Título: Modéstia à parte, um rico legado
Autor: Castello, José
Fonte: Valor Econômico, 03/08/2007, EU & Fim de Semana, p. 14

O próprio Carlos Drummond de Andrade tratou em palavras o que deixaria para o mundo da língua portuguesa e, ao contrário de outros poetas, ele parece modesto quanto ao valor de sua "herança". Num soneto justamente chamado "Legado", que começa com a pergunta sobre o que ficará do poeta ("Que lembrança darei ao país que me deu/ tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?"), ele responde: "De tudo quanto foi meu passo caprichoso/ na vida, restará, pois o resto se esfuma,/ uma pedra que havia em meio do caminho."

Para nós, a quem ele legou sua "lembrança", essa pedra é símbolo de um dos mais importantes conjuntos de poemas produzidos no século XX. A avaliação de Francisco Achcar, professor da disciplina de Língua e Literatura Latina no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, (USP), explica por que o poeta mineiro, em sua singeleza, permanece atual, contemporâneo e referência para outros poetas que se seguiram a ele, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) à poesia concreta, de Tom Jobim (1927-1994) a Chico Buarque.

Drummond é muito lido, admirado e estudado e sua influência é ampla e profunda. Nenhuma forma de imposição (escola) ou disfarce (televisão) serve para criar o gosto e o hábito da leitura, especialmente da leitura de poesia, que tem seus requisitos específicos. "Jorge Luis Borges dizia que a leitura deve produzir felicidade e não há felicidade obrigatória", diz Achcar, que também é coordenador de Português do Curso e Colégio Objetivo e incluiu na grade do terceiro ano do ensino médio um dos livros mais densos dos escritor, "A Rosa do Povo", exigido nos vestibulares da USP e da Unicamp.

No dia 17, faz 20 anos que Carlos Drummond de Andrade morreu. Ou Carlos, como o neto Pedro Drummond o chama até hoje. Ao lado dos irmãos Carlos Manuel e Luís Maurício, filhos de Maria Julieta (1928-1987), a única filha do poeta, ele batalha incansavelmente pela preservação do patrimônio da família. "Carlos explicou para mim como queria que toda a obra dele fosse publicada", diz Pedro. "E falou que, se eu tivesse alguma dúvida, deveria consultar os amigos dele, o escritor Ary de Andrade, o romancista Cyro dos Anjos, o advogado Plínio Doyle, o escritor Fernando Sabino e o empresário Alfredo Machado. Infelizmente, todos morreram, mas eu sempre respeitei a vontade dele. Tenho fama de durão, mas é preciso", admite.

A editora Record, que detém os direitos comerciais de publicação da obra do escritor, prepara um lançamento, não inédito, para o fim do ano. É uma coletânea chamada "Receita de Ano-Novo", que sairá no Natal.

Não é apenas essa novidade que movimenta a família Drummond. Neste domingo, está prevista a chegada de Miguel, filho de Pedro e bisneto de Drummond. "Essa será a nossa maneira de lembrar dele, aumentando a família", diz.

Durante a infância, Pedro passava as férias no Rio com o avô, porque nasceu e viveu em Buenos Aires até completar 20 anos - a mãe casou-se com um argentino e era coordenadora do Centro de Estudos Brasileiros na cidade. Quando vinham ao Brasil, Pedro se lembra de que quando tinha uma dúvida de ordem intelectual, mesmo que não soubesse onde encontrar a resposta, preferia perguntar para o avô. "Ele pegava os livros, ficava lendo em voz alta", conta. "Era brincalhão, contava as histórias de um gigante chamado Cafas Leão, que ele tinha ouvido do pai dele, que por sua vez tinha ouvido do pai dele. Para ele, era uma história para dar medo. Mas, para nós, ele não era um gigante tão assustador: era porco, limpava-se com as árvores, a gente não tinha medo. As histórias eram tão divertidas, eu sempre pedia para ele repetir. O poema 'Didática', do livro 'Boitempo', fala desse gigante", recorda-se Pedro.

As pastas com as indicações de como a obra de Drummond deveria ser publicada foram doadas ao Arquivo Museu de Literatura da Casa Rui Barbosa, no Rio, onde paralelamente existe um trabalho de inventário do poeta. As seis mil crônicas que ele publicou no "Correio da Manhã" e no "Jornal do Brasil" estão sendo digitalizadas. O selo Luz da Cidade também lançou o CD "Reunião - O Brasil dizendo Drummond", com vários artistas recitando poemas. "Há muita demanda por assuntos drummondianos", comenta Pedro.

A próxima etapa é conseguir um terreno ou uma casa para a criação de um instituto, sem fins lucrativos, para cuidar do acervo familiar do Drummond - a biblioteca, a iconografia, a correspondência familiar, lembranças, fotografias, a ser supervisionado por Lélia Coelho Frota, que foi amiga pessoal do poeta e editou as cartas trocadas entre ele e Mário de Andrade ("Carlos & Mário", editora Bem-Te-Vi).

O interesse pela obra de Drummond é tão grande que não há fronteiras para a influência que ele exerce sobre as pessoas. Há quem torça o nariz, mas a obra do autor chega até mesmo às novelas.

A cena ocorre na metade da década de 1940 em Serranias, cidade fictícia do Projac da TV Globo. Lucas (vivido pelo ator Cauã Reymond), ex-pracinha da Força Expedicionária Brasileira, conversa com o irmão Bruno (Thiago de Los Reyes) sobre poesia. Sentindo o interesse do irmão pelo assunto, diz que vai até a livraria procurar algum livro de poesia moderna brasileira. Chegando lá, pergunta à proprietária: "Dona Pérola, a senhora tem algum livro de Carlos Drummond de Andrade?" Nessa época, o poeta já era conhecido e publicado.

A idéia da autora da novela "Eterna Magia", Elizabeth Jhin, mineira e fã de Drummond, é estimular a leitura no meio da trama de época. "Eu adoraria saber que despertei o interesse em algum leitor adormecido por ter feito uma referência a alguma obra ou autor. E, justamente por acreditar nessa possibilidade, vou continuar incluindo pílulas culturais no texto da novela." A obra de Carlos Drummond de Andrade está mais viva do que nunca.