Título: Pelos corredores de uma usina que se esconde
Autor: Chiaretti, Daniela e Pinheiro, Léo
Fonte: Valor Econômico, 27/07/2007, EU & Fim de Semana, p. 4

A inscrição em bronze da Norberto Odebrecht, a construtora responsável pelas obras civis de Angra 2, continua reluzente sete anos depois do início de operação da central. Mas não há outras placas à entrada da instalação nuclear, nenhuma outra memória protocolar. Governadores do Rio jamais puseram os pés na Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto, a CNAAA, neste lugar paradisíaco que abriga Angra 1, Angra 2 e é o berçário de Angra 3. Visita de presidentes, só a de Ernesto Geisel, em outubro de 1975. Angra 1 até que foi inaugurada por um ministro, o cearense César Cals, à frente da pasta das Minas e Energia em setembro de 1981. Angra 2, desengavetada na gestão Fernando Henrique, nasceu sem festa: começou a operar órfã de formalismos e de autoridades.

A decisão de diversificar uma matriz energética basicamente calcada em sistemas hidrelétricos, e aí optar também pelo nuclear, pode ser necessária mesmo se controversa, mas seguramente é desconfortável à elite política. Os 1.500 funcionários das usinas da Eletrobrás Termonuclear S.A., a Eletronuclear, sabem há três décadas que trabalham numa atividade pouco íntima à maioria e que inspira temor. Fissão de átomos não é matéria escolar e para mortais comuns, a lembrança de Chernobyl e Three Mile Island vem adesivada nos reatores.

Leo Pinheiro / Valor Angra 2 (de alto a baixo): checagem de radiação; a sala de operações; o prédio das turbinas; prateleiras com peças de Angra 3 num dos galpões Nesse clima de rejeição e dúvida expresso pelo mundo exterior, as celebrações da noite de 25 de junho foram discretas por aqui. Foi quando o Conselho Nacional de Política Energética deu luz verde para desencalhar Angra 3, um aceno aguardado há 20 anos. "Optamos por ficar low-profile para não sermos acusados de mordomia por conta", diz o engenheiro Pedro J. D. de Figueiredo, diretor de Operação e Comercialização da Eletronuclear. O churrasco foi adiado para depois da manutenção de Angra 1, como de praxe nas paradas periódicas da usina.

A mítica em torno à indústria nuclear, associada mais à bomba que à medicina, atrai os viajantes que trafegam pela BR-101, a Rio-Santos. No quilômetro 522, carros param e curiosos se debruçam na mureta, máquina fotográfica na mão. Numa época em que o Brasil só pensa em crescer, aquela construção que surge como um dedal branco, Angra 1, e a outra, Angra 2, de cúpula numa versão grosseira das de Niemeyer, produzem o suficiente para abastecer a metade do consumo da energia elétrica do Estado do Rio. À direita se vê o canteiro de obras de Angra 3, à espera do trâmite ambiental. O lugar, emoldurado pelo mar azul da Praia de Itaorna e abraçado pela exuberância tropical da Serra da Bocaina, destoa com a idéia que se faz do Armagedon.

Leo Pinheiro / Valor Rejeitos: o biólogo Alhanati abre o depósito; sala da batalha naval; barris com luvas e ferramentas contaminadas; a checagem da radiação na saída Da estrada se percebe a vibração: as instalações nucleares brasileiras estão em uma concha acústica. Às 9 horas de uma sexta-feira de julho, escuta-se um som rouco e contínuo. É o gerador de Angra 2 quem ruge; Angra 1 está desligada, em manutenção. Um aviso ecoa dos alto-falantes, mas os carros que passam na BR abafam a mensagem. Homens de capacete e uniforme azul andam lá embaixo como peças de Playmobil, uma cena que está longe de ser brincadeira. Os depósitos de rejeitos de baixa e média atividade não são visíveis desse ângulo - estão na encosta à esquerda. Os refugos mais perigosos, as pastilhas de combustível já usadas que continuarão radioativas pelos séculos, aguardam seu destino final mergulhadas em piscinas muito azuis dentro do prédio-dedal e do prédio-cúpula. Usinas nucleares têm perigo invisível.

