Título: Patentes pipeline e direitos adquiridos
Autor: Basso, Maristela
Fonte: Valor Econômico, 03/08/2007, Legislação & Tributos, p. E2

O artigo 230 da Lei de Propriedade Industrial - a Lei nº 9.279, de 1996 - introduziu no direito brasileiro um sistema de concessão de direitos patentários por meio de um mecanismo especial e excepcional de revalidação de patentes concedidas em países estrangeiros - o chamado sistema pipeline. A inclusão desse sistema no Brasil deu-se como condição de conformação dos freios e contrapesos do comércio mundial, da internalização das regras transitórias de admissão na Organização Mundial do Comércio (OMC) e em decorrência da posição de liderança que o Brasil pretendia exercer no comércio internacional contemporâneo. Deste contexto é que nasce a proteção patentária a produtos obtidos por meios ou processos químicos e a substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos que, até 1996, não eram protegidos no Brasil.

A forma de concessão das patentes via pipeline no Brasil, como nos demais países membros da OMC, é, em tudo, excepcional, haja vista que se exclui o exame nacional a respeito da existência ou não dos requisitos de patentabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Isto se dá justamente porque asseguramos, em nível interno, os princípios de ordem pública internacional que mandam reconhecer os direitos adquiridos em outro país e salvaguardar a continuidade da personalidade jurídica (dos direitos e obrigações), mantendo-se, porém, no caso das patentes pipeline, a análise em relação ao atendimento das condições nacionais impostas pelo artigo 230 da Lei de Propriedade Industrial , à observância dos artigos 10 e 18 da mesma lei e à comprovação da concessão da patente no país estrangeiro de origem.

Quando se está diante de uma regra excepcional, como a do artigo 230 da Lei de Propriedade Industrial, todas as lições de hermenêutica conduzem à necessidade de uma interpretação consistente, segundo a qual os princípios de direito interno devem ser analisados em consonância com as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil pertinentes à matéria, possibilitando-se uma relação harmônica do sistema jurídico nacional com o internacional. Ademais, as regras internas devem ser interpretadas de forma sistêmica, já que a clara intenção do legislador nacional foi não apenas a de aceitar a patenteabilidade de invenções antes desprotegidas, mas também a de estabelecer um mecanismo transitório de proteção que beneficia as entidades inovadoras.

Entretanto, hoje é visível uma certa tendência de flexibilizar as regras de propriedade intelectual, restringindo os direitos daquelas entidades que tanto investiram em inovação. Essa tendência implica um visível e lamentável reflexo na duração das chamadas patente pipeline, o que gera um descompasso entre os planos nacionais e internacionais.

-------------------------------------------------------------------------------- Fora do marco regulatório relativo à propriedade intelectual paira sempre a tensão de um jogo onde os direitos ficam ameaçados --------------------------------------------------------------------------------

O parágrafo 3º do artigo 230 da Lei de Propriedade Industrial estabelece que, "uma vez atendidas as condições estabelecidas naquele artigo e comprovada a concessão da patente no país estrangeiro onde foi depositado o primeiro pedido, será concedida patente no Brasil, tal como concedida no país de origem". Ademais, determina o parágrafo 4º do artigo 230 da legislação que "fica assegurado à patente concedida no Brasil, com base no sistema pipeline, o prazo remanescente de proteção no país onde foi depositado o primeiro pedido, contado da data do depósito no Brasil e limitado ao prazo previsto no artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial".

A expressão "tal como concedida no país estrangeiro" implica dizer que a patente de revalidação no Brasil é uma patente reflexo do direito validamente constituído em outro país, cuja observância decorre da aplicação do disposto no artigo 17 da Lei de Introdução ao Código Civil. Ao se revalidar, no Brasil, a patente estrangeira, se reconhece o ato constituído no exterior. Se, porventura, a proteção patentária for prorrogada no país de origem, por meio da emissão de um certificado complementar ou pela extensão da própria patente - já que ambos podem ser concedidos pelo mesmo órgão administrativo estrangeiro e têm a mesma função, gerando os mesmos direitos e obrigações - esta prorrogação estende-se também no Brasil, desde que respeitado o prazo limite de 20 anos do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial.

E não poderia ser diferente. O ato de se reconhecer/revalidar no Brasil uma patente validamente conferida no país estrangeiro, "tal como lá concedida", significa dar-lhe vigência e eficácia aqui da mesma forma que ocorre no país de origem. Não há outra interpretação capaz de garantir e assegurar direitos aos nacionais e estrangeiros. Situações jurídicas constituídas em países estrangeiros são asseguradas em nosso país. Não obstante as singularidades, as patentes pipeline em nada se diferenciam dos demais direitos adquiridos e reconhecidos em países estrangeiros: estendendo-se ou restringindo-se o prazo de proteção no país de origem, estende-se ou restringe-se no Brasil.

Diferente disto seria negar imperativos categóricos que mantém e sustentam a relação de complementaridade entre o direito interno e o direito internacional, além de uma flagrante violação da Lei nº 9.279. Fora do marco regulatório em matéria de propriedade intelectual, onde as patentes de invenção têm papel fundamental, paira sempre a tensão de um jogo onde os direitos ficam ameaçados, onde se arrisca o equilíbrio dos pesos e contrapesos que, se não observado, pode inspirar controvérsias internacionais e disputas jurídicas nacionais desnecessárias, além de representar um claro desestímulo à inovação e ao desenvolvimento.

Maristela Basso é advogada e professora de direito internacional da Universidade de São Paulo (USP)

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações