Título: Casas, escola e posto de saúde estorvam 3ª pista
Autor: Salgado, Raquel
Fonte: Valor Econômico, 27/07/2007, Especial, p. A20

Maria Edna Batista da Silva, o marido, os seis filhos, uma nora e uma neta dividem-se entre três pequenos quartos de uma casa no bairro das Malvinas, vizinho ao aeroporto de Guarulhos. A construção foi erguida em um terreno comprado por seu marido há doze anos e está em uma área que há 25 anos começou a ser ocupada predominantemente por nordestinos. Lá não há asfalto e as enchentes são corriqueiras. A cinco minutos de carro dali, ao lado da cabeceira do aeroporto, no Jardim Novo Portugal, Vera Lúcia da Silva vive em um sobrado espaçoso também com seu marido, quatro filhos e a sogra. Na garagem estão os dois carros da família. Neste bairro, as ruas são asfaltadas e 78% dos imóveis pagam IPTU. Nas Malvinas, esse número não chega a 8%.

As duas famílias Silva vivem em condições muito díspares mas, assim como outras cinco mil, serão alvo de desapropriação caso a Infraero dê início à construção da terceira pista de Guarulhos. O projeto mais recente de ampliação do aeroporto, apresentado pela empresa em 2002, prevê a desapropriação de três regiões ao norte das pistas existentes, compreendendo uma área de cerca de 1 km2. A terceira pista, contudo, não passará onde hoje estão essas famílias. Ela ficará mais ao sul, entre a rodovia Hélio Smidt, que hoje dá acesso ao aeroporto, e o rio Baquirivu. Esses locais, no entanto, precisam ser esvaziados para que lá sejam construídas áreas de segurança, estacionamento e avenida de acesso.

A área onde será feita a pista faz parte do sítio aeroportuário da Infraero, onde não há pessoas morando. Não é um espaço tão grande, uma vez que a previsão é de que a terceira via tenha extensão de 1.840 metros, 60 metros a menos do que a pista principal do aeroporto de Congonhas. Ela seria, então, usada principalmente por aeronaves de menor porte, enquanto as maiores usariam as duas pistas existentes, uma com 3 mil metros e outra com 3,7 mil metros.

Embora 1 km2 possa parecer um espaço pequeno, cerca de 20 mil pessoas estão nessa área, que concentra uma Unidade Básica de Saúde (UBS), na qual 4 mil pessoas são atendidas por mês. Seria desapropriada também uma escola que atende alunos de pré-escola ao Ensino Médio. A escola e a unidade básica estão no Conjunto Habitacional Haroldo Veloso, que no último dia 18 completou 37 anos de fundação. Ele é quinze anos mais velho do que o aeroporto de Guarulhos, inaugurado em 1985.

Eronildes Silva tem 60 anos e há 34 mora no Veloso. Dono do açougue que leva o mesmo nome do conjunto habitacional, é um dos moradores mais antigos do local - e já estava por ali quando um cargueiro da Transbrasil caiu a três quilômetros do aeroporto, na favela do Jardim Ipanema, em 1989, matando 25 pessoas e ferindo outras 100. Tanto seu comércio quanto sua casa estão na área que deverá ser desapropriada. Assim como muitas outras famílias do Veloso, do Jardim Novo Portugal, Santa Lídia, Marilena, Regina, das Malvinas e da Cidade Seródio, Silva recebeu, em 2002, a visita da Urbaniza Engenharia LTDA, empresa contratada pela Infraero para fazer um levantamento sócio-econômico dos bairros. Este mesmo processo foi repetido em 5.329 imóveis.

A entrevistadora lhe perguntou quantas pessoas moravam na casa e se ele preferiria receber sua indenização em dinheiro ou achava melhor ter uma nova casa. Ao final, recebeu um protocolo com seu nome, data da visita e número de cadastro - escrito com tinta vermelha na parede externa da casa.

