Título: Equilíbrio delicado
Autor: Bautzer, Tatiana
Fonte: Valor Econômico, 13/08/2007, Caderno Especial, p. F1

Turbulência financeira ou crise que afetará o crescimento econômico mundial? A dúvida atormenta os mercados financeiros desde as últimas semanas de julho, quando começaram a aparecer os problemas no segmento de crédito imobiliário 'subprime' (de alto risco) nos Estados Unidos.

A farra do crédito baratíssimo dos últimos anos está terminando, e mal. O número de vítimas cresceu assustadoramente em poucas semanas, com mais de 50 empresas especializadas em crédito imobiliário nos Estados Unidos indo à bancarrota. Depois foi a vez de fundos, inicialmente hedge funds independentes e depois administrados por grandes bancos, como Bear Stearns e BNP Paribas. Os mercados de crédito passaram dias congelados e forçaram os bancos centrais da Europa e EUA a intervir em níveis inéditos desde os ataques de 11 de setembro de 2001. Uma onda semelhante de aversão ao risco não ocorria desde o início da década. O Brasil e outros mercados emergentes estão hoje numa situação muito melhor para enfrentar a crise do que estavam nos últimos episódios internacionais.

O risco brasileiro medido pelos contratos de credit default swaps (CDS) de cinco anos praticamente dobrou em duas semanas, subindo 50 pontos-base, para 117 pontos sobre a Libor na última sexta-feira. O índice Bovespa caiu 8,68% desde 13 de julho, para 52.638 pontos. Em três semanas, o dólar subiu 4,78%, fechando na sexta-feira a R$ 1,951.

O certo é que o cenário róseo em que os mercados internacionais navegaram nos últimos anos definitivamente mudou e analistas prevêem aumento da volatilidade nos próximos meses. A expansão dos derivativos e dos bônus lastreados em ativos de crédito pulverizou as perdas pelo sistema, evitando a concentração de prejuízos em bancos grandes o suficiente para afetar a liquidez global. Mas ao mesmo tempo também dificultou o cálculo da extensão das perdas, porque muitos dos contratos de derivativos de crédito são negociados em balcão e ficam simplesmente sem preços durante nervosismo dos mercados.

"O grande problema é que ninguém sabe quanto valem os ativos nos mercados que estão congelados por falta de liquidez. Não se sabe o efeito que isso terá quando as carteiras dos fundos e bancos tiverem que ser marcadas a mercado", afirma Nuno Câmara, do Dresdner Kleinworth Securities em Nova York.

Protegidos pelo grande colchão de lucros obtido nos últimos anos, os grandes bancos têm gordura suficiente para aguentar prejuízos nos próximos trimestres. Em meio à crise de confiança, o custo de captação do Bear Stearns subiu para níveis próximos a investimentos especulativos, mas o banco conseguiu captar recursos.

Os bancos centrais já mostraram que não vão deixar que liquidez de curto prazo quebre instituições financeiras, ao intervir no mercado interbancário com centenas de bilhões de dólares quando o mercado europeu entrou em pânico temendo perdas do BNP Paribas. Houve intervenção coordenada dos bancos centrais da Europa, EUA e Ásia, demonstrando que os governos estão atentos ao risco sistêmico. O único banco quebrado até agora, em processo de resgate pelo setor privado sob supervisão do Bundesbank (BC alemão) é o IKB.

O presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, calculou os efeitos de perdas no mercado de subprime em US$ 100 bilhões- que alguns economistas consideram subestimado. As perdas totais, que atingem ativos não correlacionados, são muito maiores.

Hoje os mercados emergentes estão muito mais preparados do que em crises do final da década de 90 para enfrentar um ambiente externo desfavorável, diz o diretor da Lehman Brothers, John Welch. "Acho que o mercado tem tudo para resistir bem à volatilidade", afirma. A situação de endividamento e balanço de pagamentos é radicalmente diferente. O país está prestes a tornar-se credor líquido externo. As empresas também não estão com um cronograma "apertado" de vencimentos. Pelo contrário, estão capitalizadas e já fizeram nos últimos anos uma administração de endividamento que elevou prazos e reduziu custos.

