Título: Gigantes da construção brigam por usina
Autor: Ribeiro, Ivo
Fonte: Valor Econômico, 25/07/2007, Empresas, p. B6

A bilionária licitação do projeto hidrelétrico Rio Madeira, em Rondônia, pôs em confronto aberto dois tradicionais grupos da construção pesada no Brasil: Odebrecht e Camargo Corrêa. Em jogo está um negócio avaliado em pelo menos US$ 13 bilhões, valor estimado inicialmente para erguer as duas hidrelétricas - Santo Antônio e Jirau - com potência para gerar 6,4 mil MW de energia a partir de 2012. O Madeira é considerado um dos maiores projetos hidrelétricos do mundo na atualidade e a maior obra da construção pesada no país.

As duas construtoras, que na última década se transformaram em fortes conglomerados industriais, estiveram presentes na maior parte das concorrências de obras de infra-estrutura no país nos últimos sessenta anos. Na área elétrica, em boa parte estiveram em parceria com as estatais do setor, tanto estaduais quanto federais. Os dois grupos e outros do setor da construção pesada na maioria das vezes estiveram lado a lado nas concorrências ou se compuseram depois, dividindo o empreendimento em partes. Isso ocorreu em várias obras de grande porte, como a usina de Itaipu, aeroportos e o metrô de São Paulo. Agora não poupam críticas, adjetivos e veneno destilado contra o outro.

O pivô da disputa entre Camargo e Odebrecht é o fato da construtora baiana estar associada à estatal elétrica Furnas para disputar o leilão de concessão das duas usinas do Madeira, previsto para outubro. A Camargo considera que essa união dá à concorrente uma boa margem de vantagem na hora de fazer o lance. "Nesse jogo, não pode ter participação do Estado, pois seus interesses de retorno são diferentes dos privados: a estatal pode abrir mão de ganhos e levar a melhor e não se sabe se seu sócio privado está sendo de alguma forma compensado", afirma João Canellas, diretor da Amazônia Madeira Elétrica Ltda. (Amel), empresa criada pela Camargo para ser o núcleo de um consórcio privado na licitação.

A Odebrecht vê as críticas adversárias como um "chororô" de quem não acreditava no projeto, chegou atrasado e agora quer se aproveitar dos frutos de quem acreditou e investiu antes da hidrelétrica se mostrar viável. "A associação (entre Odebrecht/Furnas) era de conhecimento público desde 2005 e não foi questionada por ninguém até recentemente, porque não acreditavam que a obra fosse sair do papel um dia", disse um executivo da companhia. "Quando o prato está pronto, todos querem comer", acrescentou.

A Odebrecht iniciou os estudos do Madeira em 2001, após receber aval da Aneel. Uniu-se a Furnas Centrais Elétricas, uma subsidiária da Eletrobrás, holding do governo federal para o setor que tem capital misto e ações negociadas em bolsa de valores, para fazer os estudos iniciais, que envolvem inventário do rio e da região. A parceria se estendeu para o estudo de viabilidade do empreendimento.

Até esse ponto a parceria é vista com naturalidade, pois se tornou fato corriqueiro na maioria dos projetos do país depois que o governo perdeu a capacidade de investimento. Dezenas de estudos em andamento envolvem Eletrobrás, Furnas, Eletronorte e Chesf com grupos privados, entre eles Camargo Corrêa e Odebrecht. Nessa fase, os custos são rateados pelas duas partes e depois ressarcidos pelo vencedor da concessão.

"Mas como a obra do Madeira tem porte e valores em proporções enormes, a participação do Estado na licitação cria um desequilíbrio pesado", observa Canellas. O projeto tem proporção só inferior a Itaipu, binacional erguida por Brasil e Paraguai nos anos 70. No consórcio para disputar o Madeira, firmado em 2005, conforme informação da Odebrecht, o grupo baiano tem tem 51% do capital e Furnas, 49%.

