Título: De olhos bem fechados
Autor: Domério Nassar
Fonte: Valor Econômico, 20/01/2005, Opinião, p. A8

O Brasil ainda segue a trilha do acaso. Governo, economistas e empresários rodam aplicativos de política econômica que não mais aderem à realidade produtiva e monetária de nossos tempos. São derivações de uma percepção teórica antiquada, que nos confina às inconsistências e contradições de muitas das propostas para o desenvolvimento brasileiro. Dois exemplos. O primeiro diz respeito às idéias de Celso Furtado, relançadas por ocasião da morte deste intelectual de integridade incomum. O segundo remete ao receituário recém-apresentado pela nova diretoria da Fiesp, positivamente intencionada em preservar crescimento. O argumento de Furtado trata de resgatar a suposta poupança sorvida pelo financiamento ao consumo de uma elite, que imita padrões estrangeiros, por meio de uma reforma fiscal, que redirecione aquela poupança aos investimentos estratégicos à soberania nacional, revertendo-os a favor da produção de bens e serviços mais populares. No caso da Fiesp, a proposta é substituir aumentos nos juros por redução nos gastos de custeio do governo. Assume a idéia de que os investimentos precisam do espaço a ser aberto pela redução do consumo (do setor público, no caso) para que possam correr sem inflação. Em ambos os roteiros, por conta do arquétipo que iguala poupança a investimento no raciocínio macroeconômico, veste-se uma mesma camisa-de-força conceitual, que decorre de três pressupostos de raiz, bem fincados por doutrinas que aprisionam o Brasil há décadas. O primeiro é o de que toda economia operaria com recursos físicos escassos, obrigando a que sempre se faça uma escolha na alocação de recursos produtivos, que excluiria outra possibilidade de produção. O segundo é o de que o sistema bancário seria um sistema de intermediação de recursos monetários pré-existentes, que primeiro os captaria de um lado para depois emprestá-los a outro. O terceiro, que integra e se interpenetra aos anteriores, é o de que seria preciso, portanto, haver poupança, menos consumo, para que possa haver espaço físico e recursos monetários para o investimento. Condicionado por tais axiomas, Furtado não poderia perceber a produção dos bens duráveis de consumo como importantíssima inovação, fortemente indutora de maior emissão de créditos pelo sistema bancário. Por isso condenou o consumo de elite (?) dirigido aos duráveis, sem se dar conta de que a circulação da massa de crédito novo pelas cadeias que se articularam àquela indústria, fornecendo-lhe meios de produção ou distribuindo seus bens e componentes, multiplicou renda e emprego que foram cruciais para a própria consolidação da produção de bens salários e de bens de capital, insuflando-lhes demanda que poderia não existir de outra forma.

É preciso rever idéias que opõem o pensamento teórico à obviedade que pulsa da vida empírica das empresas

Sob a mesma tríade de postulados, a Fiesp incorre em contradições semelhantes ao defender a redução das despesas de custeio do setor público sem redução correspondente da carga tributária, já que pretende reduzir o déficit nominal desse setor. Acaba, assim, por atentar contra gastos que multiplicam o comércio nos municípios brasileiros, girando boa parte do faturamento da própria indústria no mercado interno. Não antecipa que haveria sacrifício das vendas para pagamento de juros estéreis à dívida pública. Não percebe que se o corte de gastos do Estado contribui para reduzir essa dívida, nem por isso contribui para a queda da taxa de juros. Pois não é a dívida que explica os juros, mas sim as taxas a sustentar, autonomamente arbitradas pelo Copom, que explicam a dívida sempre emitida para enxugar excessos de reservas livres no mercado interbancário de moeda oficial. O que esses exemplos demonstram é que a sociedade brasileira está de olhos bem fechados para uma realidade cotidiana que brilha à luz do sol. Não enxerga o sistema bancário como emissor de uma moeda que lhe é própria, paralela à moeda oficial. Nem percebe que, de emissor coadjuvante em sua iniciação histórica, aquele sistema se tornou protagonista pleno da emissão monetária nos dias de hoje, a ponto de ter cooptado e internalizado a moeda oficial em que se apóia, e de o próprio crédito bancário, trocado e acumulado sempre em seu interior, ter se constituído na grande massa da moeda atual. Alheios a esse entendimento e ao fato de serem os créditos produtos de um sistema emissor que não precisa de poupança prévia para bancá-los, sociedade e governo não enxergam a possibilidade imediata de se voltarem a um projeto de expansão de oferta onde, para se alinharem às condições de mercado, partilhariam com o sistema bancário parte dos custos e riscos no direcionamento de empréstimos à produção. Dissipando a miragem da poupança prévia para poder investir, o que só o faz patinar na arrecadação de superávits que não cobrem os próprios juros que promove, o governo deveria se dar conta de que o real desafio brasileiro é outro. Sem abrir mão do controle inflacionário, seria estender equalizações de taxas de juros, seguros de garantias e simplificação de processos para que o sistema bancário efetivasse contratações de empréstimos à ampliação da capacidade produtiva de setores estratégicos. Se assim fizesse, calibraria injeção de liquidez à economia pelo lado da oferta, ancorando novos fluxos de gastos em aumento de produção competitiva. Passaríamos a ter aceleração interna, ficando menos dependentes, como estamos, dos ventos do mercado internacional. Ao contrário da noção de escassez que serve de pano de fundo a um pensamento que acaba por realizá-la de fato, não nos faltam recursos nem tecnologia para a economia responder com oferta aos gastos movidos por empréstimos assim direcionados. Falta-nos, sim, uma revisão conceitual de base para desmistificarmos idéias primais, inscritas em tempos anteriores aos grandes saltos tecnológicos na produção, de um lado, e na operação monetária do sistema bancário, de outro. Precisamos rever idéias que opõem o pensamento teórico à obviedade que pulsa da vida empírica das empresas, onde o faturamento e o lucro que condicionam seus novos investimentos não excluem, mas sim dependem do consumo que lhes é dirigido. De onde, inclusive, havendo menor dissonância para se entender que poupança depende dos fluxos de gastos, mais se poderia esperar independência para remoção das viseiras que tapam os olhos e extraviam a sociedade brasileira da cobrança política que deve fazer aos governos que elege.