Título: Público e privado
Autor: Vieira, Maria Cândida
Fonte: Valor Econômico, 25/07/2007, Caderno Especial, p. F1

As empresas brasileiras que investem em responsabilidade social terão incentivos e isenções fiscais superiores a R$ 1,1 bilhão este ano, de acordo com dados da Secretaria da Receita Federal (SRF), valor muito próximo ao da proposta de orçamento de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, para 2008. Embora esses recursos representem apenas 1,09% do total de R$ 52,7 bilhões de desonerações previstas para 2007 e de 0,048% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, os benefícios geram discussões porque envolvem imagem e marca de grandes corporações que realizam ações sociais.

Esses incentivos e isenções fiscais para as empresas são basicamente deduções do Imposto de Renda (IR) para as áreas de cultura como artes cênicas, literatura, música e outras, previstas na Lei Rouanet; obras audiovisuais independentes, estabelecidas na Lei do Audiovisual; Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente; doações para entidades sem fins lucrativos e doações para institutos de ensino e pesquisa.

"Incentivos e isenções fiscais provocam polêmica porque os recursos são públicos e precisam ter caráter distributivo para chegar efetivamente aos que mais precisam", afirma Anna Maria Peliano, diretora de estudos sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que coordenou a pesquisa "A iniciativa privada e o espírito público: a evolução da ação social das empresas privadas no Brasil", que teve sua segunda edição publicada em julho de 2006.

A pesquisa constatou que somente 2% das empresas utilizaram benefícios fiscais em 2004, ano em que os dados foram colhidos, bem abaixo dos 6% verificados em 2000, ano da primeira edição. O estudo envolve um universo de 871 mil empresas, das quais 69% realizam ações sociais. A utilização dos incentivos e isenções é diferenciada, de acordo com o porte da companhia. Entre as com até dez empregados, o uso desses benefícios atinge 0,7%, enquanto entre as com mais de 500 empregados chega a 17%. Do total de empresas, 71% tinham até dez empregados, 22% até cem empregados, 3% até 500 e 1% com mais de 500.

O universo de empresas que podem lançar mão de isenções e incentivos para ações sociais é restrito porque a maioria dos benefícios fiscais incide sobre o lucro real, enquanto quase 80% das companhias estão no regime de lucro presumido ou Simples, excluídas dessas desonerações, avalia Eduardo Pannunzio, da área de marco legal e políticas públicas do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife). A entidade aglutina os 106 maiores investidores sociais privados do país, que têm cerca de 70% de suas ações voltadas para a educação, e deverão investir este ano perto de R$ 1 bilhão na área social. Segundo ele, das 871 mil empresas brasileiras apenas 178 mil estavam no regime de lucro real, ou seja, tinham IR a pagar.

Para as empresas que podem utilizar esses benefícios, há dois mecanismos de estímulo na área cultural: a Lei 8.313/91, chamada de Lei Rouanet, e a Lei nº 8.685/93, mais conhecida como Lei do Audiovisual, resume Pannunzio. Pela primeira, é possível abater integralmente o valor das doações feitas ao Fundo Nacional da Cultura (FNC) até o limite de 4% do Imposto de Renda devido. Com a Lei do Audiovisual, voltada para as obras cinematográficas brasileiras de produção independente, o abatimento não pode superar 4% do IR devido nos patrocínios, enquanto na hipótese de investimentos, o valor poderá ser integralmente abatido como despesa operacional, até o limite de 3% do IR a pagar.

As empresas podem ainda abater 1% do IR para doação aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente (FDCA), que existem nas áreas federal, estadual e municipal, bem como deduzir, para fins de apuração do lucro real e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), as doações para organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips). Neste caso, a doação é limitada a 2% do lucro operacional da empresa.

"Muitos empresários fazem doações sem recorrer aos incentivos fiscais, porque as exigências são complicadas, o que pressupõe estrutura nas empresas. É preciso que tudo esteja bem estruturado para que no futuro a empresa não tenha dor de cabeça com a Receita Federal", afirma Pannunzio.