Segundo a Camargo Corrêa, o índice de retorno pretendido no empreendimento, pelo fato de uma estatal trabalhar com taxas mais conservadoras e até mesmo com intenção de baixar o preço da energia na ponta, seria inferior ao de companhias privadas que sempre se pautam no patamar do custo do dinheiro. "A Aneel estabelece 10% para as obras do setor", informa o executivo.

A licitação do projeto Madeira deve seguir os últimos leilões de energia nova do governo, que estabeleceram um preço teto por MWhora. Com esse referencial, os interessados fazem os lances, com diferenciais mínimos fixados entre um e outro. Sai vencedor quem ofertar o menor valor (leilão reverso). Os grupos privados costumavam trabalhar com taxas de retorno entre 12% e 15% em seus projetos hidrelétricos, mas a entrada das estatais nos últimos leilões, de dezembro de 2005 e outubro de 2006, forçou esse percentual para baixo, entre 10% e 11%, porque, em alguns casos, sozinhas, trabalharam com taxas de 5%.

Outro fator que ajudaria a desequilibrar a competição em prol do consórcio Odebrecht/Furnas, segundo a Camargo, é que a estatal detém um grande acervo de ativos em hidrelétricas e que o mesmo está todo praticamente amortizado. "Isso ajuda a diluir os custos da empresa e numa disputa como essa qualquer centavo faz muita diferença".

O valor do investimento encheu os olhos de grupos nacionais e estrangeiros a partir do início deste ano. O franco-belga Suez, controlador da Tractebel, informou que vai participar sozinho da licitação. Outros grupos também se manifestaram e distribuidoras elétricas que viam a obra com ceticismo já se movimentam para a disputa.

Os interessados só apareceram em janeiro, depois que o governo encampou o Madeira como projeto estratégico em seu programa de crescimento do país, o PAC, e exigiu esforço de todos os órgãos envolvidos para acelerar a liberação da licença ambiental e a execução das obras das duas hidrelétricas. No fim de março, a Aneel aprovou o estudo de viabilidade técnica e econômica realizado por Odebrecht/Furnas.

O complexo Madeira, instalado em dois pontos separados por pouco mais de 100 quilômetros no rio do mesmo nome que nasce nos Andes da Bolívia e vai desaguar no rio Amazonas, depois de percorrer 1.450 km, passou a ser apontado como peça-chave do sistema elétrico brasileiro na oferta futura de energia. Erguer as usinas é visto hoje como fundamental, para evitar um possível novo apagão de eletricidade no país depois de 2011, até mesmo por empresas do setor que até bem pouco tempo criticavam abertamente a obra e seus custos. Seu estudo de viabilidade encerrou-se em dezembro de 2004 e abril de 2005, com a entrega das conclusões à Aneel.

Um dos fatos que explicam esse confronto de titãs brasileiros da construção e engenharia é o fim dos aproveitamentos hidrelétricos de médio porte nas regiões Sul e Sudeste do país. O novo mapa de expansão da oferta de energia, conforme apontam especialistas do setor, está na Amazônia, onde há potencial para instalar grandes hidrelétricas nos rios da região. Além do Madeira, há outras grandes hidrelétricas: Tapajós (12 mil MW), que vem sendo estudada por Camargo Corrêa e Eletronorte, e Belo Monte (11 mil MW), com parceria de Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez mais Eletrobrás. Podem ser citados ainda os de Marabá (2,2 mil MW) e Ji-Paraná (1 mil MW).

Ocorre que, quando as empresas foram despertadas para a obra do Madeira, constataram que não só elas não poderiam se associar a Furnas, que tem trabalhado no projeto, mas a nenhuma outra empresa estatal vinculada à Eletrobrás. A associação com Furnas, afirma a Camargo Corrêa, amarra todo o grupo Eletrobrás a uma fidelidade com Odebrecht. A cláusula impede que outras subsidiárias, como Eletronorte e Chesf, além da própria holding, se associem a outros consórcios, antes e depois da licitação, por cinco anos.