Estudantes do ensino médio de uma escola de São Paulo estão concentrados diante dos painéis coloridos do Centro de Informações, a poucos metros do belvedere. O centro foi inaugurado há 30 anos com a intenção de trazer o nuclear onde o povo está. Recebe 20 mil visitantes ao ano. Um esquema indica onde fica o reator, como ele se liga ao pressurizador e ao gerador de vapor; mostra as turbinas, os condensadores, as bombas que trazem a água do mar. Tudo bem didático, do jeito que dá para ser com um assunto tão complexo; tudo bem colorido, exibindo esquemas amigáveis. O bicho-papão das nucleares, o reator, vive bem trancado no interior das unidades de contenção (o nome técnico para o prédio do dedal e o da cúpula), sugere o display. Em 22 anos de atividade, nenhum acidente grave.

Leo Pinheiro / Valor Praia Brava: a rotina tranqüila de uma das quatro vilas onde vivem os funcionários da Eletronuclear têm o clima de uma cidade do interior, não fosse o mar Há outras 240 usinas no mundo com reatores PWR, como os que estão ali embaixo, esclarece um painel. Angra 1 e Angra 2 evitam a emissão de cerca de 10 milhões de toneladas de CO2 ao ano, sua contribuição ao combate ao aquecimento global, ilustra outro. Uma maquete corta Angra 2 ao meio; a torre de metal na escada não é uma escultura moderna, mas uma estrutura idêntica às que acondicionam as pastilhas de combustível. Com as entranhas expostas em uma mostra bem-feita, as usinas nucleares brasileiras parecem menos monstrengas.

Da varanda do centro de informações, a visão das usinas aparece num recorte de hibiscos e bromélias. Eram construções sombrias até uma arquiteta sugerir dar cor ao complexo. Tons de terra substituíram o visual stalinista original. Dá para ver a dúzia de galpões que guardam cinco mil toneladas de equipamentos desmontados de Angra 3 - outro tanto está em Itaguaí, na Nuclebrás Equipamentos Pesados S.A., a Nuclep. Aqui, estão abrigadas máquinas enormes, tubos variados, válvulas e bombas, parafusos e arruelas. Há anos estão dispostos sobre prateleiras, embalados em sacos de alumínio e em caixas de madeira.

A disciplina é rígida para evitar erosão, maresia, poeira e decadência. Uma equipe de 35 funcionários toma conta de tudo e se investem US$ 20 milhões ao ano na manutenção das peças. Periodicamente, técnicos da seguradora alemã Allianz AG aparecem e pedem para ver, ao acaso, o que está dentro de determinada caixa. É a garantia da garantia. "Temos aqui toda a parte mecânica de uma usina desmontada", diz o engenheiro Álvaro Gama de Oliveira, da área de obras da Eletronuclear, conhecido como "o homem de Angra 3" por ter sido, durante anos, o responsável pelo correto armazenamento do material. "É como se tivéssemos uma usina de Lego e agora só falta montar as peças."

Leo Pinheiro / Valor O engenheiro Pedro J. de Figueiredo, diretor de Operação e Comercialização da Eletronuclear: "Associar a energia nuclear à bomba é como ligar o napalm ao posto de gasolina" Políticos e autoridades podem ouvir uma palestra antes de mergulhar no tour por Angra 2, que terá, em Angra 3, sua gêmea idêntica. Há poucos dias quem veio foi o embaixador americano no Brasil, Clifford Sobbel. Na tela, o gráfico-pizza exibido por Luiz Roberto Cordilha Porto, assessor-técnico da diretoria, mostra a geração de energia no mundo: o carvão responde por 39% ("que é o que emporcalha tudo", diz, referindo-se aos gases estufa), gás tem 17,5%, nuclear e hidro empatam com 17% e as renováveis estão na lanterninha, com 1,1%. No Brasil, a pizza da energia elétrica não é nada salomônica. Tem um pedação tomado pela hídrica (91,94%) e o nuclear responde por 3,31%. "Hidrelétricas são potentes, mas podem ter disponibilidade baixa", cutuca o técnico. "São extremamente dependentes de chuva, sazonais", argumenta Porto, sem disfarçar a ciumeira. "Somos um país de vocação hídrica, mas precisa ter fontes térmicas para quando não tem chuva."

