Título: Competição será voraz
Autor: Pires, Luciano; Verdini, Liana
Fonte: Correio Braziliense, 11/01/2011, Economia, p. 12

A nova ordem global As trocas de mercadorias e serviços não se concentram mais entre os Estados Unidos e a Europa. Agora, são os países emergentes que dão as cartas no comércio mundial

O avanço dos países emergentes na economia mundial está redistribuindo o peso no comércio exterior. Nas próximas décadas, essas nações serão protagonistas ainda mais expressivos dentro da imensa feira internacional de compra e venda de mercadorias. De tão intenso, o movimento fará com que a Europa e os Estados Unidos ¿ a ligação Norte-Norte ¿ percam espaços até então exclusivos. As mudanças no fluxo de trocas globais devem provocar grandes turbulências entre importadores e exportadores.

Dos anos 1980 para cá, o ritmo de crescimento do comércio das regiões em desenvolvimento com o resto do mundo vem superando, na média, a expansão do Produto Interno Bruto (PIB) do planeta. A uma velocidade incrível, países que antes viviam à margem do processo passaram a interferir de maneira ativa. Não à toa, os emergentes já são responsáveis por quase a metade das brigas travadas na Organização Mundial do Comércio (OMC).

Ricardo Carneiro, professor da Universidade de Campinas (Unicamp), destaca o ¿fator China¿, que se tornou o maior exportador mundial ¿ superando a Alemanha ¿, como o fiel da balança das relações comerciais agora e no futuro. ¿Os chineses avançaram muito e mantêm uma parceria ativa com vários países, especialmente da América do Sul¿, explica. Carneiro adverte, no entanto, que o motor da pujança chinesa tem sido o forte subsídio oficial embutido nas exportações por meio de um moeda, o iuan, sobrevalorizada em relação ao dólar, o que levou o país asiático a conquistar mercados em uma velocidade incomum. A corrente de comércio (vendas e compras) do país chegou a cerca de US$ 3 trilhões no ano passado.

O primeiro time daqueles que um dia se tornarão potências, os Brics (Brasil, Rússia, Índia e China), puxa o novelo das principais mudanças que afetam o comércio exterior atualmente. Dotados de uma invejável disposição para comprar e vender, esses países deslocaram polos tradicionais que davam as cartas no complexo jogo mercantil. O resultado é uma inserção agressiva na nova ordem mundial, ainda que por trás dela estejam diferentes modelos de desenvolvimento.

Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) faz uma detalhada radiografia das qualidades e do potencial de cada um dos Brics. O Brasil, na avaliação dos técnicos do Ipea, se destaca pelo consumo e pelo mercado doméstico fortes. A Rússia, por sua vez, avança à custa das commodities energéticas. Já a Índia especializou-se em serviços para crescer a taxas altíssimas e aumentar a sua competitividade. Os chineses, em contrapartida, sustentam-se em manufaturas e no investimento para adquirir robustez. Tais diferenças, que tanto ajudam esse grupo de países a se fortalecer, traduzem-se no comércio internacional praticado por ele.

O Brasil, na radiografia feita pelo Ipea, destaca-se em bens primários agropecuários e bens intensivos em recursos naturais (minério de ferro, por exemplo) ¿ marcas que devem ser reforçadas nas próximas décadas. A China é campeã em artigos têxteis e de vestuário, mas não deverá se contentar apenas com isso, tanto que está apostando tudo na inovação para deixar para trás os tempos de especialista em cópias. A Índia, por sua vez, tende a apostar todas as suas fichas no aumento da sofisticação tecnológica de seus itens comercializáveis. A Rússia projeta no horizonte ampliar a sua competitividade naquilo que tem de melhor: produtos primários minerais.

