Título: Sucessão na Argentina é marcada por escândalos
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Fonte: Valor Econômico, 14/08/2007, Opinião, p. A18

Enquanto tenta realizar uma inédita transferência de poder para a própria esposa, o presidente argentino, Néstor Kirchner, vê-se assolado por uma súbita irrupção de malas recheadas de dólares perto de membros importantes de seu governo. A primeira delas, contendo algo como US$ 240 mil, foi encontrada em um lugar suspeito - um banheiro - em um prédio que deveria estar acima de suspeitas, o Ministério da Economia. A ministra Felisa Miceli tentou como pôde se desvencilhar do incômodo achado, sem sucesso. Foi convidada a se demitir pouco antes de Kirchner sagrar a candidatura da esposa Cristina à Presidência. A outra mala, encontrada na semana passada, é igualmente incômoda e maior. Continha US$ 790 mil e foi transportada por um avião particular de uma empresa do governo argentino, a Enersa, que vinha de Caracas após supostos encontros de negócios com a PDVSA, estatal venezuelana de petróleo.

Os escândalos se sucedem ao final do mandato de Kirchner, marcado no seu início pela determinação de retirar a Argentina da maior crise de sua história e, no seu fim, por uma vontade de continuísmo que não se dobra a nenhum obstáculo, nem mesmo ao uso aberto e maciço da máquina estatal para favorecer a candidata oficial. A mala do avião é potencialmente um embaraço maior do que a que pousou no banheiro da ministra da Economia. No avião encontrava-se Claudio Uberti, diretor do órgão que controla estradas e pedágios e cuja atividade funcional tem pouca relação com assuntos de energia. Ele é braço direito do todo poderoso ministro do Planejamento e Obras, Julio de Vido, íntimo de Kirchner e um de seus mais fiéis escudeiros desde antes de ele disputar a Presidência. Mera coincidência ou não, a dupla Vido-Uberti se encarregou das finanças da campanha presidencial e as malas com dólares começaram a se deslocar em meio a outra corrida eleitoral, desta vez, a de Cristina.

Kirchner está agora cobrando respostas do presidente Hugo Chávez para a bagagem, supostamente de propriedade de uma figura que anda nas penumbras dos negócios de petróleo na Venezuela, Guido Antonini Wilson, um novo milionário que habita no eixo Miami-Caracas. A exigência tem motivado troca de indelicadezas, sem um final decisivo. Chávez esteve em Buenos Aires na semana passada e pôs mais US$ 500 milhões na compra de títulos argentinos - agora, tem mais de US$ 5 bilhões desses papéis.

O escândalo abalroa a campanha de Cristina Kirchner por um lado delicado. A Argentina está em meio a uma séria crise energética e depende de Chávez e seu aliado, Evo Morales, para seu suprimento. A esposa de Kirchner, entretanto, vem tentando, domesticamente e em seus périplos internacionais, se desvencilhar dos abraços excessivamente apertados do presidente venezuelano. É provável que essa manobra de independência - se não é apenas um simulacro - seja em breve arquivada. É uma segunda pedra, além dos escândalos, que Cristina encontrará em um caminho que, apesar de tudo, a levará inexoravelmente à Casa Rosada.

Cristina acredita que é hora de se aproximar dos empresários, duramente hostilizados por Néstor Kirchner, quando as circunstâncias eram propícias a sua popularidade. O erro de cálculo do congelamento prolongado das tarifas de energia, que resultou no apagão, foi um sinal claro de que algo precisa mudar neste campo. Os acenos da candidata abrem caminho para um descongelamento agora problemático, porque a inflação não se encontra em patamar confortável para o governo. Desta forma, é provável, mantendo-se tudo em família, que no mandato de Cristina os preços sejam reajustados, algo que não desautorizaria os atos de Kirchner nem sua aura de um líder duro e decidido. O congelamento de preços deve ser abrandado.

Este roteiro só tem chances de se desenvolver se os investimentos crescerem para ampliar a capacidade de produção, que já atingiu seu pico e se transformou em uma ainda suave corrida de preços. A vantagem de Cristina é poder se desvencilhar de escândalos que um governo de traços autoritários ajudou a nutrir. A desvantagem é que a herança econômica, ao contrário da tranqüila sucessão política, é pesada e pode exigir mais jogo de cintura e paciência do que a primeira-dama ostentou até agora.