No ranking de países que jogaram suas fichas nas usinas nucleares, a França desponta no pódio. Bem 20% da produção de energia elétrica dos EUA vêm de reatores nucleares ("o que é mais do que toda a matriz energética brasileira"). Cada país lida a seu modo com esse setor poderoso e delicado. As 104 usinas dos EUA são todas privatizadas; na França, todas estatais; no Japão, 56 privadas. Aqui, também, o mundo é desigual: no Hemisfério Sul só existem seis reatores em atividade, dois na Argentina, dois na África do Sul e dois logo ali, pertinho.

A palestra não esconde por que Angra 1 ganhou o apelido de vagalume: em 1986, por exemplo, só funcionou 24 dias. A parte mecânica dava defeito e seu desempenho foi irregular até 1996. "Os problemas que nos impedem de gerar estão ligados à parte convencional", diz Porto. Ufa. Reatores nucleares não são "convencionais". Um dos problemas foi a proliferação de cracas que vinham na água do mar e furavam os tubos. Foi aumentar a velocidade da água e as cracas sumiram, mas isso não estava nos manuais da americana Westinghouse. De 1997 para cá, Angra 1 produziu 3 milhões de megawatts/hora. Angra 2, adquirida à alemã Siemens-KWU, que também vendeu os equipamentos de Angra 3, foi a 26ª usina nuclear no mundo, entre as 441 existentes em 2006, produzindo mais de 10 milhões de MW/hora.

Na seqüência da palestra, num cruzamento de dados entre o Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas e o consumo de energia per capita, o Brasil está na mesma faixa do Cazaquistão. Canadá e Suécia são campeãs. Isso, interpreta Porto, reflete a qualidade de vida em sociedades que já resolveram problemas de metrô, de saneamento, de saúde, de transporte e por aí segue a lista.

A parte que explica os rejeitos radioativos da CNAAA fica para o fim e dura menos tempo que os outros capítulos. Os rejeitos de baixa atividade são luvas, ferramentas, macacões e outros materiais que não puderam ser descontaminados; os de média atividade são resinas empregadas para descontaminar a água utilizada na lavagem de luvas, ferramentas, macacões e outros materiais contaminados. Desse lixo atômico, palavra que ninguém usa por estas bandas, existem cinco mil metros cúbicos produzidos por Angra 1 e uns dois mil tambores gerados por Angra 2. Ficam lá em cima, na encosta, em depósitos de concreto. "Podem ficar ali por 400 anos. E o que são 400 anos para um prédio? Aqui mesmo, em Paraty, tem um monte de prédios de 400 anos", diz Figueiredo. Os rejeitos de alta atividade estão nas piscinas azuis, dentro das unidades de contenção. "Não é rejeito, é combustível usado", corrige o engenheiro.

Tudo sempre tem dois lados e Figueiredo enxerga como um tesouro em potencial o que os ambientalistas afastam com dedos em cruz. "Como isso vai funcionar no futuro? Está se falando de algo que dura mil, dois mil anos." Até lá, concorda, é preciso encontrar um jeito seguro de guardar o que hoje é o ponto fraco desta indústria.

Ele conta o jeito finlandês de tentar equacionar a questão. A Finlândia, que está construindo uma nuclear de última geração, projeta um fundo e comprido túnel escavado em rochas onde quer colocar as pastilhas de combustível usado dentro de estruturas de argila, recobertas por cobre e mais camadas de aço. Aqui em Angra, ficam, por ora, dentro das tais piscinas de azul profundo, de 14 metros, contendo água com boro. Angra 1 tem 600 elementos combustíveis e espaço para 1.200; em dez anos, vai precisar fazer outra piscina para Angra 2. "Os elementos que estão ali ainda têm energia", registra.

