Título: O desligamento do poeta
Autor: Castello, José
Fonte: Valor Econômico, 03/08/2007, EU & Fim de Semana, p. 14

No dia 17, vai fazer 20 anos que Carlos Drummond de Andrade morreu. Autor de uma obra capital na literatura brasileira do século XX, Drummond é lembrado, quase sempre, graças ao pudor e a discrição que o caracterizaram, como um exemplo radical da separação entre o poeta e a poesia. O século XX se pauta por figuras extremas e uma arte radical. Gerou poetas como o excessivo e apaixonado Vinicius de Moraes, para quem a poesia esteve sempre não só ligada, mas misturada à vida. E um poeta-viajante como João Cabral de Melo Neto, em quem a poesia se confundiu, desde o início, com as viagens e o movimento. Foi o século de Manuel Bandeira, poeta por excelência dos afetos fortes, das imperfeições humanas e das coisas do chão. Nesse século informal e irrequieto, a figura discreta e silenciosa de Drummond, de fato, destoa. Parece quase irreal.

A poesia de Drummond, contudo, desmente o poeta que a escreveu. Ela trabalha com os materiais transitórios da memória, com os pequenos afetos e com os ainda mais fluidos sentimentos do mundo. É uma poesia que se debruça sobre a existência e a transforma em objeto de decifração. Que já não pode viver sem a vida. Basta pensar em um poema simples como "Drama Seco", que está em "Boitempo" e abre com uma pergunta banal: "O noivo desmanchou o casamento./ Que será da noiva - toma hábito, ou se consagra à renda de bilro para sempre?" Ele é apenas um exemplo, entre tantos, do modo direto como Drummond se ligou à realidade. Sem exageros, sem requintes, com a leveza do coloquial.

No entanto, foi Drummond também quem escreveu, em "Aspiração": "Aspiro antes à fiel indiferença/ mas pausada bastante para sustentar a vida." Indiferença, insensibilidade, quase desinteresse: essa é a via que o poeta propõe para enfrentar a existência.

Ligada dramaticamente ao real, ainda que com o disfarce da negligência, a poesia de Drummond parece desmentir o homem quase irreal que foi Carlos. Parece, mais ainda, dispensar esse homem. Poesia que prescinde do poeta? Essa é uma idéia que o próprio Drummond desenvolveu, em 1968, na morte de Manuel Bandeira. Está em "Desligamento do Poeta", poema guardado em "As Impurezas do Branco". "A circulação do poema/ sem poeta: forma autônoma/ de toda circunstância,/ magia em si, prima letra." Ela parece ser uma declaração de princípios, mas é, sobretudo, uma constatação fatalista a respeito do viver. Diz que, seja forte, mundano ou recluso, o poeta estará, de qualquer modo, condenado a desaparecer em seu poema.

Contudo, se lemos a poesia de Drummond com atenção, vemos que o poeta está lá, espremido entre os versos, mas bem inteiro. Talvez em outra forma, transformado em letra - mas suas decisões, suas escolhas, suas imagens, suas palavras são, ainda, a presença de Carlos. Um passeio pela biografia do poeta nos ajuda a ver. Carlos, o menino tímido, passou um tempo como aluno interno da Congregação do Verbo Divino. E depois, como interno dos jesuítas, no obscuro Colégio Anchieta. Os padres, porém, o expulsaram. A justificativa é o que interessa: uma inacreditável "insubordinação mental". Ora, foram os jesuítas, por vias tortas, os primeiros a detectar a singularidade de Carlos. Inquietação interior ("insubordinação mental") que ele sempre se esforçou em desmentir com a vida discreta e algo irreal que viveu - e nos deu.

Formou-se em Farmácia, profissão de homens frios, mas não a exerceu. Professor de geografia e de português, não deu grandes saltos nem se destacou. Tornou-se, enfim, um burocrata exemplar, que batia ponto no Ministério da Educação, no Rio. Ali, fixou de vez a imagem que parece desmentir sua poesia. Em sua cadeira de funcionário, Drummond - ao contrário de Vinicius, andarilho da noite e sempre inquieto no amor, e de Cabral, poeta-diplomata, sempre pronto a desembarcar no desconhecido - viajava por dentro de si. Ali mesmo, em sua cadeira de gabinete, com seu uniforme de burocrata e seu ar distante, sem precisar se apaixonar ou atravessar oceanos. Dali, observou o mundo, não pelas experiências eróticas ou pela embriaguez das viagens, mas pela lente mais porosa (e calma) da poesia.

