Título: Um mapa da mina para entender Marx
Autor: Guimarães, Luiz Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 26/07/2007, EU & Investimentos, p. D6

Parece improvável que alguém esteja hoje, depois de tudo o que aconteceu, nesta altura do processo histórico, justamente quando a vitória do capitalismo se mostra cabal, propenso a se debruçar, despido de véus ideológicos, sobre a monumental e assustadora obra-prima de Karl Marx movido pelo altruístico propósito de desvendar o mistério econômico desta primeira década do século XXI: as razões que levam um ciclo econômico de expansão, cuja morte já foi profetizada e adiada inúmeras vezes, a ressurgir ainda mais vigoroso após cada turbulência, para embaraço dos seus coveiros. O que tem o velho filósofo alemão a dizer sobre isso? Muito, e este é apenas um pequeno estímulo, entre outros muito mais intelectualmente gratificantes, para voltar a ler "O Capital".

Para quem nunca tentou empreender a jornada - perigosa, pois pode alterar a forma ilusória e confortável de ver o mundo, cuja aparência é de que sempre esteve naturalmente organizado da maneira como nos ensinaram a enxergá-lo - ou para os que desistiram no meio do caminho, o livro "O Capital de Marx (Uma Biografia)", de Francis Wheen, renomado jornalista inglês, fornece um mapa da mina tentador.

O trabalho de Wheen, uma biografia da "obra-prima ignorada", conta como "Das Kapital" foi feito, as agruras físicas e penúrias financeiras enfrentadas por Marx durante o longo e penoso martírio de pesquisa e redação do Volume I - o único que concluiu -, discute brevemente as idéias fundamentais expostas e, na parte final, aborda o impacto e a herança do texto que se transformaria na escritura sagrada dos socialistas e comunistas.

Marx juntava em si tanto o filósofo teórico quanto o revolucionário prático. "O Capital" levou 15 anos para ser escrito porque, além das doenças de pele - Marx, infestado de furúnculos, praguejava: "Espero que a burguesia se lembre dos meus furúnculos até o dia de sua morte" - e das relacionadas ao fígado, além das aflições financeiras ("não creio que alguém jamais tenha escrito algo sobre dinheiro com tão pouco dele a seu dispor"), além das distrações cotidianas, das tarefas próprias da militância e das constantes polêmicas jornalísticas, às quais se lançava com "estouvada beligerância" (nas palavras de Wheen), Marx buscava desvendar a essência última das coisas econômicas por trás das aparências.

Ele queria desnudar o cerne verdadeiro de categorias - mercadoria, capital, trabalho, valor - que, por ser dadas como conhecidas, dispensavam estudo. Queria mostrar que o capitalismo alienou o homem de si mesmo e dos outros ao transformá-lo em mercadoria como outra qualquer transacionável no mercado.

Para ir à gênese última das coisas, Marx não poderia escrever um tratado econômico como outro qualquer. Queria edificar um monumento literário, artístico, estético e técnico que abalasse a superestrutura burguesa e fincasse as bases da revolução na infra-estrutura. E isso não se faz de um dia para o outro. Nem em 15 anos.

A lentidão de Marx, as seguidas protelações e as desculpas variadas exasperavam o seu amigo, financiador e informante do mundo real Friedrich Engels. "Eles se complementaram com perfeição. Marx com sua riqueza do conhecimento, Engels com seu conhecimento da riqueza", diz Wheen, fazendo uso magistral, mas não sem uma ponta de ironia, da dialética.

Herdeiro de uma manufatura inglesa, Engels fornecia a Marx os documentos que permitiam a ele ilustrar, com exemplos do mundo concreto, a sua teoria da exploração capitalista. Em suas pesquisas na sala de leitura do Museu Britânico, Marx se dedicava à leitura técnica dos economistas que o precederam, sobretudo Adam Smith e Ricardo, dos "livros azuis" do governo inglês, mas também se deliciava com a alta literatura, vício adquirido na adolescência do qual nunca se libertou. Já adulto, Marx gostava de declamar Shakespeare, Dante e Goethe em seus passeios.

