Título: O construtor
Autor: Guimarães, Luiz Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 10/08/2007, EU & Fim de Semana, p. 10

Muitas vezes se tem dificuldade em ver Celso Furtado como um economista. Sua vasta obra - 30 livros, incontáveis artigos, conferências, planos econômicos e entrevistas - encoraja a percepção de que foi um pensador múltiplo. Sem dúvida, sua obra nunca foi meramente econômica e jamais poderá ser acusada de economicista. Seu trabalho intelectual entrelaça os fios menos óbvios que unem a economia à cultura, à política e ao social. E, a partir de tudo isso, finca sólidas raízes na história. Furtado pensa e reinventa o Brasil sob ângulos surpreendentes e inovadores.

Despido dos fardões e dos louros acadêmicos, age sobre ele politicamente, sem jamais ter sido partidário. Refunda o Brasil ao redescobrir as suas essências e ao propor, a partir delas, novos caminhos. E, fundamentalmente, exige a criação de um projeto autônomo de nação, ao rechaçar a reprodução aqui das condições externas destinadas a perpetuar a dependência. De fato, não parece um economista. Talvez por isso mesmo seja constantemente aclamado o maior deles.

De Pombal a Yale

Furtado nasceu numa terra "seca, de homens secos", na cidade de Pombal, sertão paraibano, em um tempo - 26 de julho de 1920 - que parece irresgatável. Menino, viu cangaceiros e a passagem de uma Coluna comandada por um capitão de 26 anos chamado Luiz Carlos Prestes.

Poucos adivinhariam que o menino de Pombal viria a mudar a forma de ver e decifrar o Brasil, que iria dar aulas em lugares tão improváveis como Sorbonne, Yale e Cambridge, se tornaria ministro do Planejamento de um governo derrubado militarmente, ministro da Cultura do primeiro após a ditadura, criador e gestor de um marco nacional, a Sudene, e que até morrer, em 20 de novembro de 2004, não abriria mão do sonho de construir um país soberano, livre das amarras externas, de renda desconcentrada e socialmente justo.

Celso Furtado formou-se em um tempo em que os economistas vinham ou da faculdade de Direito ou da de Engenharia. Formado em Direito em 1940 pela Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro, Furtado logo manifestou sua vocação pelos estudos econômicos. Aos 28 anos, sua tese de doutorado na Universidade de Paris abordava o ciclo da cana-de-açúcar. Na Sorbonne, não se limitava à economia. Ampliava seus interesses para a teoria política e para a história. Desde sempre, afastou-se do desprezo com o qual a escola neoclássica evitava a história. Na época, já tinha lido todo o Marx, mas preferia, sociologicamente, outro Karl, o Mannheim, pois este buscava formas para neutralizar os efeitos sociais das crises periódicas do capitalismo.

Teoria do desenvolvimento

No mesmo ano, 1948, em que Furtado concluiu seu doutorado, era criada, em plena efervescência e aplicação prática da teoria do planejamento sobre uma Europa do pós-guerra necessitada de reconstrução, a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina, a famosa Cepal, à qual Furtado dedicou posteriormente esforços decisivos para os rumos da teoria do subdesenvolvimento e as estratégias heterodoxas para o desenvolvimento.

-------------------------------------------------------------------------------- Segundo ele, o subdesenvolvimento não é um estágio obrigatório que os países devam vencer antes de atingir o desenvolvimento --------------------------------------------------------------------------------

O conhecimento teórico de Joseph Maynard Keynes se agregaria à prática trazida em 1949 à Cepal pelo argentino Raul Prebisch. Prebisch foi o gênio que aos 34 anos criou o Banco Central da Argentina, em 1935, o qual comandou até 1943, de onde saiu, após divergência com Perón, para lecionar a "Teoria Geral" do lorde inglês na Escola de Economia de Buenos Aires.

Centro-periferia

Prebisch lançou as bases da doutrina intervencionista e antiliberal destinada a permitir, via industrialização, a emancipação da América Latina. Criou, como contraponto à teoria das vantagens comparativas - engendrada pela escola neoclássica para transformar as relações de dependência e exploração internacionais num jardim florido de harmonia e cooperação entre as nações -, a idéia hoje clássica do "centro-periferia". Furtado, que já estava na Cepal antes da chegada de Prebisch, foi o introdutor no Brasil das idéias do economista argentino, por meio das publicações da Fundação Getúlio Vargas, do Rio, então o maior pólo de discussão econômica existente no país.

