Título: O valor das moedas
Autor: João Luiz Mascolo e João Moreira Salles
Fonte: Valor Econômico, 18/01/2005, Finanças, p. C4

Os recentes movimentos nas taxas de câmbio internacionais trouxeram à tona, mais uma vez, a multiplicidade de opiniões que, ironicamente, caracteriza a profissão do economista. Os debates, como sempre, variam de foco, com alguns alertando para os riscos e oportunidades abarcados numa desvalorização do dólar, e outros tratando das evidências empíricas que sustentam que não há como prever o comportamento das moedas. Este último ponto, porém, é de pouco interesse prático, uma vez que os participantes do mercado não podem se abster de tomar posições em relação ao valor futuro das moedas em que operam. Exportadores e importadores, por exemplo, devem escolher o momento ideal para o fechamento de câmbio a cada nova transação. Às demais empresas e bancos, cabe optar por proteger ou não suas dívidas, ou patrimônios, denominados em diferentes moedas. Portanto, é essencial encontrar a melhor maneira de determinar a dinâmica das taxas de câmbio, por mais imperfeita que esta caracterização possa vir a ser. Uma variável-chave, para isso, é a posição do país em seu balanço de pagamentos. Assim como na contabilidade empresarial, o balanço de pagamentos é caracterizado por duas contas, a conta corrente e a conta capital e financeira, que, pelo método das partidas dobradas, devem se igualar num ambiente em que os preços são determinados pelas forças de mercado, ou seja, quando há um arranjo de câmbio flutuante. E, como em qualquer demonstração financeira, a saúde econômica do país que pode ser depreendida a partir do balanço de pagamentos depende, fundamentalmente, de como este é analisado. Grande parte das diferenças de interpretação vistas nas análises técnicas divulgadas nas últimas semanas, após a queda acelerada no valor do dólar frente às principais moedas internacionais e da reversão desta tendência nos primeiros dias de 2005, está ligada exatamente a percepções alternativas quanto ao diagnóstico dos resultados das contas externas dos países envolvidos. Para entender melhor este ponto, devemos simplificar a miríade de opiniões destes especialistas, classificando-as em dois grandes grupos, conforme seus entendimentos em relação ao desempenho do balanço de pagamentos: os que acreditam na dominância da conta corrente e os que sustentam uma dominância da conta capital.

Mas antes de adentrarmos este assunto, vale a pena fazer uma rápida observação. Há certa tendência na cobertura jornalística a olhar o comércio internacional, representado pela balança comercial, pela ótica do exportador. Neste sentido, um resultado positivo, com o país exportando mais do que importando, seria bem percebido pela sociedade em geral. O inverso, com importações superiores a exportações, equivaleria a um problema, possivelmente porque, do ponto de vista puramente numérico, este resultado vem acompanhado de um sinal negativo. Esta mesma apreciação mercantilista se aplicaria à conta corrente como um todo, que inclui, além da balança comercial, a balança de serviços (turismo e viagens internacionais, transportes, seguros, rendas do capital etc.) e as transferências unilaterais. Porém, não há racionalidade nesta opção pelo exportador. Há que se lembrar que o importador também gera empregos, preenche exigências dos consumidores locais e, desta forma, ajuda a conter eventuais pressões inflacionárias e a elevar a qualidade dos produtos nacionais. Ou seja, pode-se afirmar que os importadores cumprem uma função social tão relevante quanto aquela que é promovida pelo exportador. Quando o governo opta por defender um destes participantes de mercado, através de manipulações da taxa de câmbio, este acaba distorcendo os importantes sinais enviados pelo sistema de preços e minimizando a taxa de crescimento do país. Por exemplo, quando o governo decide proteger os exportadores com uma taxa de câmbio desvalorizada, ele acaba, também, reduzindo os salários reais da população e, desta forma, diminuindo o bem-estar da sociedade como um todo, que é forçada a passar por um processo de contenção de despesas. Ao invés de escolher vencedores no comércio internacional, seria muito melhor, do ponto de vista da eficiência econômica, avançar nas reformas tributária, trabalhista e institucional, como proposto no interessante e fundamental documento divulgado recentemente pela Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, sob a supervisão de Marcos Lisboa.