-------------------------------------------------------------------------------- A poesia de Drummond está sempre onde não devia estar: surge das coisas menos esperadas, menos "poéticas" --------------------------------------------------------------------------------

Fez poesia, sobretudo, para decifrar o mundo. A seu ver, não existia instrumento mais eficaz para perfurar a grande casca do real do que o poema. Por isso Drummond tem uma linguagem precisa, tensa, afiada, resultado de sua longa e paciente luta com a linguagem. A poesia é uma arma, que precisa não só ser cultivada, mas aguçada. Assim, como já mostrou Marlene de Castro Correia em "A Magia Lúcida", um dos mais inteligentes ensaios já escritos sobre o poeta, a poesia se transforma em um aparelho de indagação metafísica e existencial. Essa poesia se refere ao mundo, sim - está conectada ao mundo e sem ele não pode existir. É o poeta que, discretamente, como o metódico operário vestido em seu uniforme de trabalho, se põe à sombra e se esquiva do poema.

É verdade: o conhecimento do mundo está sempre vedado não só ao poeta, mas a todos nós. Há sempre "uma pedra no meio do caminho", como diz Drummond em um de seus poemas mais conhecidos, "No Meio do caminho", guardado em "Alguma Poesia". O acesso ao mundo se dá, então, pelas laterais, por meio de artifícios e com instrumentos que permitem apenas uma aproximação indireta. O mundo é o Sol, que não se pode encarar, que exige sempre uma proteção. Esse filtro protetor é a poesia, que não é ciência, não é conhecimento, é pura dança em torno da verdade. Daí ser preciso que o poeta suporte a ambivalência, o paradoxo e, sobretudo, a ausência de respostas. Que trafegue pelas margens e se contente com uma visão enviesada e imprecisa.

A poesia se torna, assim, o lugar de uma luta interior, onde o poema defronta com os mais fortes sentimentos do mundo. É Marlene Correia quem nos faz lembrar de uma sentença de Octavio Paz que ajuda a ler Drummond: "Cada poeta inventa sua própria mitologia e cada uma dessas mitologias é uma mistura de crenças díspares, mitos desenterrados e obsessões pessoais." A mitologia de Drummond passa por Minas, passa pelo cotidiano, atravessa o mundo corriqueiro. Mas não é mineira, não pertence ao mundo, não pode ser simplificada, pois é poesia.

É uma mitologia, ainda assim, que não abdica da tensão, já que a relação do poeta com o mundo é sempre de suspeita e de desconfiança. De um poema, na verdade, pode-se esperar tudo. O amigo João Cabral percebia isso muito bem, tanto que, em versos escritos em 1945 e dedicados a Carlos Drummond, diz assim: "Não há guarda-chuva/ Contra o poema/ Subindo de regiões onde tudo é surpresa,/ Como uma flor num canteiro." A poesia de Drummond, João Cabral mostra, está sempre onde não devia estar: surge das coisas menos esperadas, menos "poéticas", sai de um cotidiano singelo, que parece não suportar (ou merecer) a poesia. E, ainda assim, se gruda a ela.

Há um poema que Drummond escreveu no início dos anos 1950, publicado em "Viola de Bolso", em que, de um modo sutil, ele registra sua perplexidade de poeta. Chama-se "Obrigado" e começa assim: "Aos que me dão lugar no bonde/ e que conheço não sei de onde/ aos que me dizem terno adeus,/ sem que lhes saiba os nomes seus,/ aos que me chamam deputado/ quando nem mesmo sou jurado,/ aos que, de bons, se babam: mestre!/ inda se escrevo o que não preste..."

Poema pouco citado pelos estudiosos do poeta, ele aponta elementos cruciais da poesia de Carlos Drummond de Andrade. A certeza de que as homenagens à poesia não devem ser confundidas com as homenagens ao poeta - o que assinala o caráter autônomo da invenção poética. O anonimato, contra todas as idéias de consagração e de mito, que sustenta a imagem do poeta como a de um homem que faz o que não escolheu e existe apesar do que escreve. A distância que separa o poeta de seus leitores, o que comprova o caráter mágico da poesia, estranha carta sem destinatário e que, apesar disso, seduz os que a lêem. As ilusões, enfim, que cercam a figura do poeta, a quem são atribuídos valores que, no entender de Drummond, não lhe dizem respeito e glórias que ele não fez por merecer.

Esse homem apartado de sua poesia, que parece assustá-lo tanto quanto a nós, seus leitores, foi Carlos, homem que, com sua vida metódica, seus horários de expediente e respirando o ar artificial e repetitivo do escritório, escreveu a poesia assinada pelo poeta Drummond. Abismo entre o homem Carlos e o poeta Drummond, abismo que no fim é a alma de Carlos Drummond.