Título: A modernidade cobra seu preço
Autor: Knapp, Laura
Fonte: Valor Econômico, 03/08/2007, EU & Fim de Semana, p. 4

A recente tragédia com o avião da TAM faz parte de uma história terrível, porém real: a história dos acidentes. Foi o arquiteto, urbanista e filósofo Paul Virilio quem, numa exposição em Paris, lançou a idéia de "museu dos acidentes". Reunindo toda sorte de catástrofes - acidentes naturais, industriais, poluição, naufrágios, descarrilamentos - Virilio chegou à conclusão de que os acidentes aéreos são a tragédia do nosso tempo. Mais: os acidentes têm sua própria história. Segundo Virilio, as invenções que fascinam o homem, as novidades que a modernidade trouxe como signos de riqueza, produto de uma civilização progressista, estão agora cobrando seu preço. Por mais que a tecnologia da construção de aviões avance a passos largos, e que os técnicos insistam em sua segurança, estamos ainda diante da fatalidade que significa viver dependendo da técnica.

Desde a Revolução Industrial, fez-se a generalização progressiva dos eventos catastróficos. Para Virilio, devemos observar os acidentes com atenção, pesquisar sobre eles, do mais banal ao mais trágico, sem a ilusão de que poderemos ficar livres deles um dia, mas cientes de que apenas podemos retardar seus efeitos.

A idéia remonta à Antiguidade. Segundo Aristóteles, "o acidente revela a substância" e, logo, a invenção da substância é igualmente a invenção do acidente. Virilio atualizou a máxima: a invenção do avião criou a catástrofe aérea - que tem sua história, que não pode ser desprezada. A começar pela tragédia que marcou a história dos acidentes na era moderna: em maio de 1937, em Nova York, o incêndio do dirigível Hindemburg deixou 33 mortos.

O acontecimento que trouxe o fim da era dos grandes zepelins e o início do transporte por avião é o antecedente mais remoto do acidente com o avião da TAM. Virilio pergunta-se, lacônico: "O que acontece abruptamente ao homem frente às suas criações?" Resposta: a escalada do "acidente pelo acidente", que explica a sensação de perplexidade que resta, no final, ao vislumbrar-se que o acidente aconteceu no mesmo aeroporto onde já ocorreram outros.

Virilio aponta para uma situação paradoxal: embora dispondo da tecnologia capaz de lhe permitir prevenir colisões e situações de perigo, não é incomum que sejamos incapazes de fazê-lo. Assim, painéis eletrônicos, registros, caixas pretas tornam-se a própria assinatura de uma tragédia, seu registro mais detalhado. Virilio mostra isso na imagem de um piloto que vê dois aviões em rota de colisão, sem possibilidade de reação. Desastre é algo que se escreve na tela dos computadores, sentencia.

Acidente muito semelhante ao ocorrido com o avião da TAM é registrado por Virilio como um dos piores do século XX. Em 4 de outubro de 1992, em Amsterdã, um avião de carga chocou-se contra um prédio residencial. Morreram 43 pessoas. A imagem do prédio, com sua massa de concreto, contrasta com o efeito produzido pelo impacto do bólido: somos confrontados com o fato de que mesmo as grandes obras de engenharia são frágeis frente aos desastres aéreos. Outro acidente semelhante ao da TAM ocorreu cinco anos depois, em dezembro de 1997, em Irkoutsk, Sibéria, Rússia. A queda de uma avião de transporte militar sobre conjuntos habitacionais também logo após sua decolagem mostrou o que pode ser uma tragédia aérea: foram cerca de 100 mortos. Na cena, o gigantismo da carcaça anuncia o acidente a quem observa. Vê-se a tragédia ao longe, do mesmo modo que a cauda do avião da TAM, nas imagens dos telejornais, anuncia a catástrofe. No mesmo ano, do outro lado do Atlântico, um Boeing 747 da TWA teve uma queda inexplicável, em 17 de julho, com 230 mortos. Antes, em 1986, a nave espacial Challenger explodiu pouco mais de 70 segundos após seu lançamento, na Flórida, Estados Unidos.

Para Virilio, o limite entre acidente e atentado ficou evidente nos ataques de 11 de setembro de 2001, em Nova York. Ali ficou claro que aviões são armas fatais nas mãos de terroristas. Nesse instante, acidentes podem ser transformados em atentados. Aqui, a imagem do avião da TAM entre os escombros fez muitos lembrarem da imagem da catástrofe americana. Guardadas as proporções, instaura-se nos dois casos a mentalidade do medo. O abandono da estrutura aérea pelo governo, uma das prováveis causas do acidente da TAM, não estaria na mesma posição dos atentados de Nova York?

O que estes fatos querem nos dizer? Virilio é taxativo: chegará um dia em que o progresso do conhecimento se tornará intolerável, em função de seus efeitos. Virilio desconfia das tecnologias que promovem o progresso humano. Friedrich Nietzsche, em seu ensaio "O Nascimento da Tragédia", escreveu nos anos seguintes à guerra franco-prussiana de 1870: "... uma cultura baseada nos princípios da ciência deve ser destruída quando começa a crescer de maneira ilógica, ou seja, a se omitir frente às suas próprias conseqüências."

Tragédias como a do avião da TAM são, de alguma forma, a suspensão do estado de civilização, caracterizada pelo desaparecimento de todo o aspecto positivo do conhecimento. Para Henri Atlan, em "A Ciência é Inumana?", trata-se de dar vazão, de alguma forma, ao absurdo da destruição do conhecimento acumulado através dos séculos. "O poder humano, aumentado excessivamente, transforma-se em causa de ruína", apelo desesperado que diz que é preciso desinventar nossas rotinas. Hoje, todos viajamos de avião. Voltará, talvez, o tempo em que poderemos resolver nossos problemas no virar da esquina?

Para as famílias das vítimas, confrontadas com a tecnologia à disposição das autoridades, dos avisos sucessivos de perigo, vale a declaração de Madame Swetchine, no século XIX, citada por Vitor Hugo: "É impressionante aquilo que não podem fazer aqueles que tudo podem fazer". Esse aforisma resume perfeitamente o paradoxo que se segue a cada nova catástrofe aérea no pais, e a tantos inquéritos e investigações que se seguem depois deles. Para as vitimas, nada mais inútil.

Em conclusão, deve-se retomar Henry Atlan, aplicando seus questionamentos ao acidente aéreo: As investigações posteriores e a descoberta da causa devem nos tranqüilizar? Ou, ao contrário, em relação ao caos aéreo, devemos, agora sim, nos assustar? E, finalmente, são o Estado e as empresas, com sua incompetência, desumanas? Essas perguntas vinculam o questionamento da política do espaço aéreo atual, o desenvolvimento da tecnologia pelas empresas e a relação com as famílias das vitimas num momento de tragédia. Ontem, foi a tragédia do avião da TAM, mas, como diz o parente de uma das vitimas, qual novo acidente nos aguarda no próximo vôo? É provável que medidas de segurança sejam adotadas no aeroporto de São Paulo, e é preciso fazer com que o Estado reitere sua ação, pois a verdade é que, como na máxima popular, o pior realmente acontece.

Jorge Barcellos, historiador, mestre em educação/UFRGS, é coordenador do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre