Título: A democracia da Índia aos 60 anos
Autor: Tharoor, Shashi
Fonte: Valor Econômico, 13/08/2007, Opinião, p. A11

À meia-noite de 15 de agosto de 1947 nascia uma nova nação num subcontinente dilacerado por uma partilha sangrenta. A Índia independente tomou forma em meio às labaredas que se alastravam pelo país, dos trens carregados de corpos que cruzavam a nova fronteira com o Paquistão e de refugiados exaustos que abandonavam tudo em busca de uma vida nova. Seria difícil imaginar um início menos propício para uma nação recém-criada.

Seis décadas mais adiante, porém, a Índia que emergiu dos escombros do Raj [domínio] britânico é a maior democracia do mundo, pronta para, após anos de veloz crescimento econômico, assumir o seu lugar como um dos gigantes do século XXI. Um país cuja mera sobrevivência parecia estar em dúvida na sua fundação oferece lições impressionantes na construção de uma democracia em funcionamento, contrariando todas as probabilidades.

Nenhum outro país abarca uma profusão tão extraordinária de grupos étnicos, línguas incompreensíveis entre si, religiões e práticas culturais, assim como variações de topografia, clima e níveis de desenvolvimento econômico. Em 1947, os líderes da Índia estavam diante de um país com um milhão de mortos, 13 milhões de desabrigados, bilhões de rúpias em danos à propriedade e as feridas da violência sectária ainda abertas. Considerando isso, mais os desafios de administrar um novo país, integrando os "Principados" na União Indiana e reorganizando as forças armadas divididas, eles poderiam ser perdoados por exigirem poderes ditatoriais.

A Índia, porém, transformou sua maior deficiência no seu ponto forte. Para a máxima americana "e pluribus unum" (a união faz a força), a Índia só poderia replicar "e pluribus pluribum" (coexistir de inúmeras formas). Em vez de suprimir a sua diversidade em nome da unidade nacional, a Índia assumiu o seu pluralismo nos seus ordenamentos institucionais: todos os grupos, crenças, gostos e ideologias sobrevivem e disputam o seu lugar ao sol.

Isso nem sempre foi fácil. A Índia suportou conflitos de castas, choques entre os direitos de distintos grupos lingüísticos, distúrbios religiosos (principalmente entre hindus e muçulmanos) e ameaças separatistas. Apesar das pressões e tensões, a Índia continuou sendo uma democracia multipartidária liberal - corrupta e ineficiente, talvez, mas mesmo assim próspera.

Ajudou o fato de que os patriarcas da Índia, a partir de Mahatma Gandhi, serem democratas convictos. O primeiro premiê do país, e que serviu por mais tempo no cargo, Jawaharlal Nehru, passou a sua carreira política instilando no seu povo os hábitos da democracia: desprezo por ditadores, respeito à ordem parlamentar e profissão de fé no sistema constitucional.

Como premiê, Nehru criou as nascentes instituições democráticas do país, tratando-as com respeito e deferência, até. Na única ocasião em que criticou publicamente um juiz, ele se desculpou no dia seguinte e redigiu uma carta servil ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Embora não houvesse nenhum desafio sério à sua autoridade, Nehru jamais esqueceu que ele deriva o seu poder do povo, ao qual ele se manteve admiravelmente acessível.

Através do seu exemplo pessoal, os valores democráticos se tornaram tão arraigados que, quando sua própria filha, Indira Gandhi, suspendeu as liberdades na Índia em 1975 com um Estado de Emergência de 21 meses, viu-se obrigada a retornar ao povo indiano para se justificar. Após ter assimilado os mais importantes valores do seu pai, ela organizou uma eleição livre - e obteve uma esmagadora derrota.

-------------------------------------------------------------------------------- Nos EUA a maioria dos pobres não vota - foram às urnas no Harlem apenas 23% na eleição passada -, na Índia os pobres comparecem em grande número --------------------------------------------------------------------------------

Apesar de a política indiana dificilmente ser imune ao apelo do sectarismo, seu povo passou a aceitar a idéia do país como uma terra que contém muitas diferenças de casta, credo, cor, culinária, convicções, trajes e costumes, e que mesmo assim cerra fileiras em torno de um consenso democrático. O cerne desse consenso é o princípio simples de que não é necessário concordar com tudo o tempo todo - salvo nas regras básicas sobre como discordar. A Índia sobreviveu a todos os desafios que a assolaram por 60 anos porque o país manteve consenso em torno das maneiras de lidar com as situações sem consenso.

Por exemplo, a Índia permite que todas as religiões floresçam, assegurando, ao mesmo tempo, que nenhuma será privilegiada pelo Estado. Isso inclui a concessão de direitos grupais, pelos quais os muçulmanos são governados por sua própria Lei Pessoal, distinta do código civil comum. Se a América é um caldeirão, a Índia é um thali, a seleção de pratos suntuosos em diferentes tigelas. Cada uma tem sabor distinto, que e não se mistura necessariamente com a outra, mas todas pertencem ao mesmo prato.

Ninguém mais fala seriamente sobre o perigo de desintegração. Movimentos separatistas em regiões extensas como Tamil Nadu e Mizoram foram neutralizados por meio de uma fórmula simples: os separatistas de ontem tornaram-se ministros-chefes (o equivalente a governadores) de hoje e líderes da oposição de amanhã.

Ademais, a democracia na Índia não é uma preocupação das elites, mas interessa mais às massas desprivilegiadas. Enquanto nos EUA a maioria dos pobres não vota - a taxa de comparecimento às urnas no Harlem foi de 23% na eleição presidencial passada - na Índia os pobres comparecem em grande número.

Consequentemente, o potencial explosivo da divisão de castas também tem sido canalizado pela urna, e as mais baixas entre as baixas castas chegam a cargos elevados. Mayawati, uma mulher "intocável", governou três vezes o Estado mais populoso da Índia, Uttar Pradesh, como ministra-chefe, e agora desfruta de maioria segura.

A lógica do mercado eleitoral significa que nenhuma identidade comunitária isolada pode dominar outras. Há três anos, a Índia, país 81% hindu, viu um líder político católico romano (Sonia Gandhi) abrir caminho para um sikh (Manmohan Singh), que foi investido no cargo por um muçulmano (presidente Abdul Kalam). Por outro lado, a mais antiga democracia do mundo, os EUA, ainda não elegeu um presidente que não tenha sido branco, do sexo masculino e cristão.

A democracia deu sustentação a uma Índia que confere salvaguardas ao espaço comum disponível para cada identidade. Esta idéia uniu um país que muitos pensaram que não sobreviveria. O 60º aniversário, portanto, vale a pena comemorar.

Shashi Tharoor foi sub-secretário-geral das Nações Unidas. © Project Syndicate/Europe´s World, 2007. www.project-syndicate.org