-------------------------------------------------------------------------------- Para Camargo Corrêa, união com estatal tira isonomia do leilão, pois desequilibra o jogo de forças na competição --------------------------------------------------------------------------------

A Odebrecht confirma a existência dessa exclusividade, mas argumenta que junto com ela a estatal e sua controladora Eletrobrás obtiveram informações estratégicas de todo o projeto e que, aberta essa possibilidade, os concorrentes poderiam, de posse dos planos da concorrente, elaborar propostas com preços "competitivos" para vencer e depois ajustar suas taxas de retorno ao se unirem a Furnas ou a outra subsidiária da Eletrobrás. A Odebrecht diz que tem um contrato juridicamente embasado que lhe garante a ida ao leilão junto com Furnas e que, caso venha a perder, ambas estão impedidos por cinco anos de se unirem ao vencedor.

A Camargo rebate a defesa da concorrente baseada em pareceres pedidos a renomados juristas de Direito administrativo, concorrencial e contratual. "A conclusão [deles] é que é ilegal esse tipo de acordo, pois privilegia um participante em detrimento de outros, uma vez que o peso do Estado é decisivo nesse caso", afirma Canellas. Ele diz que a empresa estatal dispõe de informações que outros não têm e isso altera a estratégia dos demais competidores.

Os pareceres levantados pela Camargo foram encaminhados à ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, e ao Ministério de Minas e Energia (MME). "Esses pareceres, não sendo acatados na esfera do leilão, poderão ser tomados na esfera judicial, uma vez que está eivado de irregularidades o consórcio original", observa o executivo. Para ele, a questão tem de ser clareada agora e já ficar definida a isonomia do leilão no edital, a ser lançado no início de agosto. Nesta semana, informou ele, o grupo pretende encaminhar outros pareceres ao governo.

A Camargo aponta ainda outro fator desfavorável nessa disputa: o contrato de exclusividade da Odebrecht com três fornecedores das turbinas, tipo bulbo, que vão ser instaladas nas hidrelétricas. Dois deles têm fábricas no Brasil - Voith Siemens e Alstom. A VA-Tech fabrica na Europa. Por causa disso, afirma, os outros competidores terão de recorrer a outros fornecedores no exterior, para importação das turbinas. "Isso nos leva a sair de cara com uma desvantagem de R$ 8 a R$ 10 por megawatt-hora no preço da energia gerada a ser ofertado no leilão", diz o executivo da Amel. As turbinas têm taxa de alíquota para entrada no país de 14%.

Uma proposta aventada para minimizar isso, indica a Camargo, seria uma licitação em separado só para os fornecedores de equipamentos, uma vez que essa parte do projeto representa 30% do seu custo total. O grupo vencedor seria o fornecedor do consórcio vitorioso da concessão. "Seria um mecanismo legal que cria competitividade e assegura participação para a indústria nacional, gerando empregos no país".

A Odebrecht diz que levantou propostas com mais de uma dezena de fornecedores nacionais e estrangeiros durante longo tempo e alega que seus adversários poderiam ter feito o mesmo. "A americana GE e a argentina Impsa atuam no mercado brasileiro. Além disso, há a Usiminas Mecânica, a Weg, Dedini, a Bardella", exemplificou um especialista do setor ouvido pelo Valor.

Sentindo-se prejudicada, conforme informações dos bastidores da disputa, a Camargo Corrêa faz seguidas injunções junto ao governo federal. Seu argumento: a participação de Furnas e a amarração do grupo Eletrobrás à Odebrecht tiram a competitividade dos concorrentes. A companhia sinalizou que não haveria disputa, como é do interesse do governo, para baixar o preço da energia gerada. Isso levou o ministro de Minas e Energia, Nélson Hubner, a anunciar que o governo decidiu afastar as estatais dessa etapa. Ele disse que a Eletrobrás só participaria depois do leilão, até 49%, juntando-se ao consórcio vencedor da licitação.