No caso brasileiro, a crise chega num momento de grande fluxo de recursos externos para o país e em que a indústria reclamava do câmbio supervalorizado.

"Acho que algumas economias que estão com fundamentos mais frágeis, como a Argentina, podem sofrer mais, mas não vejo grande impacto no Brasil", afirma o diretor da Lehman.

O que ainda se discute é até que ponto o "credit crunch" (aperto no crédito) afetará o crescimento da economia mundial de forma relevante. As opiniões ainda são divergentes.

O economista-chefe do J.P. Morgan, James Glassmann, confia numa reação rápida do Federal Reserve para sustentar a economia, e prevê crescimento de 3% do PIB americano neste ano. No ano que vem, a expansão será menor, de 2,25%. A Lehman Brothers prevê uma taxa de crescimento abaixo de 2%. Entre os mais pessimistas, Nouriel Roubini, da New York University (NYU), acha que o país enfrentará pelo menos um curto período de retração econômica e que a crise no mercado imobiliário será a pior em 40 anos.

Roubini acredita que há "risco sistêmico" na crise, não pela quebra de uma grande instituição financeira, mas pela sucessão de quebras de instituições menores. O professor da NYU acha que a crise resultará num aumento de falências corporativas, restrição de investimentos e retração do consumidor. Glassmann acredita que as perdas ficarão restritas à indústria financeira e que o efeito do valor dos imóveis sobre o consumidor americano é exagerado. Depois de seguidos trimestres de resultados recordes, as empresas americanas não estão em grande risco de default. "Ainda é cedo para avaliar a extensão dos estragos", diz Glassmann.

Ele acredita mais num encarecimento do crédito, como efeito da reavaliação dos riscos, e não congelamento duradouro que leve a falências. Os índices acionários que estavam inflados pelo crédito barato para aquisições devem ajustar-se.

O economista compara a crise atual nos mercados de crédito a outras duas: a de 1998, ocorrida depois da quebra do fundo Long Term Capital Management (LTCM), e a do início dos anos 90, provocada pela crise bancária nos Estados Unidos. "Nessas duas crises, que foram intensas do ponto de vista financeiro, não ficaram marcas visíveis na economia real". Para o J.P. Morgan, a redução no ritmo de crescimento da economia global tem o lado positivo de reduzir os temores inflacionários que vinham pressionando as taxas de juros nos Estados Unidos e Europa.

Para o ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, o Brasil não corre risco de contágio com a crise, e o nervosismo só está eliminando a espuma de alavancagem excessiva nos mercados internacionais. "O crescimento mundial pode desacelerar de 5% para 4%, mas não haverá contágio porque não estávamos nesse cenário de crédito excessivo". Para o ex-ministro, o crescimento chinês é mais importante para as exportações brasileiras do que o PIB americano.

Além da situação muito diferente do balanço de pagamentos nesta crise, o Brasil também mudou seu patamar de crescimento. A estabilidade macroeconômica, redução de juros e aumento do crédito nos últimos anos dobraram a taxa de crescimento potencial do PIB de 2% a 2,5% para mais de 4%. Na área cambial, a redução da sobrevalorização do real pode melhorar a competitividade de exportações. Para Câmara, do Dresdner, "o alto nível de reservas, que foi tão criticado, hoje deixa o mercado muito mais relaxado em relação à situação brasileira".

O desafio da política econômica hoje, para Mendonça de Barros, é aumentar o potencial de crescimento do PIB para 6 a 7%, com investimentos em infra-estrutura e redução de carga tributária.

Já está claro que os custos das operações de crédito (empréstimos ou emissões de bônus nos mercados de capitais) para companhias brasileiras devem subir dos níveis historicamente baixos registrados nos últimos meses. Por enquanto, bancos suspenderam captações externas de seus clientes e a mudança de custos só deve ficar clara a partir de setembro, quando terminam as férias no Hemisfério Norte.