Título: Três indagações sobre o aquecimento global
Autor: Veiga, José Eli da
Fonte: Valor Econômico, 07/08/2007, Opinião, p. A15

Vai demorar muito para que surja um documento impresso sobre o aquecimento global que supere a influência já obtida pelo livro de Al Gore: "Uma verdade inconveniente - O que devemos saber (e fazer) sobre o aquecimento global" (S.Paulo, Editora Manole, 2006). Daí a importância de tomá-lo como referência para melhorar a qualidade do debate, mesmo que a opinião pública brasileira ainda não atribua a esse tema a atenção que ele merece.

Este artigo expõe três dúvidas suscitadas pela leitura. Perguntas que dificilmente podem surgir quando se assiste ao premiado documentário de Davis Guggenheim, ou a alguma das próprias conferências, devido à rapidez com que os argumentos se sucedem.

Para mostrar a elevação na temperatura global, Gore usa um gráfico que registra os desvios em relação à média do período 1961-1990 (pags. 72-3). Nota-se, antes de tudo, uma regular marcha ascendente ao longo de 80 anos que precederam a Segunda Guerra Mundial. No entanto, em seguida há uma clara inversão de tendência que se estende até meados dos anos 1970, quando voltam as elevações. E passam a ser tão fortes e aceleradas que, dos 21 anos mais quentes já medidos, 20 deles ocorreram entre 1980 e 2005. Ou seja, houve um intervalo de um quarto de século (1947-1974) de relativo esfriamento se comparado a tudo o que ocorreu antes e depois.

O que intriga é que esse período intermediário corresponde justamente à fase em que o ritmo de crescimento da economia mundial bateu todos os recordes, a ponto de passar para a história como sua "Era de Ouro". Entre 1950 e 1973 foram registradas taxas médias de aumento do PIB mundial total e per capita da ordem de 4,9% e 3,8% respectivamente. Pelo menos o dobro dos recordes de fases anteriores ou posteriores, nas quais essas médias jamais ultrapassaram 2,5% e 2%. Trata-se, portanto, de um estupendo paradoxo, pois não há como supor que ao longo do mais glorioso quarto de século do capitalismo industrial poderiam ter diminuído as emissões humanas de gases de efeito estufa, apontadas como o principal indutor do aquecimento global.

É bem provável que até já exista alguma boa justificativa para essa completa falta de correlação entre as recentes oscilações globais de crescimento da economia e de variações de temperatura. O problema é que a exposição de Al Gore simplesmente nem considera que exista aí algum problema, omitindo, portanto, qualquer explicação que já possa ter sido dada à discrepância (caso exista).

-------------------------------------------------------------------------------- Gore tenta esconder dos leitores a controvérsia científica sobre as proporções do aquecimento global que devem ser atribuídas a atividades humanas ou a outras --------------------------------------------------------------------------------

A segunda questão intrigante é suscitada por uma belíssima imagem noturna do mundo, elaborada ao longo de seis meses por um satélite do Departamento de Defesa americano (pags. 230-1). As partes coloridas em vermelho são locais em que mais estão ocorrendo queimadas. Destaca-se a África onde, segundo o livro, isso se deve ao uso de lenha para cozinhar, o que simplesmente não dá para entender. Mas o pior é que não há qualquer comentário sobre o fato de a América Latina surpreender por mostrar que há muitíssimo mais queimadas fora do que dentro do chamado arco de desmatamento da Amazônia, apesar de todas as evidências já recolhidas sobre a absurda recorrência desse crime.

Isto deveria exigir que se fizesse clara distinção entre os dois fenômenos, em vez de se atribuir apenas aos desmatamentos a responsabilidade pelas emissões de carbono resultantes de queimadas. As duas práticas precisam ser combatidas com todo o vigor, energia e firmeza, mas talvez se mostre muito mais difícil acabar com queimadas que não estão associadas a desmatamentos do que o contrário. Todavia, quase todos os analistas do aquecimento global repetem que as emissões brasileiras, por exemplo, seriam radicalmente reduzidas com o simples fim dos desmatamentos amazônicos, como se fosse esse o principal motivo das queimadas.

Problema ainda mais sério, contudo, é a maneira com que Gore escamoteia as dificuldades objetivas que precisarão ser enfrentadas para que possa ocorrer um efetivo processo de descarbonização das matrizes energéticas. Em vez de alertar para a absoluta necessidade de que sejam mais fomentadas as pesquisas com tal objetivo, prefere dizer que a humanidade já possui os conhecimentos fundamentais - tanto científicos como técnicos e industriais - para resolver nos próximos 50 anos o problema da mudança climática.

Para defender essa tese, estampa um conhecido diagrama elaborado por dois professores de Princeton, Robert Socolow e Stephen Pacala, (págs. 280-1), no qual triângulos coloridos indicam as reduções de emissões que seriam possíveis com as seguintes mudanças: a) uso mais eficiente de eletricidade em sistemas de aquecimento, refrigeração, iluminação, aparelhos domésticos e equipamentos eletrônicos; b) construção de edifícios que utilizem muito menos energia; c) maior eficiência dos veículos, fabricando carros que consomem menos gasolina, híbridos e movidos a células de combustível; d) outras melhorias na eficiência dos sistemas de transportes mediante planejamento urbano; e) maior uso de fontes de energia renovável, tais como o vento e os biocombustíveis; f) captura e armazenamento de carbono emitido na produção e eletricidade e atividades industriais.

Como não há qualquer evidência histórica que permita supor que inovações sociais dessa magnitude possam vir a ocorrer simultaneamente em algumas décadas, o uso do diagrama de Socolow/Pacala não pode deixar de provocar a terceira pergunta: não se estaria diante de hábil maneira de terminar um discurso apocalíptico com uma mensagem ultra-otimista? Não seria essa uma saída semelhante à promessa de um paraíso às pessoas de boa vontade que merecessem ressuscitar?

De resto, chega a ser escandalosa a maneira com que Gore tenta esconder dos leitores a controvérsia científica sobre as proporções do aquecimento global que devem ser atribuídas a atividades humanas e a outras causas. Ele simplesmente abusa do "rolo compressor" do IPCC, muito bem explicado por Clive Crook, colunista do Financial Times, em texto publicado no Valor da última sexta-feira, 3/8.

José Eli da Veiga , professor titular do departamento de economia da FEA/USP e coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental (NESA), escreve mensalmente às terças. Página web: www.zeeli.pro.br