Na juventude, Marx aprendeu sozinho inglês e italiano e, já bem maduro, para estudar a complexa estrutura agrária russa, estudou russo com afinco. Como se aventurava com destreza em vários campos do conhecimento, com preferência pela arte e a filosofia, Marx parecia inseguro sobre como dar feições práticas a tamanha erudição. "É esse o mesmo estilo de pesquisa eclético, onívoro e não raro paralelo que deu ao 'Capital' sua extraordinária amplitude de referências", escreve Wheen.

A ambição de Marx era transformar sua obra máxima num vasto compêndio de estatísticas, história e filosofia destinado, afinal, a desnudar os "vergonhosos segredos do capitalismo". Para tanto, se concedia longas e, para Engels, irritantes pausas no trabalho para estudar um aspecto específico de um dos seus temas preferidos, tentar enxergar para além da aparência e descobrir as relações ocultas e verdadeiras camufladas pelo modo de produção capitalista. Queria ser o primeiro a desbravar uma terra incógnita, o novo mundo do capitalismo industrial desconhecido a alguém como Adam Smith.

"Desde o início, Marx alertava os leitores para o fato de que estavam penetrando uma terra de fantasia onde nada é o que parece", diz Wheen. Para Marx, apenas se conseguisse transpor os "véus da ilusão" poderia revelar a exploração que dá vida ao capitalismo.

O desbravamento foi fragmentário e inconcluso. O plano original de Marx era publicar "O Capital" em seis volumes. Em vida, só editou o primeiro, em 1868. Até sua morte, em 1883, não tinha conseguido concluir o Volume II. Engels compilou o segundo livro em 1885 e o terceiro em 1894. Um quarto volume, chamado de "Teorias da Mais-Valia", foi editado em 1905.

Para romper de dentro os "véus da ilusão", Marx não poderia escrever de maneira convencional, pois a linguagem poderia contribuir para manter soterrada a essência da exploração. É por isso que, deliberadamente, a obra é cheia do que Wheen chamou de "paradoxos e hipóteses, intricadas explicações e tolas extravagâncias, narrativas fracionadas e curiosas excentricidades".

Quais são os instrumentos utilizados por Marx para romper os "véus da ilusão"? O primeiro é o novo conceito dado por ele à "mercadoria" e a definição de suas duas propriedades: valor de uso e de troca. Como as mercadorias têm em comum o fato de que são produtos do trabalho, o valor de um objeto deve refletir a quantidade de trabalho nele cristalizado. Se é assim, se as mercadorias refletem o trabalho de seus produtores, o relacionamento social entre os homens assume, nas palavras do próprio Marx, "a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas".

Marx via na mercadoria um ente "repleto de sutilezas metafísicas e teológicas". Dessa derivação surgiu o conceito de "fetichismo da mercadoria", segundo o qual numa economia capitalista as mercadorias, por causa do fetichismo, são revestidas de um valor místico intrínseco. O fetiche capitalista - do qual o mundo moderno está coalhado de marcas e ícones de valor transcendental - consiste na dominação "da coisa sobre o homem, do trabalho morto sobre o trabalho vivo, do produto sobre o produtor".

Se tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo o que é verdadeiramente humano se desmancha em objetos inanimados que adquirem vida e vigor assustadores. Como as mercadorias adquirem vida própria, os trabalhadores são tiranizados e alienados pelas coisas que criam.

Outra faca destinada a rasgar os véus vem sob a forma da "mais-valia", a que transforma o "dinheiro em capital". Marx flagra o momento em que o capitalista descobre que a força de trabalho é uma mercadoria que possui a qualidade oculta de gerar valor para si própria e para o capitalista. É o "mais-trabalho" que gera o lucro. "Não há um único átomo de mais-valia que não derive de trabalho alheio não pago", no dizer de Marx.

A derrocada completa do comunismo, a ponto de a China tornar-se hoje a economia capitalista mais dinâmica do planeta, parece ter dialeticamente reabilitado o pensamento de Marx. Busca-se nele as respostas para as questões que nem a escola keynesiana nem a doutrina neoliberal conseguem resolver. Marx foi o primeiro a prever a globalização das economias, a superprodução capitalista e a obsessão por custos menores e produtividade sempre crescente. E a desumanização do homem.

O retorno ao velho pensador sugere, diante das contradições globais, a urgência de usar o próprio Marx como antídoto de suas profecias.