exibido pela demanda interna, principalmente investimentos. O setor de construção - que vinha segurando o crescimento na última década, após a farra pós-reunificação, mostrou uma recuperação.

Até mesmo os consumidores, que antes pareciam determinados a não abrir suas carteiras até o fim dos tempos, parecem estar aderindo à retomada. Segundo Klaus Fischer, da federação de varejistas em Berlim e Brandemburgo, a receita das lojas na capital e em seu entorno caiu durante 13 anos consecutivos até 2005. Desde então, elas estabilizaram. Em nível nacional também, as pessoas parecem um pouco mais motivadas em gastar, apesar do IVA mais alto. A confiança do consumidor reagiu bem.

O aquecimento do consumo é decorrente do mercado de trabalho. Mais alemães estão empregados e, após anos em que os salários não acompanhavam os preços, os contracheques estão finalmente engordando um pouquinho. Confusamente, a Alemanha tem duas definições de desemprego, e as duas taxas estão caindo rapidamente. Segundo a metodologia da Agência Federal do Trabalho (AFT), o desemprego era de 9,1% em junho, abaixo dos 10,8% um ano antes; pela definição da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é comparável com as estatísticas usadas por outros países, o percentual foi de 6,4% em abril, abaixo dos 8% de 12 meses antes. Esse percentual está bem abaixo dos 8,1% na França e não muito acima dos 5,5% do Reino Unido.

No ano passado, (segundo os números da AFT) mais 570 mil conseguiram emprego. O desemprego vem caindo ainda mais rapidamente, em parte porque algumas pessoas saíram das listas de desempregados, depois que o benefício-desemprego passou a ser mais intimamente vinculado à busca de emprego. Michael Burda, professor de economia na Universidade Humboldt, em Berlim, assinala que na Alemanha ocidental o número de desempregados raramente caiu tanto, ano sobre ano, desde o fim da década de 60.

A pergunta óbvia é se tudo isso é apenas uma retomada cíclica, ou se a Alemanha passou por alguma mudança estrutural mais profunda. A resposta óbvia - muito cedo para dizer, mas muito provavelmente um pouco de cada cosia - está provavelmente correta.

Iniciemos a argumentação com cautela. Se, como parece provável, a Alemanha está perto do pico de um ciclo econômico, seu histórico recente, embora animador em comparação com padrões anteriores, dificilmente pode ser considerado espetacular. Portanto sua taxa de crescimento sustentável seria ainda menos extraordinária. Thorsten Polleit, economista no Barclays Capital, em Frankfurt, estima que a tendência de crescimento vem caindo continuamente há décadas, e está agora em torno de apenas 1,5%. "Terá o potencial de crescimento alemão aumentado?", indaga. E ele próprio responde: "Não creio".

O rápido crescimento do emprego pode também ser visto de um ângulo menos positivo. Do piso no ciclo, em meados da década de 2003, o emprego cresceu muito menos rapidamente do que em períodos anteriores de reaquecimento. E grande parte do começo da alta do emprego assumiu a forma de "miniempregos" - ocupações em regime de meio-período com remuneração não superior a 400 euros (US$ 545) por mês, independentemente das horas trabalhadas (ver gráfico 2). Em contraste, o nível de emprego no mercado de trabalho "primário", onde são compulsórias as contribuições para a seguridade social, ainda está bem abaixo do que estava sete anos atrás (ver gráfico 3). O desemprego ainda afeta em torno de 4 milhões de trabalhadores. E o percentual nos Estados do leste é ainda o dobro dos registrados no oeste.

Apesar disso, alguma coisa estrutural mudou. Não há como ignorar algumas mudanças. Nas grandes lojas, a maioria das restrições ao horários de funcionamento foram eliminadas, embora continue ilegal a operação da maior parte do comércio aos domingos (estações ferroviárias, aeroportos e postos de gasolina são exceções importantes).