Essa decisão criou um problema que pode complicar o andamento da licitação, alvo de outras tantas complicações - da obtenção das licenças ambientais a reclamações de impacto ambiental do governo da Bolívia, cuja fronteira com o Brasil fica a 85 km de Jirau, segunda usina a ser construída.

O desafio do governo é encontrar saídas para atrair competidores. Recursos do BNDES e a participação do seu braço BNDESPar foram lançados como alternativas para mitigar reclamações de concorrentes da Odebrecht. Mas são vistos como paliativo.

Segundo fontes, o governo caminha para desistir dessa idéia e busca outros caminhos, porque até o momento nenhuma brecha foi encontrada no termo de compromisso entre Odebrecht e Furnas que possibilite cancelá-lo. O argumento de que Eletrobrás e Furnas são empresas de economia mista e por isso não teriam de fazer uma chamada pública para escolher seu parceiro para participar da licitação parece não convencer os dirigentes da Camargo. Embora Furnas seja regida pelas regras da Lei de Licitações 8.666, como a Petrobras, a visão é que esse acordo, às luzes da Constituição e da Lei de Licitações, numa obra dessa magnitude, de interesse público, configura-se como ilegal e desconfortável. "Isso precisa ser curado antes de ir ao leilão", observa Canellas.

O TCU poderá pedir ajustes no modelo de edital para as hidrelétricas do Rio Madeira caso note a existência de algum privilégio para empresas de capital nacional. De acordo com técnicos do órgão ouvidos pelo Valor, não há problemas no fato de empresas públicas participarem de consórcios para as obras no Madeira. Este fato isolado não significaria um favorecimento por parte do governo. Mas, se houver no edital algum item determinando qualquer tipo de prioridade a empresas privadas, o TCU poderá pedir a revisão deste pré-requisito ao MME para garantir igualdade de condições na disputa.

Sobre a participação de Furnas num dos consórcios, um técnico que fará a análise das obras no Madeira afirmou que, em princípio, não haveria problema. "Furnas tem personalidade jurídica própria. A empresa não faz parte do governo", ressaltou. Ele explicou que, se Furnas cometer uma irregularidade, quem responde é o patrimônio da empresa, e não o governo federal. O mesmo vale para seus ganhos: são dela, e não do governo. "O simples fato de ela ser uma empresa de capital público não demonstra direcionamento. O que define são as condições da competição, presentes no edital."

Técnicos do TCU disseram que essa situação de Furnas - a princípio apta para a disputa - não impede que empresas de capital privado reclamem contra a sua participação. Essas reclamações serão analisadas pelo tribunal. O edital para as hidrelétricas, que será disponibilizado ao público no próximo mês, passará por consulta pública sobre as regras do edital e análise prévia por parte do TCU.

Uma saída, em princípio, seria o governo negociar com Odebrecht a eliminação do vínculo de todo o sistema Eletrobrás ao seu consórcio. E a Odebrecht parece não opor resistência a essa idéia. Com isso, as outras subsidiárias da Eletrobrás, como Eletronorte e Chesf, poderiam se juntar aos demais competidores interessados no Madeira. "O problema é que essas companhias não possuem indicadores financeiros que satisfaçam possíveis financiadores do projeto", afirma uma fonte do setor. E isso não parece ser o caso de Furnas, que tem bom desempenho econômico e perfil financeiro saudável.

O valor do estudo de impacto ambiental feito por Odebrecht e Furnas também é questionado. Caberá à Aneel calcular o reembolso a que terá direito o consórcio, caso não consiga vencer o leilão. Odebrecht informa que foram gastos R$ 150 milhões e que o valor total poderá chegar a R$ 200 milhões. Segundo a a empresa, a Aneel já reconheceu R$ 120 milhões das despesas. Informações de concorrentes apontam que a agência aprovou R$ 42 milhões. (Colaboraram Maurício Capela, de São Paulo, e Juliano Basile, de Brasília)