Título: O vencedor
Autor: Lamucci, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 10/08/2007, EU & Fim de Semana, p. 4

Atado à vontade dos presidentes, Simonsen primeiro aceitou o " Brasil-ilha", mas acabou repudiando aquela prosperidade estranha num mundo em profunda crise Mário Henrique Simonsen tornou-se, ao deixar Brasília e retornar à vida acadêmica, a partir de 1979, uma referência em que os governos buscaram, até sua morte aos 62 anos, em fevereiro de 1997, compreender os fenômenos da economia brasileira.

Personalidade generosa e economista genial, Simonsen pode não ter colhido resultados brilhantes na sua passagem pelos governos Geisel e Figueiredo - que coincide com o início de uma crise de grandes proporções, que emerge com o primeiro choque do petróleo, em 1973, e culmina com o segundo choque do petróleo acompanhado da brutal elevação dos juros americanos, em 1979. Mas deixou um legado acadêmico respeitado, inclusive, por seus opositores, e o reconhecimento de sua contribuição no debate da política econômica brasileira.

Foi o primeiro economista a identificar na correção monetária o motor da inércia inflacionária - que ele chamava de realimentação inflacionária - que veio a ser, mais tarde, a chave inspiradora dos planos de estabilização no país.

Carioca nascido em fevereiro de 1935, Simonsen formou-se em engenharia civil na Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil, mas especializou-se em economia. Começou a colaborar com o então ministro do Planejamento, Roberto Campos, e fez o primeiro esboço do Paeg (Plano de Ação Econômica do Governo) na gestão Castelo Branco. Escreveu, também, a pedido do presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada) e depois ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, o capítulo de macroeconomia do Programa Estratégico de Desenvolvimento do governo Costa e Silva. Foi presidente do Mobral - Movimento Brasileiro de Alfabetização - no governo Médici, e, no início de 1974, assumiu, a convite de Geisel, o cargo de ministro da Fazenda.

Em 1973, os países árabes se organizaram na Opep, multiplicaram o preço do barril de petróleo de US$ 2,90 para US$ 11,65 e levaram o mundo à primeira grande crise do pós- guerra. O governo Geisel praticamente ignorou, de início, o ajuste que os demais países faziam e continuou na rota do crescimento acelerado. Afora medidas de controle da moeda, a reação àquela crise que, de um ano para outro, elevou o déficit em transações correntes de 2,48% para 6,8% do PIB, foi tocar o II PND com base no endividamento externo. O PIB, que vinha de um crescimento de 13,97% em 1973, ainda cresceu 8,15% em 1974. Só em 1975 começa a desaceleração, quando o PIB cresce apenas 5,17%. Constatada a retração da atividade econômica, Simonsen afrouxou os controles e o país voltou a crescer 10,26% em 1976, graças à criação do "refinanciamento compensatório" - farta concessão de crédito ao setor privado. Mas, aí cresceu demais.

Nesse ano, Simonsen voltou da reunião anual do FMI/Banco Mundial preocupado e com um recado claro dos credores: a luz amarela já estava acesa e o país, naquele ritmo, ia perder credibilidade.

Esse foi um momento delicado da discussão entre Simonsen e Velloso, que, do Planejamento, tocava o II PND. Desde o início do governo, ambos haviam combinado que as divergências seriam debatidas à exaustão, até chegarem a um ponto comum. Levar posições distintas para Geisel arbitrar significaria enfraquecimento para ambos, relata Velloso. Era preciso limitar o PIB a, no máximo, 5%. Para isso seria necessário cortar investimentos públicos. Velloso concordou com a medida, desde que se preservasse a integridade do plano.

Em 1977, o crescimento do PIB cai para 4,93% e o déficit em conta corrente, para 2,72% do PIB. A inflação, medida pelo IGP-DI, que em 1976 foi a 46,2%, recuou um pouco, para 38,84%, no ano seguinte.

Sobre inflação, a contribuição de Simonsen foi além da compreensão de suas causas. Nos primeiros meses do governo Geisel, o ministro preparou um documento e o levou à reunião das 9 horas, habitual encontro do presidente Geisel com um pequeno grupo de ministros no palácio do Planalto. O texto tratava da inflação naquele ano de 1974. Junto com a análise, porém, trazia uma revelação rumorosa: a inflação de 1973, durante a gestão de Delfim Netto no Ministério da Fazenda, havia sido objeto de "distorções".

O documento acusava, com base em estudos da Fundação Getúlio Vargas, que o índice de custo de vida, na parte relativa aos itens de alimentação, havia sido apurado com base nos preços tabelados e não nos preços praticados pelos supermercados.