Em princípio, Marcos Fernandes, professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), não é contrário a incentivos fiscais, mas considera que "falta transparência, clareza e avaliação de eficiência dessas políticas", com o Estado deixando de investir esses recursos em educação, saúde e saneamento básico. Segundo ele, há uma confusão no Brasil entre marketing social e cultural e programas efetivamente de responsabilidade social. "Não há espaço para ingenuidade quando se discute responsabilidade social. A lógica do capitalismo é o lucro. As empresas de capital aberto só vão adotar política social, ambiental e cultural quando forem forçadas pelos consumidores, que vão rastrear a origem dos produtos. Os acionistas serão obrigados a fazer isso para enfrentar a concorrência", avalia.

Atuando no mercado internacional, a Petrobras, oitava empresa mais respeitada pela avaliação do Reputation Institute e classificada no nível A+ da Global Reporting Initiative (GRI), categoria com balanços sociais e ambientais auditados por empresas externas e independentes, investiu R$ 591 milhões em projetos sociais, ambientais, culturais e esportivos em 2006, aumento de 14,5% na relação ao ano anterior. Desse total, R$ 253 milhões (44,6%) são oriundos de incentivos fiscais.

Os investimentos sociais da empresa chegaram a R$ 176 milhões, dos quais R$ 48,5 milhões para os fundos de infância e adolescência de 222 municípios, envolvendo 327 projetos e 121.336 crianças e adolescentes. Os outros R$ 127,4 milhões são recursos próprios. Na área cultural, a Petrobras investiu R$ 288 milhões, dos quais R$ 204,4 milhões de incentivos fiscais da Lei Rouanet. "Os patrocínios da Petrobras não são marketing cultural, caso contrário a empresa não investiria, por exemplo, no projeto Acalanto, que registra os cantos indígenas no sul do Pará", diz Eliana Costa, gerente de patrocínios.

"É necessária uma revisão nas leis de incentivos fiscais, que devem ter diretrizes mais claras para utilização do dinheiro e da distribuição da produção em regiões carentes", defende Rodolfo Gutilla, diretor de assuntos corporativos e relações governamentais da Natura. Com essa revisão se evitariam, por exemplo, "situações em que empresas invistam R$ 200 mil em um projeto e apliquem R$ 2 milhões em sua divulgação, o que caracteriza um interesse maior em promover a sua imagem", afirma. A empresa de cosméticos e produtos de higiene e limpeza investiu R$ 38,1 milhões em responsabilidade corporativa, dos quais R$ 28,8 milhões de recursos próprios e R$ 9,36 milhões de incentivos fiscais e recursos arrecadados pelas suas consultoras em todo o país.

Para Eduardo Saron, superintendente de atividades culturais do Itaú Cultural, os incentivos são fundamentais na área cultural, porque permitem ações mais organizadas e também auxiliam na criação de política pública neste campo. Em 2006, os investimentos em projetos sociais e culturais do Itaú Holding somaram R$ 110 milhões. Desse total, R$ 28,6 milhões foram aplicados no Itaú Cultural, dos quais R$ 21,7 milhões da Lei Rouanet. Na Fundação Itaú Social, que tem patrimônio de R$ 370 milhões, os investimentos chegaram a de R$ 33 milhões, mas não há uso de isenções. Em 2007, de acordo com Ana Beatriz Patrício, superintendente da fundação, a previsão é de investimentos de R$ 40 milhões, com foco em educação.

Os investimentos do Grupo Gerdau em responsabilidade social totalizaram R$ 49 milhões no Brasil em 2006, dos quais R$ 15 milhões da Lei Rouanet e isenções do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) em atividades culturais nos Estados do Rio, Minas Gerais e Rio Grande do Sul; R$ 7 milhões foram para fundos dos direitos da criança e do adolescente, R$ 15 milhões de doações para Oscips e o restante de recursos próprios. "Os incentivos fiscais favorecem o papel social que é necessário empreender no Brasil", diz José Paulo Soares Martins, diretor do Instituto Gerdau.

No Banco Real, os investimentos em projetos sociais, culturais e na área de educação chegaram a R$ 44 milhões em 2006, com 23% desse total baseados em incentivos fiscais. Um dos programas valoriza talentos da terceira idade. A intenção não é só premiar os talentos, segundo Laura Outramare, superintendente de desenvolvimento sustentável, mas fazer uma campanha de respeito aos idosos. Por isso, o investimento em mídia é maior do que projeto em si, embora ela não divulgue os valores. "Faz sentido, porque pretendemos mudar um comportamento social e trazer respeito para os idosos. Essa é a essência do projeto e a mídia para isso é fundamental."