Então, tá. Tudo esclarecido, pode-se iniciar a visita por Angra 2. Não há hipótese de um visitante entrar ali de camiseta regata, tênis ou sandálias, procedimentos de segurança exigidos também nas indústrias químicas. Amadores não devem ficar com o corpo exposto. Logo se entende o que o biólogo Carlos Elysio Alhanati, o cicerone da visita, quer dizer com "fazemos defesa em profundidade". Na primeira cancela, o guarda confere o logotipo da Eletronuclear no carro, cumprimenta o funcionário e acena aos visitantes. Na segunda guarita, o ingresso para a área vigiada, outro guarda confere crachás e toma nota de quem entrou. Eles já sabem de tudo, já foram informados dos nomes e RGs dos visitantes.

Uma cerca dupla circunda a área protegida. No espaço entre elas há câmeras e sensores de calor e movimento, no melhor estilo Berlim Oriental em anos de Guerra Fria. Só que aqui os espiões são gambás e porcos-espinhos, capivaras confusas e jaguatiricas curiosas que vêm xeretar a movimentação serra abaixo. As carteiras de identidade são trocadas por crachás pré-programados que dão acesso a algumas áreas e indicam que, sem escolta, não se vai a lugar algum. Quem se desgarrar da excursão fica bloqueado em algum corredor, devidamente vigiado pelas câmeras até o resgate.

Dos alto-falantes se fica sabendo que alguém está à procura do operador Adilson e ele deve se dirigir para o prédio UJE, na elevação 2,85. Que língua fala essa gente? "As siglas são a contração de palavras em alemão deste tamanho que a gente herdou e manteve", explica Alhanati. Quem se perde em Angra 2 tem de fazer um curso para se encontrar. Se acontecer algo sério na usina, os alarmes disparam. O de atenção é intermitente; o de evacuação, contínuo. Linguagem universal, todo mundo capta. Tem aquela conversa que nucleares são seguras em terremotos, maremotos, ataques terroristas. Mas em 16 de julho um forte tremor no Japão abalou a central nuclear de Kashiwazaki-Kariwa, a maior usina do mundo, com vazamentos e mais de 50 falhas de funcionamento. Então, é preferível que os alarmes fiquem calados.

Na estratégia de defesa em profundidade, quanto mais perto se chega do reator, mais dificuldades para entrar. À frente tem um bunker, os vidros à prova de bala. É a sala da segurança, praticamente uma central Big Brother. Ali se monitora todo o perímetro da usina, telas de computadores exibem até a BR. "Assim podemos retardar uma ação malévola", diz o chefe da segurança. Estruturas para guardar crachás mostram quem está dentro, quem saiu para almoçar, quem faltou, quem chegou atrasado. São cinco crachás diferentes, de acordo com a função do empregado, num espectro que permite o acesso a tudo até chegar a quem só pode circular com acompanhante.

A primeira providência é desligar celulares, abandonar objetos pontiagudos, passar pelo detector de metais e raio X de bagagem. A novidade vem agora: o detector de radiação. Quem tiver feito recentemente um exame com contraste apitará. É para checar se já se chega irradiado sem ter colocado o pé na usina. Atravessa-se a rua e passa-se ao lado de um janelão do tipo C.S.I. - quem está dentro espia quem está fora; quem está fora pode ver, na sua imagem refletida no espelho, se ficou bem de óculos e capacete. É o ingresso ao primeiro prédio, rumo à sala de controle.

A partir daí, será uma sucessão de portas pesadas de aço abertas depois de cada um passar seu crachá e a luz verde permitir. Portas giratórias também funcionam assim. Corredores com trilhas pintadas no chão sinalizam para os mais desorientados. De uma pequena ponte, dá para suspirar quando se avista o quebra-mar. Mas com o aquecimento global, e a perspectiva dos mares subindo, como ficam usinas assim, projetadas para durar 50 anos? "A usina é bem alta em relação ao mar. O quebra-mar foi projetado para um tsunami que, estatisticamente, poderia ocorrer em cinco mil anos", conta Figueiredo. Continua, com honestidade: "Não há estudo sobre isso aqui nem em lugar nenhum do mundo. Mas a usina de Borssele, na Holanda, está abaixo do nível do mar e não tem nenhum problema."