O dado oficial indicava uma variação de 13,7% no custo de vida. Tomando os preços praticados pelo mercado, o aumento foi de 26,6%. Ou seja, o índice oficial carregava um "atraso" equivalente a 11,3%. Delfim Netto nunca reconheceu essa "distorção" e sempre atribuiu o episódio ao fato de que ele gerenciava os estoques de produtos alimentares de modo que esses não faltassem nas gôndolas dos supermercados do Rio, onde o índice era apurado.

A existência desse documento só veio a público em 1977 e foi uma das causas que impulsionaram o ressurgimento do movimento sindical na região do ABC paulista. Luiz Inácio Lula da Silva e mais de uma dezena de sindicalistas foram pela primeira vez, durante o governo dos militares, a Brasília reivindicar a reposição, nos salários, daquela inflação que faltava. Estiveram com Velloso, no gabinete do Planejamento no Palácio do Planalto, e com Simonsen, na Fazenda.

Com Velloso, lembra hoje o ex-ministro, foi um encontro demorado, das 19 às 22 horas. "Combinei com Simonsen que não deveríamos nos envolver nessa questão, deixando que os trabalhadores e os empresários se acertassem. Ele concordou". Iniciou-se naquele ano uma campanha em que os sindicatos falavam em reposição salarial de 34,1%, percentual que havia sido subtraído da inflação de 1973 e 1974. Surgiam, também, o engajamento dos trabalhadores da indústria na luta pela redemocratização e as sementes do PT.

Nunca foi nítida a posição de Simonsen sobre o II PND - programa ambicioso de criação de um parque industrial para produção de insumos básicos e bens de capital, para substituição de importações e geração de excedentes exportáveis. Francisco Lopes, que foi aluno de Simonsen na FGV e trabalhou a seu lado no governo, tem convicção de que ele se opôs àquele que era um "programa de gastos públicos desenfreados para 1974-79 quando o mundo já mergulhava na crise do petróleo".

Augusto Jefferson, que acompanhou Simonsen durante toda sua vida, de quem foi assessor de Política Econômica, afirma: "Simonsen se conformou. Aquele era o programa do Geisel e de nada adiantaria se opor". A favor, sustenta, ele não era.

Foi nessa época que Simonsen, em entrevista à imprensa, declarou: "Somos uma ilha de prosperidade num mar de incertezas". O país insistia em crescer a taxas anuais de 7% ou mais, quando o mundo todo entrava em recessão. E assim foi graças aos aumentos do endividamento externo e da inflação, que desembocaram no colapso de 1982.

A regra, naquela época, era simples: "Tínhamos medo do abismo, que significaria a perda total da credibilidade externa. Sempre que as coisas se complicavam, havia um recuo tático da nossa parte, que era o de colocar limites ao crescimento", conta Velloso.

Como ministro do Planejamento do governo Figueiredo, para o qual levou todos os instrumentos importantes da Fazenda (como o Conselho Monetário Nacional e o sistema de controle de preços), Simonsen tentou fazer um ajuste mais duro. Pretendia reduzir o crescimento para a casa dos 3% e adequar o país ao segundo choque do petróleo, que veio em 1979, somado a um substancial aumento dos juros americanos. Figueiredo negou-lhe apoio e o substituiu por Delfim Netto.

Simonsen produziu inúmeros trabalhos sobre matemática, escreveu vários livros de economia e críticas de ópera. Era amante da boa mesa e do uisque. Fumava quatro maços de cigarro por dia. Vascaíno, foi um teórico e praticante do futebol nos fins de semana. De memória prodigiosa, era capaz de citar a relação do time reserva do Olaria, conta Marcos Viana, então presidente do BNDE, de quem era amigo desde os tempos do vestibular.

Deixou, no campo acadêmico, contribuições importantes: da curva do salário real, que inspirou a política salarial do PAEG, ao modelo de realimentação. Fez estudos sobre os fundamentos teóricos da política de rendas como um dos instrumentos do combate à inflação, e a crítica à teoria das expectativas racionais.

Foi professor da Escola de Pós Graduação em Economia (EPGE, da Fundação Getúlio Vargas), que ajudou a criar. Contava que ficou rico por acaso, quando o amigo Julio Bozano, o convidou para ser o sócio minoritário no Banco Bozano, Simonsen. Ao anunciar seu pedido de demissão, em 10 de agosto de 1979, no governo Figueiredo, declarou: "Achei que o melhor que eu fazia para o país era voltar para a praia de Ipanema".