Título: Sem medo de voar
Autor: Knapp, Laura
Fonte: Valor Econômico, 03/08/2007, EU & Fim de Semana, p. 4

A enorme confusão que tomou conta do transporte aéreo no Brasil desde a queda do avião da Gol na Amazônia, meses atrás, e aumentada desde o acidente com o avião da TAM não tira validade àquela que talvez seja a única boa notícia para pilotos e comissários de bordo: a expansão de seu mercado de trabalho. Com crescimento anual previsto, segundo o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea), ligado ao Ministério da Aeronáutica, de 12% nos próximos cinco anos, pode faltar muita coisa aos tripulantes de aeronaves, menos oferta de trabalho. "Praticamente qualquer pessoa com habilitação tem emprego", diz Alberto César Bertolucci, instrutor da Escola de Aviação Congonhas (Eacon), em São Paulo. "É grande a falta de pessoal no mercado."

Raphael dos Santos Salgado, de 22 anos, formou-se no curso para comissário de bordo oferecido pela Eacon em abril. No dia 13 ele assina contrato com a TAM e começa o treinamento uma semana depois. "Estou animado, cheio de esperança, tenho tudo para decolar na profissão", diz. O recente acidente com o avião da empresa em que vai trabalhar não deixa nenhuma dúvida sobre a escolha de carreira? "Todo mundo está exposto a qualquer tipo de risco. É muito relativo. Mesmo pessoas que não estavam a bordo sofreram fatalidades." Além da TAM, depois de terminar o curso e passar por uma prova "nada fácil" da Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), obrigatória para comissários e pilotos, ele foi entrevistado também pela Emirates, companhia aérea que deve inaugurar, a partir de 2008, vôos de Dubai para o Brasil. Na TAM, Salgado deve começar com o salário-base, de R$ 1 mil, mas também ganhará acréscimos por quilômetro voado. Terá oito folgas por mês, pelo menos uma delas no domingo.

Há 29 anos no setor, 24 dos quais na Transbrasil, 1 na TAM e os últimos 4 na Gol, o comandante Marcos de Almeida Rodrigues aceitou convite para se transferir para a OceanAir, que vai inaugurar linhas para a América Latina a partir do mês que vem. A empresa estava à procura de profissionais com experiência prévia em aviões Boeing 767, que Rodrigues comandava nos tempos da Transbrasil.

Davilym Dourado / Valor O comandante Rodrigues, que acaba de aceitar convite da OceanAir, sobre estresse causado por acidentes: "Em 30 anos de aviação comercial, nunca ninguém disse 'não agüento mais'" A crise no setor, portanto, parece não desestimular iniciantes ou profissionais experimentados. Na opinião de Rodrigues, o momento pelo qual passa o setor aéreo não difere em nada do que acontece em outros setores, em matéria de deficiências.

"Faltam escolas, hospitais, saúde pública, estradas. Tudo que depende da infra-estrutura do governo é negligenciado até o momento do caos", afirma. "O setor está nas mãos dele, que não acompanhou a evolução dos acontecimentos." E isso, segundo o comandante, teria levado a um atraso em média de 20 anos, "colocando mais estresse na carreira". Mas ele também diz que esse problema não é diferente do verificado entre profissionais de outras áreas. Um de seus irmãos, por exemplo, cansou-se dos hospitais públicos no Brasil e foi praticar medicina nos Estados Unidos. "As pessoas acham que voar tem glamour. Mas não temos Natal, nem Ano Novo garantidos. O estresse já vem com a ausência de casa."

O estresse tem níveis variados, o mais agudo deles decorrendo, certamente, da morte de parentes ou amigos. Mas há também a perda do emprego, como aconteceu com o pessoal da Transbrasil e da Vasp. Na aviação, pilotos e comissários têm de aprender a conviver com essas pressões. "Não devemos deixar o estresse evoluir", afirma Rodrigues. Em princípio, a tripulação das aeronaves conta com assistência psicológica, ainda que bem menos utilizada no Brasil quando se compara com o exterior. Um dos principais pontos para lidar com o estresse, fundamental na vida dos tripulantes, explica o comandante, é que cada um saiba gerenciar sua própria carga de trabalho - o que não é fácil, com as idas e vindas das viagens, a troca constante de fuso horário, a ausência de casa e o afastamento dos parentes, temas tratados em vários estudos internacionais.

O Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA), que congrega pilotos e comissários, conta com uma diretoria específica de saúde. O site da entidade tem estudos sobre automedicação em vôo, transtornos do sono, radiação solar e cósmica e alimentação, entre outros assuntos. Acidentes como os dois ocorridos nos últimos dez meses aumentam esse estresse. Mas será que fazem os pilotos quererem mudar de profissão?

A realidade é que a tripulação das aeronaves é treinada para lidar com desastres. Alguns chegam a se afastar por certo tempo, sob o impacto imediato causado por um acidente, mas não há notícia de desistência da profissão - entre pilotos, pelo menos. "Em 30 anos de aviação comercial, não sei de ninguém que tenha dito 'não agüento mais'", garante o comandante Rodrigues.

