Título: CVM promete marcar em cima do lance
Autor: Vieira, Catherine
Fonte: Valor Econômico, 09/08/2007, Finanças, p. C12

Com menos de um mês de mandato, a nova presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Maria Helena Santana, já deu prova de que a autarquia vai fiscalizar em cima do lance. A liminar obtida na Justiça anteontem, para bloquear os ganhos de dois investidores cujas negociações com ações da Suzano Petroquímica sugerem indícios de informação privilegiada, mostra, na prática, o pensamento da nova presidente. "É preciso ser ágil. Sempre que tivermos elementos para agir, faremos isso", diz. Maria Helena acredita no bloqueio como forma de desestimular outras negociações irregulares.

A fiscalização, com foco em punições mais ágeis continua sendo prioridade para a autarquia, garante ela, que pretende criar uma superintendência especialmente para cuidar dos processos.

Poucos especialistas assistiram a evolução recente do mercado de capitais brasileiro tão de perto quanto Maria Helena. Mais que acompanhar, ela teve participação ativa em mecanismos que foram importantes como o desenvolvimento do Novo Mercado, um dos projetos que conduziu nos mais de dez anos que esteve na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), e que praticamente introduziu o conceito de governança corporativa no Brasil.

Esse conhecimento adquirido na prática deu a ela elementos para ter também uma idéia mais clara das necessidades dos investidores e dos participantes do mercado. Conseqüência disso, talvez, é que uma das coisas que pretende estimular, em sua gestão, é uma melhoria da informação nas ofertas públicas - os populares IPOs, no inglês -, que vêm se proliferando no mercado brasileiro.

Além de tornar os prospectos mais completos, com potenciais conflitos de interesse mais explicitados, ela pretende estimular a distribuição de prospectos resumidos (o chamado "take one"), além de acatar proposta da Bovespa de colocar na internet um material de perguntas e respostas baseado nas apresentações feitas pelos executivos, os chamados "road shows".

Outra questão que deve enfrentar é a do rodízio de auditores, tema que já foi fonte de muita polêmica. "Estamos fazendo um convênio com a PUC para estudar a eficácia do rodízio", conta.

Casada e com dois filhos, ela está trocando a terra natal, São Paulo, pelo Rio, onde fica a sede da CVM. Destoando dos dois últimos presidentes da autarquia - os advogados cariocas Luiz Leonardo Cantidiano e Marcelo Trindade - Maria Helena, além de ser a primeira mulher à frente da autarquia, é paulistana e economista. Mas, como diz a máxima do mercado, diversificação é regra básica.

Valor: Quais serão as prioridades do seu mandato?

Maria Helena Santana : O "enforcement" (fiscalização e punição) vai continuar sendo uma das prioridades, como já ocorreu na gestão do Marcelo Trindade. Outra coisa que vamos continuar perseguindo é agilidade na conclusão dos casos, ou seja, a redução do prazo entre a ocorrência do fato e o julgamento do processo. No fim do ano passado, o estoque de processos a julgar já tratava de fatos posteriores à 2004, estamos avançando.

Valor: Um problema que tem sido recorrente é o do vazamento de informações. O mercado brasileiro está mais vulnerável a esse tipo de problema?

Maria Helena : Um estudo divulgado pela FSA (Financial Services Authority, a CVM inglesa) no começo deste ano apontou que em cerca de 25% das operações de fusões e aquisições anunciadas nos últimos anos parece ter ocorrido algum tipo de vazamento de informação, a julgar pela oscilação das ações. Ou seja, é um problema que parece estar afligindo a todos. Uma coisa que é bastante importante nesse sentido é o bloqueio dos ativos de investidores obtido pela ação conjunta da CVM e Ministério Público.

Valor: Esse bloqueio pode ocorrer outras vezes, então?

Maria Helena : Sim, não descartamos fazer isso sempre que houver elementos que justifiquem a ação. O que nós esperamos é que isso funcione cada vez mais para dissuadir e desestimular negociações desse tipo. Esse monitoramento é feito com o maior cuidado pelo pessoal de acompanhamento de mercado, que tem grande sensibilidade para fazer análise desses movimentos atípicos.

Valor: A CVM tem todas as ferramentas necessárias para dar conta da fiscalização e investigação?