O relevante é quais são os efeitos da reversão do fluxo internacional no retorno dos investimentos

Dito isso, podemos retomar agora a análise da dinâmica das variáveis cambiais. Como se sabe, a teoria clássica de economia aberta, em sua forma mais elementar, considera as contas externas do país como se estas fossem determinadas pelos fluxos comerciais. Ou seja, o resultado da conta corrente seria determinado pelas trocas de bens e serviços entre países, e os fluxos financeiros, expressos na conta capital, seriam apenas o resíduo que fecharia as contas do balanço de pagamentos. Neste contexto, o conceito de déficits gêmeos, termo cunhado nos anos 1980 por Martin Feldstein para explicar o efeito dos déficits públicos sobre a conta corrente, seria considerado quase como uma verdade absoluta da teoria econômica: o governo gasta mais do que arrecada, gera déficits e, portanto, um excesso de demanda agregada, que acaba sendo suprido por um aumento nas importações. Os déficits fiscais também elevariam o endividamento público, provocando uma alta nas taxas de juros para atrair mais capital internacional, determinando, desta forma, o equilíbrio no balanço de pagamentos. Como mostra o gráfico número 1, isto parece explicar razoavelmente bem o que aconteceu nos Estados Unidos ao longo dos Governos de Ronald Reagan e George Bush. Porém, quando se tenta explicar a dinâmica dos anos 1990 sob esta mesma ótica, encontra-se um problema. O Governo Democrata de Bill Clinton, como se sabe, teve um comportamento fiscal diametralmente oposto àquele adotado pelos Republicanos na década anterior. A partir de 1992, o setor público passou por um importante remanejamento, que culminou numa substancial redução do quadro de funcionalismo e um surpreendente ajuste fiscal, passando de um déficit de cerca 5% do PIB para um superávit nominal de quase 2% do PIB - este número chegou a 3% quando se olha para o período 12 meses terminados a cada trimestre. Pelo modelo dos déficits gêmeos poder-se-ia supor que tal reversão nas contas públicas seria acompanhada de forte redução nos déficits externos. Porém, como mostra claramente o gráfico anterior, o inverso ocorreu. Como explicar tal situação? Não há uma resposta definitiva para esta questão, mas podemos oferecer aqui uma hipótese. Nossa interpretação está intimamente ligada à importância que damos aos fluxos financeiros internacionais. Afinal, a pergunta relevante é a seguinte: quais os efeitos de uma reversão desta magnitude sobre a rentabilidade esperada dos investimentos no país previamente deficitário? Esta questão pode ser facilmente respondida através de um único gráfico (número 2), que demonstra a evolução do índice da bolsa norte-americana, o Dow Jones, cujo patamar é uma boa medida para os lucros empresariais esperados. Como, em equilíbrio, a taxa marginal de retorno de todos os investimentos deve se igualar, pode-se perceber através dos ganhos da Bolsa como foi vantajoso investir nos Estados Unidos durante a chamada década de ouro, o maior período de crescimento ininterrupto do pós-guerra. Como dissemos acima, seguindo a tradição dos livros-texto de macroeconomia aberta, temos o hábito de explicar a conta capital como o resíduo que vem "zerar" o resultado da conta corrente. Mas, na prática, isto não é necessariamente verdade. Em nossa opinião, a dinâmica da economia norte-americana, por exemplo, deveria nos levar a inverter a ordem deste raciocínio. A dinâmica das contas externas numa grande economia aberta parece decorrer da busca de investidores internacionais por oportunidades de participar das taxas de retorno oferecidas, que costumam ser particularmente elevadas quando há um cenário de crescimento exuberante, como nos Estados Unidos na década passada. E, como esperamos demonstrar no parágrafo seguinte, esta é uma alternativa teórica epistemologicamente atraente, pois consegue explicar o comportamento das variáveis econômicas nos dois períodos citados anteriormente. O ajuste via conta capital e financeira esclareceria, por exemplo, porque a era Reagan, marcada por reduções de impostos, diminuição da participação do Estado na economia e a recuperação da confiança dos agentes, gerou a explosão dos déficits em conta corrente. Igualmente, esta hipótese poderia descrever com perfeição os efeitos do processo de ajustamento levado a cabo pelo Governo Clinton, mostrando que o desaparecimento dos déficits fiscais abriu espaço para novos investimentos privados nos EUA e foi a base sobre a qual se construiu a década de ouro de crescimento saudável (não-inflacionário). Finalmente, o movimento dominado pela conta de capital também poderia explicar como as múltiplas falhas de Bush - distorção dos cortes de impostos, volta dos déficits fiscais, entre outras - estariam por trás da recente desvalorização do dólar após sua chegada à Casa Branca, assim como as perspectivas, mesmo que bastante duvidosas, de um ajuste fiscal parcial no segundo mandato de Bush poderiam explicar a recente valorização da moeda norte-americana.