É possível que isso aconteça entre funcionários novos, que acreditam que a profissão é uma coisa, cheia de glamour, e percebem que há muita "ralação" na verdade, diz. Afinal, para entrar na aviação comercial, os pilotos precisam de alguns anos de treinamento, primeiro em cursos teóricos, depois práticos e em centenas de horas de vôo até conseguir um emprego, tempo que pode levar o mesmo de um curso universitário. Não se desiste tão fácil da profissão.

O maior fator de estresse para tripulantes não está nas tragédias ocorridas recentemente com os aviões da Gol e da TAM, ou qualquer outro acidente. O mal-estar, ouve-se muitos dizerem, vem mesmo do prolongamento da crise que tomou conta do setor nos últimos meses. Com carga de trabalho contínua que não pode ser superior a 11 horas (9,5 de vôo) e intervalo de 12,5 horas para descanso, não é difícil imaginar o que atrasos e cancelamentos de vôos acabam fazendo com as escalas de serviço. Interrupções na jornada impedem que a tripulação continue sua programação e é preciso trocar o grupo para o vôo seguir em frente. Se alguém tinha consulta marcada com um médico, pode esquecer. Se planejava passar o aniversário do filho em casa, provavelmente deixará uma criança desgostosa. Com a transferência de pouso para outro aeroporto, lá se vai o dia de folga previsto.

O bolso também sofre. Pilotos e comissários trabalham com um salário fixo, que geralmente duplica ou triplica em função das horas ou quilômetros voados. Mas o cronômetro só começa a funcionar quando as turbinas são acionadas. Se o avião não levanta vôo ou se precisa parar no meio do caminho, durante uma conexão, interrompe-se a contagem do tempo dedicado ao trabalho.

O salário fixo de comandantes de linhas internacionais, em empresas grandes, é de R$ 6 mil a R$ 8 mil, mas no fim do mês chega a somar de R$ 15 mil a R$ 20 mil. Em linhas domésticas, o contracheque fica entre R$ 10 mil e R$ 15 mil. Comissários ganham um salário-base e acréscimos que podem somar de R$ 1.800 a R$ 2.500 ou até R$ 4 mil, se dominam o inglês ou outra língua estrangeira, quando então poderão ser promovidos para linhas internacionais. Como pilotos e co-pilotos, também recebem por horas ou quilômetros voados. Vôos noturnos são pagos em dobro. Se forem noturnos e aos domingos, ganham o triplo.

Em média, explica o comandante Célio Eugênio de Abreu Junior, assessor de segurança de vôo e relações internacionais do SNA, uma tripulação voa de 70 a 80 horas por mês. O sindicato luta pela inclusão, nos contratos de trabalho, de uma cláusula pela qual mudanças na programação original da escala teriam de ser compensadas.

-------------------------------------------------------------------------------- No site do Sindicato Nacional dos Aeronautas, há chamadas de pelo menos 15 companhias aéreas à procura de funcionários --------------------------------------------------------------------------------

"Os salários caíram muitíssimo", afirma Graziela Baggio, presidente do SNA. Apesar dos protestos do setor, não há homogeneidade na forma de computar o trabalho extra. A Gol, como outras do setor, paga por hora, ao passo que a TAM paga por quilômetro. "Somos radicalmente contra. A empresa tem que pagar por hora", protesta Graziela. Procurada, a TAM preferiu não dar entrevistas, limitando-se a informar suas regras para contratação da tripulação.

O tempo passado em hotéis ou mesmo no aeroporto, enquanto não há uma decisão sobre a partida do avião, não é computado no contracheque dos tripulantes. Na crise de agora, essas situações tornaram-se bastante freqüentes. "O processo de crise agrega mais estresse ocupacional ao tripulante", diz o comandante Abreu Junior. "O modelo de gestão atual, a malha aeroviária apertada, transferências e cancelamentos de vôos têm deixado os pilotos no limite." Quando a malha era menos intensa, a tripulação fazia três pousos e parava. Hoje, faz cinco com folga de 15 minutos entre um e outro, afirma Abreu Junior.

O fim da Transbrasil e da Vasp e a venda da Varig só contribuíram para complicar ainda mais a vida das tripulações. Companhias já estabelecidas ou as recentes tiveram de investir em novos vôos com uma velocidade maior do que a comum. Por outro lado, o boom da aviação - que em setores estabilizados ou organizados da economia são comemorados com champanha - acabou por levar ao descontrole e ao esfacelamento uma infra-estrutura que não se renovava há anos.

Se as previsões de compra de aviões se concretizarem, é possível que faltem pilotos para comandá-los, prevê a presidente do SNA. Com a crise que colocou a Varig em letargia durante alguns anos, centenas de pilotos foram arregimentados para trabalhar em companhias aéreas estrangeiras. "A aviação vem passando por um crescimento interessante no mundo todo", comenta Graziela. Dados da International Air Transport Association (Iata) mostram que o tráfego internacional de passageiros cresceu 6,3% no primeiro semestre deste ano, em comparação ao mesmo período do ano anterior. Em 2006, já se havia registrado alta de 5,9%. A previsão para 2007 é de que o tráfego internacional de passageiros cresça 4,7% na América Latina, pouco menos que a expansão esperada para o mundo todo (4,9%).

