Título: China: uma mão amiga para América Latina?
Autor: Santiso, Javier
Fonte: Valor Econômico, 27/07/2007, Opinião, p. A19

Um novo tipo de namoro transpacífico está florescendo. Se terminará em sociedade ou em lágrimas dependerá da reação da América Latina ao "anjo" chinês.

O robusto crescimento chinês representa uma mudança tectônica que também chegou à América Latina. A China está na boca de todos. Três eventos importantes ultimamente (o Fórum Econômico Mundial sobre a América Latina, o Coface, Conferência Anual sobre Risco-País e um seminário de grande visibilidade realizado no Banco Central do Chile) aconteceram na América Latina, tendo como eixo o relacionamento entre a China e a região.

Esses eventos são sintomáticos do movimento da América Latina na direção da Ásia e não é nenhum acidente que estejam sendo realizados no Chile. Em 2006, mais de 36% do total de exportações do país foram direcionadas à Ásia, com a China assumindo a marca recorde de 12% do total. Recentemente, em 2006, o Chile concluiu o primeiro acordo comercial entre um país latino-americano e a China e deu início a negociações em torno de outro com a Índia.

O Chile não está só nessa corrida rumo ao Leste. Em 2006, empresas brasileiras como a produtora de minério de ferro Vale do Rio Doce, ou a fabricante de jatos Embraer, fecharam enormes contratos na China. No começo de 2007, a Venezuela acertou a criação de um fundo de investimento conjunto de US$ 6 bilhões para projetos de infra-estrutura na Venezuela e refinarias de petróleo na China capazes de processar os recursos de petróleo cru vindos da Faixa do Orinoco. Em março de 2007, Pequim lançou a candidatura oficial da China ao conselho do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Na esteira do Japão e da Coréia do Sul, a China, portanto, deverá se tornar o terceiro membro asiático do banco.

Esses vínculos com a China permitem à maior parte dos países da América Latina diversificar gradativamente as destinações das suas exportações. O fato representa uma boa notícia, pois a Ásia é também a mais vibrante força motriz do crescimento mundial com a China, em particular, se expandindo aos trancos e barrancos desde o começo do século.

À exceção do México e América Central, a China geralmente representa um "anjo do comércio" e uma "mão amiga" para as economias da América Latina. O Império do Meio é um escoadouro para enormes volumes de commodities da região, porém oferece pouca concorrência aos produtos latino-americanos nos EUA e na Europa, conforme detalhado num recente estudo do Centro de Desenvolvimento da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) [Javier Santiso, "The Visible Hand of China in Latin America {A mão visível da China na América Latina}", Paris, OCDE, 2007].

-------------------------------------------------------------------------------- Pela primeira vez na sua história, a América Latina pode se beneficiar de três importantes propulsoras do crescimento mundial --------------------------------------------------------------------------------

Para a região como um todo e, especialmente para os possíveis perdedores, o surgimento do pretendente chinês representa acima de tudo um toque de despertar para mais reformas, particularmente na área de infra-estrutura. O México, em especial, precisará fazer reformas para permanecer competitivo; seus baixos custos de mão-de-obra já não representam uma vantagem competitiva em relação à China. A proximidade do México com os EUA continua sendo um importante ativo estratégico sobre o qual o país pode se capitalizar, mas só se melhorar a eficiência das rodovias, portos, ferrovias e aeroportos.

Para os demais países que deverão continuar a se beneficiar da ascensão da China e da Índia, as propulsoras asiáticas da economia mundial, o principal tema político será capitalizar-se nos bônus, ao mesmo tempo evitando os perigos latentes da dependência sobre as commodities. A China se tornou o segundo mercado de exportação do Brasil e o que apresenta o crescimento mais acelerado, mas 75% dessas exportações estão concentradas em apenas cinco commodities. O Brasil não está só nessa situação. A Argentina manda soja para a China como seu principal produto de exportação para aquele país, ao passo que Chile e Peru dependem do cobre para a vasta maioria das suas exportações para a China.

Além das políticas comerciais e da necessidade de diversificação de produtos, a benção da China a países ricos em recursos naturais também representa desafios fiscais. É o caso do Chile, maior produtor e exportador de cobre no mundo. Sua gestão dos lucros inesperados com o cobre tem sido sensata até agora. A maioria dos recursos "inesperados" está sendo mantida num paraíso fiscal em moeda estrangeira, com o propósito de aliviar a pressão de valorização do peso chileno. Todos os superávits acima de 1% do PIB continuarão sendo canalizados para um novo "fundo de estabilização social e econômico", que também será mantido no exterior e usado no futuro para educação, treinamento e inovação industrial.

A América Latina e a Ásia estão trocando olhares lascivos e cheios de admiração. Não se trata de um 'flerte' sem conseqüências e sim, de uma mudança de grande significado: pela primeira vez na sua história, a América Latina pode se beneficiar não só de um, mas de três importantes propulsoras de crescimento mundial. Até a década de 1980, os EUA foram o maior parceiro comercial da região. Depois, sobreveio a vigorosa expansão do investimento europeu na América Latina, durante os anos 90. Agora, com essa nova década e século, a China está se tornando o terceiro pretendente à mão da economia da América Latina, sendo que Índia e demais países asiáticos não estão muito atrás.

O perigo para a América Latina é a complacência. Se os produtores de bens primários do país continuarem se contentando em se aquecer ao calor dos lucros inesperados, enquanto os fabricantes tradicionais continuam se apoiando no mercado dos EUA como um dado, o namoro atual poderá levar a uma oportunidade perdida. A região terá de abraçar as reformas, tão vigorosamente como aparenta estar pronto a abraçar a China.

Javier Santiso é economista-chefe e vice-diretor do Centro de Desenvolvimento da OCDE. É autor de "Latin America´s Political Economy of the Possible: Beyond Good Revolutionaries and Free Marketeers" (A economia política do possível da América Latina: para além de bons revolucionários e defensores do livre mercado), Cambridge, MIT Press, 2006.