Um pouco menos evidentes são as mudanças nos balanços patrimoniais das grandes empresas alemãs. Basicamente, o capital costumava ser barato; mas o custo do dinheiro agora subiu. As garantias do Estado aos bancos do setor público deixaram de existir, eliminando um subsídio implícito a seus empréstimos. A entrada em vigor do acordo Basiléia 2, sobre as exigências de reservas de capital pelos bancos, obrigou-os a definir sua política de juros conforme o risco.

Muito mais vem sendo exigido também das participações acionárias, apesar de a gestão empresarial alemã ainda deixar algo a desejar. As instituições financeiras reduziram suas antigas participações em empresas industriais - que eram valorizadas mais por cimentar relacionamentos empresariais do que como ativos financeiros em si mesmos. Grande parte da complicada rede de participações societárias cruzadas na Alemanha já foi desmantelada. As participações acionárias remanescentes são as que prometem produzir um retorno razoável. Por outro lado, surgiu um novo e mais exigente tipo de acionista na forma de fundos de investimento em participações, que Franz Müntefering, ministro do Trabalho, que é social-democrata, certa vez qualificou de "gafanhotos".

As mudanças no mercado de trabalho foram tão importantes quanto as verificadas no mercado de capital. Em parte, elas são o produto de reformas implementadas três ou quatro anos atrás. Elas produziram todos aqueles empregos precários, tornaram mais exigentes os termos para merecimento do seguro-desemprego e melhoraram a vida de agências de emprego privadas, como a de Lüngen, e para agências de emprego temporário, como a suíça Adecco, a americana Manpower e a holandesa Randstad, atualmente a líder no mercado, bem como para as inúmeras concorrentes alemãs.

"Zeitarbeit", ou trabalho temporário, responde por 1% de todos os postos de trabalho, mas por talvez mais da metade dos empregos criados nos últimos 12 meses. Um exemplo da nova categoria de empregadores é a Time & More (T&M), especializada em assistência médica. A empresa tem cerca de 400 funcionários, dos quais 300 são enfermeiras; dois anos atrás, a T&M tinha 250. Seu fundador, Bernd Sydow, que vendeu sua empresa para a Adecco em abril, diz que ela fornece mão-de-obra para quase todos os hospitais em Berlim, assim como para hospitais em outras grandes cidades. Cerca de 60% das enfermeiras da T&M são chamadas para turnos de um a três dias, freqüentemente em cima da hora. Tendo reduzido seu quadro de pessoal permanente e não dispondo de reservas, os hospitais recorrem à agência à medida que suas necessidades oscilam. Sydow estima que cerca de 5% das enfermeiras de seus clientes vêm de um contingente externo.

Agências como as de Lüngen, em contraste, não empregam as pessoas para as quais encontram trabalho, como fazem as firmas no mercado do Zeitarbeit, operando apenas como intermediárias. No ano passado, essas firmas preencheram 62 mil vagas no mercado primário de trabalho - três vezes mais do que em 2002. Além de dirigir sua própria agência, Lüngen preside a maior entidade (há um punhado delas) que reúne as empresas de seu setor, cujo número de membros cresceu de 23, quando foi fundada, em novembro de 2003, para mais de 200.

Reformas na legislação explicam apenas parte das mudanças no mercado de trabalho. À medida que as companhias passaram a sofrer mais pressões, a remuneração dos trabalhadores foi achatada; com a intensificação da exigência de maiores retornos sobre o capital, o preço relativo da mão-de-obra teve de cair. O fato de os administradores de empresas poderem ameaçar levar suas empresas para a Europa Central, ou para mais longe ainda, fortaleceu o poder de barganha do capital. Em conseqüência, embora os lucros empresariais tenham aumentado sensivelmente, a remuneração dos trabalhadores melhorou muito menos. Nos últimos seis anos, a participação da massa salarial na renda nacional caiu de cerca de 60% para pouco mais de 55%.

Em parte, isso foi resultado de um afrouxamento do sistema de acordos salariais setoriais entre empregadores e sindicatos. Essa camisa-de-força nunca foi tão imobilizante quanto parecia: variações em torno de acordos salariais negociados centralizadamente já existiam em nível local e em empresas individuais.

Mas, os acordos salariais tornaram-se mais flexíveis, especialmente desde 2004. Martin Leutz, porta-voz do Gesamtmetall, federação dos empregadores do setor metalúrgico, fala de um "enorme avanço" na rodada de negociações salariais daquele ano, que permitiram às empresas alterarem os termos de remuneração, bônus e horas pactuados se isso garantisse ou criasse empregos ou mantivesse na Alemanha investimentos que de outra forma iriam para outros países - ainda que com a concordância de representantes dos trabalhadores. Cada vez mais companhias, especialmente na Alemanha oriental, decidiram ignorar o sistema centralizado.

Além disso, os acordos resultaram em pequenos aumentos salariais. De fato, os aumentos salariais efetivos ficaram aquém da inflação por vários anos. Neste ano, parecia que os trabalhadores poderiam, finalmente, reconquistar parte de seu antigo poder de barganha, pelo menos no setor metalúrgico. O IG Metall, maior sindicato no país, exigiu um aumento de 6,5% no fim de abril. Quando o Gesamtmetall disse não, o sindicato convocou greves de advertência.

O acordo final, do início de maio, cobre 19 meses, prometendo 3,9% no primeiro ano e mais 2,1% em 2008, que podem ser adiados por até quatro meses. Esse foi o melhor acordo negociado pelos sindicatos em vários anos. Com a inflação em 1,9%, trata-se de um aumento real nos salários. Mas não era um grande aumento; e o setor metalúrgico vem registrando um desempenho particularmente favorável, dada a alta na demanda por exportações da Alemanha. É improvável que em outros países os trabalhadores recebam aumentos nessas proporções.

Na ultramoderna fábrica da BMW em Leipzig, no leste alemão, são visíveis os efeitos desse novo mercado para o capital e para o trabalho. A BMW remunera seus empregados locais de acordo com o contrato nacional. Mas eles ganham menos em relação à remuneração extra paga aos que trabalham nas fábricas da BMW na Baviera, recebendo contracheques cerca de 25% menores. Há muita flexibilidade incorporada aos padrões de turnos de trabalho, explica Michael Janssen, porta-voz da companhia - envolvendo, por exemplo, a extensão de um turno em 30 minutos, a inclusão de turnos extras ou o rearranjo de diferentes turnos em cima da hora. Partes da fábricas podem ser funcionar 140 horas por semana (o trabalho aos domingos é ilegal).

Ao mesmo tempo, a BMW passou a usar muito do Zeitarbeiter. Há um total de 5,2 mil trabalhadores na fábrica, dos quais 2,5 mil são empregados da BMW. Do restante, cerca de 1,3 mil são temporários.

Poderíamos imaginar que os trabalhadores temporários, como as enfermeiras empregadas pela T&M, são convocados quando a demanda é grande e despachados para casa quando a demanda cai. Mas, segundo Janssen, essa não é a política da BMW. No decorrer dos próximos 10 a 15 anos, a companhia não necessitará do mesmo número de operários que emprega hoje. Em vez de contratar e despedir gente - "isso sempre cria problemas para o futuro" -, a companhia preferirá simplesmente sequer contratá-los. Isso poderia ser interpretado como uma referência à "Kündigungsschutz", a proteção legal contra demissões que pode encarecer a decisão de demitir trabalhadores, mas a ótica de Janssen é outra. "Não é política da BMW contratar e demitir", diz ele. "Nossa filosofia é assegurar empregos."