Já o transporte de carga pode aumentar 4,6% nos países latino-americanos e 5,5% no mundo. Ainda de acordo com a Iata, nos próximos 18 meses devem ser entregues cerca de 1.800 novos aviões no mundo, quantidade equivalente a 10% da frota internacional existente. A maior parte deles, 35%, rumará para a Ásia, para atender à crescente demanda dos mercados chinês e indiano. A Europa ficará com 26% do total e a América do Norte, com 25%.

Salários atrativos pagos no exterior e o fim de postos em empresas brasileiras não devem ter deixado muitas dúvidas sobre a decisão a tomar. A emigração, segundo o SNA, somaria 800 profissionais. As companhias internacionais pagam moradia, passagens para visita de parentes, além de escola para os filhos. "Mas acredito que o desejo deles é retornar para suas origens", diz Graziela. Ela calcula que haja 11 mil aeronautas no Brasil, dos quais entre 50% e 55% seriam filiados à entidade, entre ativos, aposentados e afastados temporariamente.

Os tripulantes que optaram por empresas estrangeiras voltarão ou não para o Brasil? O ponto fundamental é o salário. Se no Brasil pilotos voando em linhas nacionais ou para a América Latina ganham entre R$ 8 mil e R$ 10 mil, no exterior recebem cerca de US$ 12 mil. Mesmo com o dólar em queda, ainda é o dobro. A Gol, segundo Graziela, teria perdido muitos pilotos e, em conseqüência, tem aumentado seus salários, mas somente a fração relativa à hora voada dos comandantes. A companhia aérea não quis comentar o assunto. "Ao se normalizar o fundo de pensão da Varig e ao se restabelecer a tranqüilidade, teremos o retorno de 80% dos que estão lá fora", prevê Graziela.

O problema será se nada disso acontecer. Ainda de acordo com a presidente do SNA, até o fim do ano a Varig precisaria contratar 119 comandantes, 145 co-pilotos e 615 comissários de bordo para cumprir seu cronograma de volta à atividade plena. Em 2008, haveria a necessidade, com 14 novos aviões, de 42 comandantes, 42 co-pilotos e 432 comissários.

Com a chegada de novos aviões para a Gol, a companhia necessitaria, ainda em 2007, de 78 comandantes, 78 co-pilotos e 360 comissários e, para 2008, de outros 42 comandantes, 42 co-pilotos e 180 comissários. A BRA também já anunciou a compra de 15 a 20 aviões da Embraer, com mais de cem lugares, que demandariam, cada um, seis tripulações de um comandante, um co-piloto e quatro comissários. No site do sindicato, há avisos de pelo menos 15 companhias aéreas à procura de funcionários.

Em escolas particulares, o curso teórico para pilotos e comissários de bordo dura em média quatro meses, com carga horária diária de duas a três horas e meia, ou seis meses, com aulas no período integral aos sábados. O brevê é concedido pela Anac para pilotos privados com 40 horas de vôo. Com outras 110 horas, o aspirante pode começar a trabalhar em táxis aéreos, porta de entrada para a maioria dos pilotos. Ao acumular 1.500 horas de vôo, tem chances de ser contratado por grandes companhias, de acordo com o instrutor Bertolucci, da Eacon. O curso teórico custa R$ 1.300. As horas de vôo ficam entre R$ 200 e R$ 300. Nas empresas de táxi aéreo, geralmente o piloto consegue voar entre 60 e 80 horas por mês. Completa, assim, em cerca de um ano e meio o número de horas necessárias para se candidatar a um emprego numa companhia grande.

Na Wings Escola de Aviação, também de São Paulo, os alunos têm 230 horas de ensino teórico, entre teoria de vôo, conhecimentos técnicos, meteorologia, navegação e regulamentos do tráfego aéreo, informa o instrutor Hugo Viana. O gasto total para que um piloto privado obtenha o brevê, incluindo aulas práticas, é de R$ 10 mil.

A tendência, mundial, segundo Graziela, do SNA, é para formação de pilotos em cursos universitários. No Brasil, os cursos universitários teóricos duram cerca de três anos e são ministrados, por exemplo, pela Estácio de Sá, no Rio, PUC do Rio Grande do Sul e Universidade Tuiuti, no Paraná.

O curso para comissários inclui treinamento em serviços, comportamental e no avião (que engloba conhecimento dos equipamentos e procedimentos de emergência, combate a fogo, sobrevivência na selva e no mar e segurança). O treinamento dura 30 dias úteis. Além de segundo grau completo, conhecimentos de uma segunda língua e o certificado de formação da Anac, para ser contratado é necessário ter bom humor e controle emocional.