Quando as portas de aço se abrem, escuta-se o assobio clássico de ambientes pressurizados. "É para conter partículas em suspensão, uma proteção maior para segurar eventuais vazamentos", esclarece Alhanati. Novo posto de controle barra a entrada para a área controlada. Visitantes não passam sem ter enviado antes exames médicos - é o caminho para o reator e as piscinas. Também não é permitido mascar chiclete. A goma pode ficar irradiada e o ruminante sair com graus de radiação a mais. Do lado de lá, araras com macacões cor-de-laranja. Na parede, um escaninho com o que parecem ser crachás. São dosímetros para medir a radiação. Cada empregado tem o seu.

Naquele instante, dois funcionários estão de saída. Fecham-se em cabines de vidro onde têm o corpo escaneado da cabeça aos pés, em busca de radiação. Depois, passam por catracas com monitores. Ali encaixam seus dosímetros, espiam quanto de radiação receberam e, tranqüilos, vão almoçar salmão e bolo prestígio no restaurante da vila de funcionários. Simples assim.

Os empregados fazem exames médicos de seis em seis meses e a Comissão Nuclear de Energia Nuclear (Cnen) tem a responsabilidade de controlar tudo. Há normas da Cnen para os limites de quem está ocupacionalmente exposto à radiação. A barreira são 50.000 mSv/ano, desde que a média em cinco anos seja inferior a 20.000 mSv/ano. mSv é a sigla para microsievert, ou a energia depositada por unidade de massa. Traduzindo: a medida do perigo.

Enquanto se caminha pelos corredores, Alhanati explica que irradiação é diferente de contaminação e nunca ocorreu de um funcionário superar o limite de radiação da norma da Cnen. Funcionários que podem chegar perto do limite são afastados por determinado período. Contaminação é outra conversa. Uma luva pode ter resíduos de uma fonte e ficar contaminada. Então ela é lavada com água. A água, que fica com os rejeitos, é tratada com resina. O destino de luvas e resina são os barris de rejeitos de baixa (a luva) e média (a resina) atividade, armazenados nos depósitos.

A sala de controle parece a Nasa. Centenas de luzinhas por onde se olhe. São três níveis de alarme, o comum, o classe 1 e o classe S, este último uma espécie de "Houston, we have a problem", que, por sorte, só tocou em testes. Se o reator é o coração de uma nuclear, esta sala é o cérebro. Dizem, juram e garantem que, se ocorrer algo, os painéis daqui desligam a usina na hora. A piada que se conta é que, na sala de controle, só são necessários um pitbull e um operador. O pitbull para não deixar nenhum estranho entrar com "intenções malévolas". E o operador? Para alimentar o cachorro. Na vida real, para conhecer os segredos dos painéis, tem que se estudar no mínimo três anos para passar numa dura prova da Cnen. Só a parte escrita do exame dura dois dias.

Segue-se em direção ao prédio da turbina. Agora, além dos óculos e capacete, é preciso colocar protetor no ouvido. Entra-se em uma estrutura muito alta e muito barulhenta. Anda-se sobre um piso metálico que permite ver os enormes tubos prateados que estão embaixo. A água do mar entra por eles, para resfriar equipamentos. Ali estão os condensadores. À esquerda, a visão das três enormes turbinas (com o nome gravado do fabricante "KraftWerkUnion") e do gerador. Angra 2 existe para isso. É aqui, neste grande espaço úmido e barulhento, que a energia é produzida. O canto do salão exibe um mural com a bandeira brasileira pintada e o recado: "Angra 2, energia para o desenvolvimento." O ambiente tem tons verdes e amarelos.

Lá fora, sem os protetores de ouvido, caminha-se ladeando o prédio da cúpula e a grande chaminé, de uns 150 metros, com o símbolo internacional do trifólio sinalizando que esta não é uma fábrica de chocolate. As torres de transmissão elétrica sobem a serra. O próximo prédio é uma segunda sala de controle, um back-up da outra, a da Nasa. Se ocorrer algo e a principal não funcionar por algum motivo, esta aqui tira a usina da tomada.