O momento vivido pelo dólar é reflexo dos fundamentos econômicos que o sustentam

Ou seja, acreditamos que o atual momento vivido pelo dólar é reflexo dos fundamentos econômicos que o sustentam. Ao contrário do que ocorreu na gestão de Ronald Reagan, os atuais déficits fiscais norte-americanos têm muito pouco no sentido de uma contenção do tamanho do Estado ou de uma menor intervenção na vida alheia. O comportamento da Casa Branca não decorre de uma crença quase ideológica, certa ou errada, de que, para poder reanimar um país decadente, dever-se-ia adotar uma postura agressiva que, para utilizar a expressão keynesiana, colocasse em marcha os "espíritos animais" de seus empresários e o belíssimo furor consumista de sua população. George W. Bush assumiu, neste início de século, um país que não precisava de um ajuste, de uma reversão de trajetória. Pelo contrário, os Estados Unidos de 2001 precisavam de uma boa dose de persistência para continuar a trilhar um caminho vitorioso.

Diante deste arcabouço teórico, que procuramos expor, em menor detalhe, em artigos anteriores, não surpreende o atual comportamento das moedas no plano internacional. Resta claro que, com a reeleição de Bush, os próximos quatro anos, nos EUA, serão provavelmente marcados, sempre que "necessário", pela insistência numa visão de um keynesianismo simplório, como sugerido por Paul Krugman. Com isso, o impressionante seria se as moedas estivessem se comportando de forma diferente. Se a economia norte-americana permanecer numa trajetória fiscalmente explosiva (mesmo que esta explosão pareça, hoje, distante), esta atrairá cada vez menos capital para fechar suas contas externas. A demanda por ativos nos Estados Unidos despencará. Hoje, apenas os Bancos Centrais internacionais, que não necessariamente maximizam a composição de portfólio na aplicação de suas reservas, parecem dispostos a financiar tamanha inadequação econômica. Porém, mesmo este arranjo ao estilo Bretton Woods, entre centro (EUA) e periferia (o Sudeste Asiático, no caso), com fluxos oficiais mantendo as moedas locais num padrão cambial razoavelmente fixo ao dólar, conhece limites, principalmente na medida em que a economia americana fica aquém de seu potencial de crescimento e os controles cambiais nos países de origem, necessários para manter o funcionamento do sistema, começam a limitar a capacidade de crescimento da região. É neste contexto que percebemos os primeiros movimentos dos Bancos Centrais internacionais, como na Rússia, no sentido de manter parte de suas reservas em Euro. A conseqüência desta mudança de hábitos será, provavelmente, uma elevação, possivelmente acelerada, nas taxas de juros de mercado nos Estados Unidos e uma maior desvalorização do dólar. Os Estados Unidos têm a capacidade de reverter esta situação através de um substancial ajuste nas contas públicas. Mas, conhecendo o histórico deprimente do Presidente Bush em questões ligadas à economia, é pouco provável que isto ocorra de fato. Sendo assim, o mundo deve estar preparado.