Os trabalhos indicavam um caminho a seguir: o da industrialização comandada pelo Estado. Se este era o caminho, restava explicar as raízes da industrialização e a maneira de implementá-la aqui. Foi o que fez Furtado. Coube a ele amadurecer a teoria do subdesenvolvimento, dar-lhe consistência e uma feição mais acabada, e transformá-la em um plano de ação vinculado ao momento histórico que a América Latina então atravessava.

Os escritos de Furtado forjaram o entendimento clássico segundo o qual o subdesenvolvimento não é um estágio obrigatório que os países devam vencer antes de atingir o desenvolvimento. Não é um elo da cadeia que conduzirá o país ao futuro. Na verdade, ele comprovou que o subdesenvolvimento é uma condenação eterna ao atraso resultante do modo de inserção dos países periféricos ao sistema capitalista mundial. Não há, como sustentam os neoclássicos, relações financeiras e comerciais entre países iguais, mas um sistema de dominação camuflado por ideologias.

Vocação agrária

O debate que incendiou os anos 1950 está sendo repisado agora em outros moldes. Naquela época, as correntes retrógradas defendiam a "vocação agrária" do Brasil, em contraposição à necessidade de uma industrialização acelerada, abraçada por Furtado e a Cepal. Hoje, as exportações de commodities tornam dispensável, no entender do consenso mercadista, a oferta de uma taxa de câmbio competitiva à indústria. Desde os primórdios do Brasil, é recorrente o debate entre o liberalismo econômico e o intervencionismo desenvolvimentista. Desde 1994, o primeiro está no poder.

Furtado fez uso do melhor que lhe serviam as teorias de Marx e Keynes, sem ser nem marxista nem professadamente keynesiano. Os livros mais "marxistas" escritos por Furtado - "A Pré-Revolução Brasileira" (1962) e a "Dialética do Desenvolvimento" (1964) - estão, por exemplo, situados na efervescência pré-64. O intervencionismo de extração mais keynesiana perpassa a maior parte de seus livros. Furtado inventou uma escola para si, que ficaria conhecida como a do método histórico-estrutural.

Antes disso, Furtado escreveu uma obra clássica, que viria a figurar ao lado de monumentos explicativos do Brasil, como "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, e "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Hollanda. Trata-se de "Formação Econômica do Brasil", um clássico escrito há 50 anos, quando o pensador paraibano estudava, sob licença da Cepal, no templo keynesiano erguido no King's College, em Cambridge, na Inglaterra - instituto que rejeitava liminarmente as grandes categorias marxistas.

Ainda hoje, a "Formação" tem a força de um vigoroso sopro de ar fresco a varrer os ambientes infestados de modelos probabilísticos estocásticos do cientificismo neoliberal. E, segundo o professor da Fundação Getúlio Vargas Guido Mantega, cada um dos parágrafos do livro serviu de inspiração ou deu deliberada origem a uma tese de mestrado ou doutorado.

Rendição ao mercado

Cassado pelo primeiro ato do golpe militar de 1964, o AI-1, onde poderia exilar-se o professor rejeitado pelas elites brasileiras? Imediatamente, recebeu três convites para lecionar nos santuários em que estudavam os filhos da elite americana. Yale, Harvard e Columbia disputaram seus conhecimentos. Preferiu ir para o Chile, a convite do Instituto Latino-Americano para Estudos de Desenvolvimento. Só em setembro de 1964 iria para New Haven, como pesquisador graduado do Centro de Estudos do Desenvolvimento da Universidade de Yale.

Para Mantega, em texto publicado no fim de 1989, "Furtado é um dos pais do intervencionismo keynesiano no Brasil e o primeiro pensador brasileiro a desenvolver um modelo de análise baseado na heterodoxia estruturalista". Nessa curta definição estão as três palavras capazes de interditar o pensamento furtadiano no Brasil atual: intervencionismo, heterodoxia e Keynes. Furtado sabia disso e, nos últimos anos, amargurou-se e decepcionou-se com os rumos dos governos neoliberais. "O triste é imaginar que um país em construção fosse entregue ao mercado", disse, em entrevista publicada pelo Valor em junho de 2000.