Os tanques que recolhem a água do mar exalam um cheiro forte. "É o ácido que as algas liberam, um processo natural", diz o biólogo. A espuma cinza que se acumula no tanque não é muito convidativa, mas também é "natural", repete Alhanati. Essa água do mar nem passou perto do reator, que funciona por outro sistema. Ela entrou apenas no circuito de geração para resfriar os condensadores e agora segue para o mar de novo, desembocando atrás da montanha, na Baía de Piraquara. Sai com 3 a 4 graus a mais do que entra, por isso quem freqüenta a baía a chama de "praia de águas quentes".

É esse o maior impacto ambiental medido pela operação nuclear até agora. A temperatura mais elevada teve reflexos na vida do mar numa distância de 600 metros da boca de descarga. O número de espécies de algas diminuiu, mas um tipo específico cresceu mais. Como conseqüência, aumentou a população de moluscos e peixes. Os pequenos atraíram os maiores e agora há cações e tubarões - mas nenhum registro de ataques a banhistas. É fácil ver grandes tartarugas.

Alhanati dirige o laboratório de monitoração ambiental, onde trabalham 20 técnicos entre químicos e biólogos. Fazem análises em peixes, na areia da praia, em bananas e leite produzidos na região, nas águas da chuva e dos rios. Espalharam por toda parte casinhas brancas que lembram pequenos santuários, onde coletam amostras. "Nunca achamos nada de radiação. Até porque não temos que achar. Fazemos o controle redundante da usina." Indícios de césio e cobalto, subprodutos radioativos do nuclear, são "baixíssimos", assegura. Até o deslizamento do laboratório no mar, anos atrás, com uma "ampolinha" radioativa dentro, não causou danos, garante. "Seria impossível. Era como encontrar os efeitos de uma gota de corante no mar." O biólogo diz que fazem análises claras, recorrentes e objetivas. "Não temos esconderijos aqui."

É de tarde e a usina está tranqüila. Na vila de Praia Brava, uma das quatro onde residem os funcionários, as casas são simpáticas, crianças jogam bola na rua e o clima seria de cidade do interior, não fosse a praia, espetacular, onde grupos de adolescentes espetam pranchas de surfe. Eles podem estudar em uma das duas escolas que existem nas vilas, oferecem até o segundo grau e são freqüentadas por três mil alunos. A Eletronuclear gasta R$ 2 milhões por ano nessas escolas e fornece ônibus para levar alunos que entram na faculdade no Rio ou em Barra Mansa. O Hospital de Praia Brava faz cem mil atendimentos ao ano. "Associar a energia nuclear à bomba é como ligar o napalm ao posto de gasolina", afirma o engenheiro Figueiredo, que veio viver ali em 1974, quando a CNAAA foi inaugurada. "Criei meus filhos aqui", conta. Na sua sala, uma foto mostra a região nos anos 1970, com as encostas da serra devastadas, no mesmo lugar hoje reocupado pela vegetação natural.

Para ele, o Brasil tem de ter energia nuclear, eólica, solar, hídrica, de biomassa, de todo jeito. "Mas a hídrica é sazonal, a de bagaço de cana, também. Eólica, aqui, não venta. A nuclear entra nessa conformação." E o preço da energia de Angra 3, estimado em R$ 140 MW/hora, e já contestado? "Tem de levar em conta que já gastamos US$ 700 milhões, gastamos para preservar os equipamentos. Hoje estamos pagando por isso na tarifa de Angra 1 e 2, que não têm nada a ver com a história. O caro vem daí."

O ambiente tranqüilo e a paisagem idílica têm uma zona de calafrio na visita de um dia às instalações nucleares brasileiras. É a hora em que se sobe a encosta rumo aos depósitos de rejeitos de baixa e média atividade. Na guarita, o público ganha um dosímetro zerado. Na pesada porta de ferro, uma placa indica que ali se recebem 10 mSv/hora. Do lado de dentro, barris azuis bem empilhados guardam luvas, macacões e ferramentas contaminados. O chão é riscado com letras e números, como num jogo de batalha naval. Quem fica do lado de fora, por cinco minutos, já sai com 1 mSv no dosímetro. Quem entra no galpão e avança dois quadrados, leva 2 mSv. Não é nada, mas não é uma sensação agradável. Usinas nucleares têm perigo invisível.