Silva, conhecido como Nil, pretendia comprar o local onde está o açougue, mas desistiu depois da visita. "Há cinco anos nem eu, nem ninguém investe nesta área. Por que vou melhorar minha casa ou comprar o açougue se vão me tirar daqui?", questiona. Ele quer que a Infraero decida logo sobre a desapropriação. Nas reuniões com a comunidade, conta o morador, a empresa sempre dizia que a desapropriação se daria "nos próximos quatro meses." "Mas até agora estamos aqui. Quero que resolva rápido, porque em pouco tempo isso vai virar uma grande favela", diz.

Foi em 2002 que o governo do Estado de São Paulo, por meio de um decreto, declarou 1,4 km2 de terra ao norte do aeroporto como sendo de utilidade pública. O decreto expirou no ano passado e foi reeditado, dessa vez com uma área de desapropriação 400 m2 menor.

Há seis anos a ansiedade por uma definição da situação dessa área não é só de Nil e dos demais moradores, mas também da prefeitura de Guarulhos. "Nós e a população queremos que isso seja resolvido logo pela Infraero e pelo governo do Estado", afirma Moacir de Souza, secretário de Desenvolvimento Urbano da cidade. Segundo ele, a tendência agora é que a região se desvalorize e que, aos poucos, as pessoas se afastem dela.

Nos últimos dez anos, porém, ocorreu um movimento de ocupação de parte dessas terras. Ao lado e no sentido oeste dos bairros habitados antes da construção do aeroporto, e que têm a maioria dos imóveis em situação regular, surgiram lotes clandestinos.

É o caso do Jardim Marilena, onde 100% das 1.280 edificações cadastradas pela Urbaniza estavam irregulares em 2002. Esses terrenos, no entanto, não pertencem à Infraero, são propriedades particulares que foram ocupadas. A sogra de Aparecida Diamante ocupou um desses lotes há dez anos e construiu um bar que era tocado pelo cunhado de Cida. Em dezembro do ano passado, ela se mudou com sua família do Bom Clima, bairro central de Guarulhos, para a propriedade irregular. Reformou o bar e o transformou em uma sorveteria com piso de cerâmica e azulejos limpíssimos nas paredes.

Hoje ela ganha entre R$ 800 e R$ 900 por mês com seu pequeno negócio, mais do que o dobro do que recebia em 2006 quando era empregada doméstica e ganhava um salário mínimo. "Quando eu vim para cá me disseram que essa área não seria desapropriada. Agora eu leio nos jornais e acho que vamos ter que sair", conta. Se for preciso, voltará ao Bom Clima, mas se entristece ao lembrar do investimento feito para abrir a sorveteria.

A chateação de Aparecida seria evitada se a região tivesse sido declarada de utilidade pública na década de 80, logo após a inauguração do aeroporto e da elaboração do Plano Diretor. "A Infraero poderia ter se antecipado e se apropriado da área", explica o arquiteto urbanista Daniel Carlos de Campos, assessor técnico da Coordenação de Assuntos Aeroportuários da prefeitura de Guarulhos.

Os bairros que já existiam antes do aeroporto também poderiam ter sido desapropriados há mais tempo, o que, segundo Campos, conteria o adensamento urbano nas proximidades da área da terceira pista. E o custo de desapropriação seria menor.

A Infraero - que não respondeu à reportagem - não revela sua estimativa de gastos para esse processo, mas Luiz Rael, chefe de divisão da Coordenadoria de Assuntos Aeroportuários, conta que em 2002 o comentário é que seriam necessários pelo menos R$ 100 milhões. A obra da terceira pista não consta do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Maria Edna, do Jardim das Malvinas, torce para que a obra demore a sair do papel. Quer ir embora, mas assim como outros moradores, teme que a indenização tenha um valor baixo. Há dois anos ela tenta vender sua casa semi-acabada. "Aqui quando chove inunda tudo. É muito ruim. Quero vender e voltar para o Norte. Mas desde que o pessoal da Infraero veio aqui, ninguém compra nada", conta. Ela pede R$ 16 mil pela pequena propriedade irregular. E, como diz a frase pintada ao lado da janela da frente da casa, também aceita um carro em troca. Talvez com ele possa encurtar a viagem à terra natal.