Maria Helena : Temos muitas ferramentas. O que ainda existe é a questão do acesso da informação protegida por sigilo bancário. Há até uma discussão no conselho de reguladores do mercado de capitais que pretende propor um grupo de trabalho para sugerir aperfeiçoamentos na lei de sigilo bancário que permita melhor acesso dos reguladores às informações bancárias. Muitas vezes só se consegue fechar um quadro de provas consistentes para poder acusar e conseguir punir se tiver esse tipo de informação de forma mais automática, como outras CVMs no mundo têm.

Valor: Como é sua formação?

Maria Helena : Sou economista formada pela USP. Fiquei 12 anos na Bovespa. Comecei na área internacional, mas começaram a surgir vários novos projetos, para desenvolver o mercado. Um deles foi a criação do Novo Mercado. Na época, a Bovespa decidiu criar uma área específica para a interlocução com as empresas, e eu fui cuidar disso.

Valor: Da superintendência de empresas, do contato com as companhias.

Maria Helena : Sim, era uma outra época. Não havia viabilidade para fazer uma oferta de ações que fosse exclusivamente aqui. Naquele momento, no fim da década de 90, as poucas empresas que se dispunham a abrir capital geralmente iam para fora. O volume de recursos disponível aqui era muito baixo e ainda havia volatilidade, era como se as companhias precisassem alugar a credibilidade de uma outra jurisdição e acabavam fazendo isso com a listagem em Nova York. Se hoje os investidores vêm e compram aqui, naquela época não havia essa possibilidade. Isso acabava excluindo um monte de empresas, que eram aquelas que não tinham ofertas com tamanhos que justificassem listagem lá fora.

Valor: E agora nós é que estamos emprestando essa credibilidade? Já há um banco argentino vindo se listar aqui...

Maria Helena : É incrível. Temos já esse caso do Banco Patagônia, da Argentina, que veio recorrer ao nosso mercado e os intermediários reportam que há interesse de outros na América Latina. Há alguns anos, se alguém dissesse que isso ia acontecer, ninguém acreditaria. Desde que começou essa retomada do movimento de aberturas de capital e ofertas primárias, em 2004, com a operação da Natura, já são mais de 70 novas companhias que se listaram, sendo que pouquíssimas delas fizeram listagem direta em Nova York, mesmo assim por conta de motivos específicos do setor.

Valor: Ainda há mudanças a fazer na parte de regulação?

-------------------------------------------------------------------------------- Desafio no caso das companhias sem controlador é enfatizar a importância da responsabilidade do corpo de administradores" --------------------------------------------------------------------------------

Maria Helena : Acho que as principais necessidades já foram contempladas. Estamos quase terminando. Desde 2002 muita coisa vem sendo feita, como a política de divulgação de fato relevante; as regras dos fundos; as regras para as bolsas; a Instrução 400, das ofertas públicas, e também os ajustes exigidos pelos novos produtos, como os de securitização. Ainda falta revisar a 202, que vai tratar dos diferentes níveis de exigências para companhias. Com isso, alguns casos e procedimentos poderão se tornar mais rápidos.

Valor: Como foi a experiência de sair de um período longo na auto-regulação para estar agora do lado da regulação do mercado?

Maria Helena : A gente tende a imaginar que a posição do auto-regulador é mais flexível, mas a verdade é que não tinha tanta diferença assim. No Novo Mercado, por exemplo, chegamos a desenhar um formato que abria espaço para mudanças no contrato e no regulamento, para poder ajustar ou atualizar. Desde o começo as empresas disseram para a bolsa que só topariam fazer parte se isso fosse algo submetido ao poder de veto de pelo menos uma parcela delas. Isso acabou sendo colocado no regulamento. Se tivesse ficado da outra forma, acredito que nenhuma empresa teria feito a adesão. Então, isso é um exemplo que mostra que se não houver modelos adequados à realidade do mercado as coisas acabam não funcionando.

Valor: E como é se tornar regu- lador?

Maria Helena : Na CVM vem sendo uma experiência fantástica, já desde o momento em que entrei como diretora. No colegiado eu aprendi muito, essa experiência de relatar um processo, de ir estudando as regras e reunindo fatos para chegar a uma visão global e construir opinião sobre o caso, é um trabalho muito interessante, que eu vou continuar tendo também como presidente.

Valor: E o que a senhora vê como os grandes desafios da sua gestão?

