Título: Missão da ONU pacifica Haiti; desafio é a pobreza
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Fonte: Valor Econômico, 06/08/2007, Internacional, p. A10

Um par de barcos está ancorado logo atrás de um cais que se sobressai de Cité Soleil, uma imensa favela na capital do Haiti. Seus mastros são troncos de árvore empenados, apontando para o céu. Perto do fim de julho, o ar estagnado emana cheiro de lixo e não há vento para inflar as velas. No cais, vêem-se homens sentados, alguns desocupados, outros remendando redes, enquanto garotos nadam despidos pela água suja. É uma cena de pobreza gritante, mas também de paz, ainda que instável.

A Organização das Nações Unidas (ONU) está encarregada de manter a paz no Haiti desde a derrubada do presidente Jean-Bertrand Aristide, em fevereiro de 2004. Até pouco tempo atrás, contudo, não havia paz a ser mantida. A violência e seqüestros praticados pelas gangues locais assolava a capital, Porto Príncipe; Cité Soleil, nas mãos das gangues, era seu ponto central.

Em dezembro passado, sob o comando de um novo general brasileiro, as forças da ONU entraram em Cité Soleil, levantaram bases e se confrontaram a tiros com as gangues. Quando a ONU tomou conta da favela, os residentes voltaram-se contra os criminosos e quase todos os líderes destes foram mortos ou capturados. Em fevereiro, as tropas da ONU entravam em Cité Soleil apenas em veículos blindados. Agora, patrulham a favela a pé.

Algumas ruas de Cité Soleil foram pavimentadas com pedras e cimento; parte do lixo vem sendo recolhida. Os mercados ao ar livre voltaram, embora pouco haja para se vender e poucos sejam os compradores - 78% dos haitianos vivem com menos de US$ 2 por dia, segundo dados do Banco Mundial. Pergunte a quase qualquer morador de Cité Soleil se sua vida mudou nos últimos seis meses e a resposta será "sim". Antes, costumavam ser pobres e receber tiros. Agora, são apenas pobres.

Ainda assim, é um começo. Líderes estrangeiros começam a chegar ao país. No mês passado, o primeiro-ministro do Canadá, Stephen Harper, cujo governo libera grande parte das verbas de auxílio ao Haiti, visitou Cité Soleil - algo inimaginável há apenas alguns meses.

Na semana passada, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, esteve em Porto Príncipe. Embora existam reclamações de má conduta dos soldados, a maioria dos haitianos quer a permanência da ONU. Canadá à parte, a maior parte do dinheiro para a missão vem dos Estados Unidos e França e a maioria das tropas, de países da América Latina. Ban afirmou que recomendará a extensão do mandato da missão por pelo menos mais um ano, quando este acabar em outubro.

A ONU apenas poderá declarar vitória se deixar atrás de si uma força policial eficiente, possibilidade ainda bem distante. O chefe da missão, Edmond Mulet, admite a necessidade de pelos menos 22 mil policiais, embora a nova força tenha só 8 mil membros. A cada seis meses, somam-se cerca de 500 novos recrutas, embora recente avaliação tenha acabado com número similar de demitidos.

Em Cité Soleil, a polícia patrulha só em conjunto com as forças da ONU. As delegacias de polícia ainda não foram reconstruídas. Suas paredes esfareladas estão repletas de marcas de tiros e rodeadas de lixo. A polícia haitiana, porém, é um modelo de eficiência se comparada aos tribunais e às prisões superlotadas. As três tentativas para reformar o Judiciário emperraram no Parlamento.

O fraco mecanismo de cumprimento da lei se depara com uma poderosa indústria de tráfico de drogas. O Haiti é um movimentado ponto de transbordo da cocaína colombiana destinada aos EUA. O dinheiro do narcotráfico está infiltrado na política. No mês passado, helicópteros dos EUA da baía de Guantánamo quase capturaram Guy Philippe, líder de um bando rebelde que ajudou a derrubar Aristide e que é considerado pelo governo americano como o chefe informal do tráfego no país. Depois de conseguir fugir dos helicópteros, ele foi ao rádio para proclamar sua inocência. Por um acordo de 1997, os EUA capturam traficantes suspeitos no Haiti sem procedimentos formais de extradição.

René Préval, eleito presidente do Haiti no ano passado, é visto como um político competente, assim como alguns de seus principais auxiliares. Embora o país careça de serviços públicos, há alguns fracos sinais de renascimento econômico. Contribui para a economia a redução dos seqüestros, que caíram do pico de 80, em agosto de 2006, para apenas seis em junho, segundo a ONU.

No maior investimento estrangeiro dos últimos anos, a operadora de telefonia móvel Digicel, de Bermudas (uma possessão britânica), gastou US$ 260 milhões no país, desde sua chegada em maio do ano passado. Informa ter 1,4 milhão de clientes, um em cada seis haitianos. Ghada Gebara, da Digicel, diz ter conseguido encontrar pessoal local qualificado, embora com dificuldade.

As esperanças de criar mais empregos recaem principalmente na recuperação das exportações do setor de vestuário, que eram significativas antes dos caos dos anos 90. Os EUA concederam acesso integral livre de tarifas às exportações de roupas haitianas, o que garante ao país vantagem sobre a vizinha República Dominicana e outros países centro-americanos, que também gozam de certos benefícios. Para aproveitar a situação, no entanto, estradas, portos e aeroportos precisariam ser aperfeiçoados.

Começa a ser debatida a privatização de portos e aeroportos, além das estatais de eletricidade e de telecomunicações. A maioria dos haitianos com eletricidade a obtém a partir de geradores próprios ou baterias, e os blecautes são comuns. Nos últimos meses, as operadoras telefônicas de linhas fixas reduziram pela metade seus quadros de funcionários.

Em rara entrevista coletiva, durante a visita de Harper, o presidente Préval comparou seu país a um "pequeno veleiro", que "tende a ser prejudicado quando o vento não é muito forte". Assim como os barcos em Cité Soleil, a economia e o governo haitianos continuam rudimentares e sem força. O país, contudo, começa novamente a se mover, mesmo que de forma hesitante.