Título: Metas inflacionárias: contradições endógenas e superação
Autor: Nogueira, Fernando de Melo
Fonte: Valor Econômico, 13/08/2007, Opinião, p. A10

A economia não é uma ciência exata, mas as discrepâncias das análises sobre as metas de inflação no Brasil, a despeito dos bons fundamentos da economia, não se justificam. Tão pouco são plausíveis as crenças forjadas em pressupostos inverossímeis que tratam o regime de metas inflacionárias como infalível.

O elogiado sistema de metas foi implantado após o esgotamento do Plano Real, que fixava câmbio e flexibilizava juros em razão da maior ou menor necessidade de dólares. A contradição endógena deste plano, considerando o desequilíbrio das contas externas, era evidente. Sua prorrogação quase levou o Brasil à bancarrota. O que muitos trataram como genialidade não passou de um expediente conhecido como controle monetário, há muito superado. A âncora cambial foi equivalente ao que no passado chamávamos de lastro: o volume de moeda deveria ser equivalente às reservas de ouro. Ora, se não emitimos dólares e nossa quantidade de moeda americana é restrita, dependente das entradas da balança comercial, de investimentos e empréstimos, a manutenção da paridade impõe uma restrição drástica de moeda em circulação e, por conseqüência, uma penosa contração econômica. Este é o âmago do plano, monetarismo em carne e osso, velho como a própria política econômica, mas estuante de rude recessão. No entanto, a teoria inercial foi decisiva para a estabilidade dos preços na implantação do Plano Real.

O plano também expunha, com o passar do tempo, uma contradição endógena: a sobrevalorização do real liquidava as reservas. O que era a sustentação do plano - a paridade cambial - levava à sua destruição. A alternativa foi levar à estratosfera os juros para atrair dólares, o que sufocava mais a economia e aumentava perigosamente a dívida pública.

Em 1999, invertemos o jogo das variáveis juros e câmbio. O Copom define a taxa de juros em razão da meta de inflação estabelecida e o câmbio flutua em função desta taxa. Enquanto as expectativas de inflação permanecem altas, os juros são estabelecidos em patamar elevado o suficiente para reduzi-la.

Três aspectos relevantes denotam a maior ou menor eficiência do plano: a conseqüência dos juros sobre a atividade econômica, a conseqüência dos juros sobre a dívida pública e a conseqüência dos juros sobre o câmbio. A definição de uma taxa muito elevada desaquece a economia, impõe custos enormes para o setor produtivo, gera desemprego e pressiona os preços para baixo. A redução da atividade econômica não revela uma contradição, mas é a própria essência do plano, um consumado clássico, arquétipo monetarista, dano colateral inevitável para conter a tendência altista dos preços.

Uma segunda conseqüência é o aumento da dívida. Mas, nesse caso, o governo passou a perseguir superávits primários altos para pagamento dos juros, evitando seu crescimento - isso, apesar apesar de suas conseqüências contracionistas e danos sociais.

-------------------------------------------------------------------------------- Urge tornar as empresas do país competitivas, com redução rápida da taxa de juros, hoje o grande entrave ao desenvolvimento --------------------------------------------------------------------------------

A terceira conseqüência dos juros altos é a sobrevalorização do real, que com espantosa liquidez internacional atrai enorme quantidade de dólares. Assim, economia aberta, juros altíssimos e poupança abundante nos países emergentes elevam o fluxo de moeda estrangeira e, por conseqüência, sobrevalorizam o real, o que reduz a capacidade competitiva dos produtos brasileiros e provoca recessão, mas reforça o intuito primordial, ao lançar no mercado interno produtos importados mais baratos e contrair a atividade econômica.

A tentativa vã do BC para conter a excessiva liquidez tem sido comprar dólares, aumentando significativamente as reservas. Isso, no entanto, aumenta a confiança dos investidores estrangeiros e provoca maior entrada de dólares. Quanto maior a estabilidade e a reserva cambial, menor é o risco para os investimentos; quanto mais sucessos, mais dólares fluem para o Brasil com intuitos especulativos, em razão dos juros altos, ou para novos investimentos. Infelizmente, o BC não tem condição material suficiente para atenuar um fluxo de entrada tão consistente.

Destarte, a valorização do real não é uma conseqüência oculta do plano, mas uma estratégia deliberada, que reforça sua assinatura monetarista e mantém o latente perigo de derreter-se em tragédia. Essa política repete o risco do Plano Real, mas é minimizada pela bonança da economia mundial - ou seja, a sobrevalorização do real revela uma contradição intrínseca intransponível, pois, como antes, poderia sabotar nossas reservas e reduzir em muito sua aplicabilidade temporal, não fosse o extraordinário crescimento da economia mundial, absorvedora crescente de commodities sobrevalorizadas.

Se os elevados preços das commodities primárias têm promovido significativos superávits e garantido a prorrogação do plano, é completamente esdrúxula a recorrente e ufanista pergunta: "Por que não aproveitamos o crescimento mundial para também crescer?" Objetivamente, é porque o aproveitamos para estabilizar. Não há crescimento sustentável sem estabilidade monetária. Tudo indica, no entanto, que o esforço do BC é para garantir estabilidade no câmbio. Agora, além dos de juros, o fluxo é fortalecido por forte balança comercial e novos investimentos.

Ao atribuir ao real sobrevalorizado prioridade causal à fragilização de amplos setores produtivos, não estou eliminando outras variáveis interativas que continuam obstruindo o crescimento sustentado. Mas o câmbio ganhou proeminência nos últimos meses e nada indica que teremos mudança significativa de rota. Assim, creio ser imprescindível, sem a pressão inflacionária de outrora, darmos um passo largo na superação da política econômica prevalecente. Urge tornar nossas empresas mais competitivas, adotando, por três razões relacionadas, a redução rápida e significativa da taxa de juros, elemento capaz de neutralizar os entraves ao desenvolvimento. A redução da taxa de juros exigiria menor superávit, viabilizando a aceleração dos investimentos públicos e, quiçá, poderia ser o arcabouço de uma reforma fiscal séria e abrangente. Em segundo lugar, a redução dos juros pode aquecer o consumo, beneficiando setores altamente comprometidos com a valorização do real e tornaria menos atrativa a entrada de dólar.

Só aqueles que crêem que a economia de mercado é o resultado de ações egoístas de agentes racionais maximizadores de recursos e altamente eficientes persistem na intransigente defesa da competição internacional como promotora de significativo aumento da produtividade. Defendem a máxima "total liberdade de movimentação para os capitais", idiossincrasia que idiotiza a política econômica. Míopes, também acreditam que a meta de inflação estabelecida pelo CMN pode provocar por si a estabilidade. Não percebem que a meta é alcançada não por sincronia das decisões dos agentes individuais, mas porque, uma vez estabelecida, o BC controla e manipula variáveis fundamentais para obtenção de seu objetivo - juros e câmbio - e assim define o nível da atividade econômica e o grau de concorrência internacional.

A competição em escala global é uma realidade incontornável que impõem mudanças profundas de paradigmas. A eficiência produtiva pressupõe a sincronização da política econômica com a política monetária. Sustentabilidade e competitividade exigem marco regulatório adequado, políticas macroeconômicas eficientes e regularidade jurisdicional, além da consolidação dos avanços sociais e políticos. Mas são extremamente suscetíveis aos custos demasiados que os juros, o câmbio e os impostos impõem no Brasil.

Fernando de Melo Nogueira é cientista político pela UFMG, ex-secretário de Orçamento de Belo Horizonte, diretor da FPM/PBH e professor das universidades FUMEC e Itaúna.