Maria Helena : A sofisticação do nosso mercado vai está muito grande e nós rapidamente estamos nos aproximando do que existe lá fora. Um assunto que eu acredito que vai ganhando evidência é a questão das companhias sem controlador. Nesse contexto, um dos desafios para o regulador e o auto-regulador é enfatizar a importância da responsabilidade dos administradores. Durante muito tempo eles foram vistos como espécies de apêndices do controlador e se focava no abuso de controle, mas a lei tem muito claros os deveres do administrador. Quanto mais pudermos destacar isso, maiores as chances de mitigar problemas.

Valor: Em boa parte dos julgamentos, o colegiado tem mencionado problemas na acusação, ressaltando que se tivessem sido mais bem formuladas, poderiam gerar menos absolvições..

Maria Helena : Uma das sugestões de uma consultoria que contratamos vai na direção de criar uma nova superintendência técnica especificamente para processos administrativos. Isso ajudaria não só na velocidade dos processos como também na qualidade das acusações e em evitar que fiquem lacunas nas coletas de provas e dados. Também poderíamos, assim, dar ênfase no treinamento dessa equipe. Nosso pessoal é qualificado, mas claro que sempre é possível melhorar e se atualizar. Essa sugestão é algo que eu gostaria de implementar.

Valor: As regras do rodízio de auditores geraram muita discussão quando implantadas, mas a postura da CVM era a de esperar um tempo para avaliar a eficiência do sistema. A senhora pretende rever isso?

Maria Helena : Nós estamos para contratar um convênio com a Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), que justamente vai fazer um estudo bem aprofundado sobre essa questão. A idéia é fazer uma avaliação das demonstrações financeiras a partir do rodízio para nos dar elementos técnicos, evidências sobre os efeitos práticos do rodízio, para poder avaliar a eficácia da regra, além dos argumentos que já estão na mesa. O princípio que deve nortear isso é se houve benefício para o mercado e o investidor, que são os usuários da informação, é nesse sentido que a gente vai observar.

Valor: Caso não tenha sido eficaz pode haver a proposta de mudar essa regra?

Maria Helena : Sempre tem. Na verdade essa é uma discussão que está na mesa, o próprio Banco Central tem buscado rediscutir isso. Acho que vai ser necessário debater e é para isso que estamos buscando elementos, para decidir melhor.

Valor: Outro ponto que vem sendo muito debatido é o do período de silêncio. Os investidores não acabam ficando dependentes do prospecto e das corretoras?

Maria Helena : Mas esse é um dos papéis que cabe ao intermediário, ele é habilitado para fazer esse trabalho. Se o investidor recebe uma informação que se revela absolutamente desastrosa ou absurda, ele pode apresentar uma reclamação, por exemplo.

Valor: Mas o prospecto é um documento ainda muito complexo, extenso, de difícil entendimento.

Maria Helena : O prospecto é um documento muito importante e completo sobre a oferta. É importante que ele exista e que evolua, seja mais claro e contenha cada vez mais informações que são relevantes para os investidores. Temos discutido agora bastante a inclusão de mais informações relativas à remuneração da administração e a operações do "underwriter" que possam indicar algum tipo de conflito de interesse.

Valor: Quais conflitos, contratos com a empresa?

Maria Helena : Isso, se ele por exemplo emprestou dinheiro para o emissor e que vai ser pago eventualmente com o resultado da oferta, ou que ele comprou ações do emissor antes ou que ele tem uma opção de compra de ações ao preço anterior e depois com a possibilidade de vender logo em seguida...

Valor: Mas, ainda assim, muitos investidores relatam que têm dificuldades em entender o conteúdo do prospecto.

Maria Helena : Isso também é algo que pode melhorar, ser mais simples, mais direto e completo. Uma coisa que podemos fazer é incentivar o "take one", que é um folheto que algumas companhias fazem, que é um material que tem os principais elementos do prospecto de forma resumida, que é aprovado pela CVM para ser usado como material de divulgação. A bolsa também nos apresentou uma idéia de colocar no site material da apresentação do "road show" com perguntas e respostas sobre a operação.

Valor: As movimentações de minoritários estão se intensificando no mundo e há quem diga que em alguns casos isso se tornou uma estratégia lucrativa que nem sempre tem a ver com a idéia de melhorar o mercado. Isso pode ocorrer aqui também?

Maria Helena : Isso de fato é algo que acontece no mundo e pode chegar ao Brasil assim como as outras coisas que acontecem no mercado externo e acabam chegando aqui. Mas nossa função é julgar as reclamações de acordo com as regras do mercado, da maneira correta e isenta, independentemente de quem estiver apresentando a queixa.