Supervalorização A guerra cambial que se espalhou pelo mundo na forma de supervalorização das moedas de países emergentes ¿ entre as quais o real ¿ pode ser a pedra no caminho, alertam os analistas. ¿Mais importante do que aumentar ou mesmo preservar as exportações é defender o nosso mercado interno de uma inundação de importados¿, pondera Ricardo Carneiro, da Unicamp. Para ele, o Brasil não aguentará por muito mais tempo a atual taxa de câmbio (abaixo de R$ 1,70), que pune o empresário e corrói a balança comercial. ¿O país deveria desvalorizar o real aos poucos, para não ter impacto na inflação e proteger o mercado interno, ajudando ainda a reconquistar os parceiros comerciais mais próximos, já que os preços de nossos produtos em dólar cairiam com essa medida¿, diz.

O resultado da balança comercial deste ano vai depender, principalmente, do comportamento do câmbio e do ritmo de crescimento da economia brasileira ¿ há quem aposte em deficit de até US$ 8 bilhões. ¿O Brasil terá que encontrar nichos para colocar os produtos manufaturados, já que os principais mercados consumidores estão muito retraídos¿, justifica Lia Valls, coordenadora do Centro de Comércio Exterior do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). O cenário é ainda mais desfavorável ao Brasil porque não há previsão de aumento de compras em um horizonte previsível. ¿Hoje, o comércio está muito concentrado na China, que compra grandes volumes de produtos primários para seu crescimento. Então, podemos afirmar que não está havendo a primarização da pauta de exportações brasileira, mas estamos vendendo básicos porque é essa a demanda que estamos recebendo¿, explica Lia.

Máquina exportadora O saldo comercial da China diminuiu em 2010, mas a sua dimensão ¿ US$ 183,1 bilhões ¿ deve continuar sendo um tema de discórdia, principalmente nos Estados Unidos, que vêm atacando a insistência do governo chinês de manter o iuan sobrevalorizado. O superavit foi o maior do mundo do ano passado, mesmo tendo caído 8,9% sobre 2009.

Mercados-alvos Os produtos manufaturados brasileiros têm como mercados alvos os Estados Unidos e a América Latina. Nesses casos, o real supervalorizado está afetando bastante as transações. ¿O que estamos vendo é que os setores industriais estão se tornando deficitários devido ao câmbio. É o caso de produtos de alimentos e bebidas, pecuária, celulose, veículos automotores, confecções e vestuário e têxtil¿, diz Lia Valls, coordenadora do Centro de Comércio Exterior do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).

Desafios brasileiros

O aumento da participação do Brasil no comércio internacional está condicionado à expansão dos mecanismos de financiamento, à simplificação dos processos aduaneiros e burocráticos, à melhoria na promoção comercial, ao combate ao protecionismo e ao aumento de acesso a mercados. O diagnóstico é da Confederação Nacional da Indústria (CNI), que defende ainda a ampliação do apoio às empresas para operar no exterior e uma ampla reforma institucional, vinculando à Presidência da República a Câmara de Comércio Exterior e o sistema aduaneiro.

¿A economia brasileira é muito heterogênea¿, resume José Augusto Coelho Fernandes, diretor-executivo da CNI. ¿Temos indústrias de ponta, mas temos também uma economia informal expressiva.¿ Para a CNI, o Brasil ainda subaproveita as oportunidades do comércio no mundo, mantendo uma participação muito baixa nesse mercado. O país já é a oitava maior economia do mundo, mas ocupa apenas o 20º lugar entre os principais exportadores. E cai para o 28º lugar no mundo quando se consideram apenas as manufaturas. ¿A indústria brasileira não é um setor de baixos salários¿, diz Fernandes. Em função disso, acrescenta, é fundamental investir em inovação para garantir espaço para nossos produtos no mundo.

Os principais desafios do país no exterior passam pela sustentação do forte crescimento das exportações e pela diversificação e ampliação das vendas industriais. O câmbio é um caso à parte. Mas, para a CNI, não significa voltar ao regime de taxas fixas nem abandonar o regime de metas de inflação ¿ cuja administração tem impacto direto no câmbio. (LV)