Talvez previsivelmente, as condições estipuladas para o Zeitarbeit produziram ressentimento entre trabalhadores temporários e alguma controvérsia na imprensa. Em larga medida, isso se deve ao fato de a remuneração ser mais baixa, ainda que (de um modo tipicamente alemão) os trabalhadores temporários sejam sujeitos a seus próprios contratos salariais negociados centralizadamente entre as agências e os sindicatos.

Não surpreende que essa pressão sobre os salários reflita-se em acentuada melhoria na competitividade da indústria alemã. Os custos unitários de mão-de-obra na indústria de transformação, que explodiram no início dos anos 90, estão agora de volta para em torno de onde estavam no momento da reunificação (ver gráfico 4).

Visto de outra maneira, porém, isso é reflexo tanto de uma velha como de uma nova virtude alemã. Nos dias que antecederam a união monetária, as empresas alemãs afiaram suas armas na dura pedra de um forte marco alemão. Na França e na Itália, desvalorizações do franco e da lira foram mascaradas como valorizações do marco alemão. Na zona do euro, porém, já não existem moedas nacionais, e portanto não é possível mudar as taxas de câmbio nominais. As taxas reais podem ser desvalorizadas - mas apenas mediante uma inflação mais baixa do que a de outros membros do clube. Desde o nascimento do euro, os alemães revelaram-se tão competitivos como sempre. Impossibilitados de desvalorizar, outros países tiveram desempenho menos bom.

Dito isso, seria um erro atribuir todo o vigor econômico alemão a sua competitividade exportadora resultante do aperto salarial. Por um lado, embora as exportações tenham mantido a economia andando quando a demanda doméstica estava fraca, e apesar de as vendas para o exterior terem se conservado aquecidas, investimentos e construção civil estão agora contribuindo mais para o vigor da economia. Por outro lado, variações nos preços relativos na zona do euro não explicam muita coisa.

Segundo pesquisa do Bundesbank, o crescimento de mercados externos é mais importante para explicar o crescimento das exportações alemãs do que sua competitividade de preços. A Alemanha está no negócio certo na hora certa: China, Índia, Rússia e outros países na Europa Central e Oriental estão crescendo rapidamente e demandando produtos em cuja fabricação a Alemanha especializou-se. De fato, as exportações do leste alemão para a Rússia e outros países europeus hoje superaram as exportações para os EUA.

As encomendas de máquinas-ferramentas, por exemplo, cresceram mais de 10% nos últimos três anos, e são as mais altas em 30 anos. Um estudo da Goldman Sachs envolvendo 25 países mostra que a correlação entre as importações de Brasil, Rússia, Índia e China e a vantagem comparativa da Alemanha (revelada pela estrutura de suas exportações) só não foi melhor do que nos casos dos EUA e da Finlândia. Países do sul e do centro da União Européia tiveram os piores resultados. Dirk Schumacher, do Goldman Sachs em Frankfurt, vê a Alemanha bem posicionada para se beneficiar do crescente interesse em tecnologia não agressiva ao meio ambiente.

Está claro que a economia alemã está agora em plena atividade, após anos de ociosidade. Considerando o choque (e os custos) da unificação - a absorção da antiga Alemanha Oriental incorporou 25% à população, mas pouca produção -, trata-se de um feito respeitável. Mas há o risco de excessivo otimismo sobre a recuperação.

Nos últimos anos, a economia mundial esteve favorável e a zona do euro acabaria tendo uma recuperação cíclica. Em algum momento, o ciclo fará uma inflexão. Não é difícil, também, listar fortes argumentos em favor de mais reformas estruturais. O sistema bancário continua fragmentado entre instituições privadas, estatais e cooperadas. O mercado de trabalho precisa de mais reformas.

Seria um erro deixar-se levar por entusiasmo incontido quanto à revitalização alemã, assim como foi errado desconsiderar o país no início da década. Alguma recuperação certamente viria a ocorre, e o setor privado alemão parece em boa forma. Mas, sem mais reformas, velhos obstáculos ao emprego e crescimento ainda poderão voltar. (Tradução de Sergio Blum)