Título: Os sonhos uruguaios de união
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 21/01/2005, EU & FIM DE SEMANA, p. 16

Um dos dois "primos pobres" do Mercosul, o Uruguai está disposto a jogar um papel mais ativo nas formulações políticas, econômicas e comerciais do bloco. E suas intenções estão longe de ser modestas. Nas palavras do presidente eleito em outubro, Tabaré Vázquez Rosas, oncologista descendente de bascos nascido em um bairro operário de Montevidéu, socialista e maçon que rompeu 172 anos de bipartidarismo de "blancos e colorados" no poder, seu país está disposto a atuar como "uma enzima". Ele explicou a analogia, resquício de sua formação acadêmica, no recém-lançado livro dos jornalistas Edison Lanza e Ernesto Tulbovitz que relata sua trajetória. "Às vezes, a união de duas moléculas enormes, protéicas, só ocorre na presença de uma enzima, infinitamente menor que qualquer delas. O Uruguai pode ser o catalisador ou a enzima, que pode reunir esses países da região em um projeto mais ambicioso. Algo que vai muito além de uma base alfandegária comum." Velho militante do Partido Socialista, o senador Reynaldo Gargano foi talvez a liderança tradicional com quem Vázquez, que só entrou para a política aos 46 anos, mais disputou espaço na Frente Ampla, surgida em 1971. O parlamentar, integrante do Encuentro Progresista, será o ministro das Relações Exteriores do novo governo . Em entrevista ao Valor, explicou como é ser uma enzima. Afirmou que, para a empreender a mudança prometida na campanha, a prioridade no Uruguai passará a ser a região. No Mercosul, tratará de promover a coordenação da macroeconomia - incluindo aí a monetária e a produtiva - dos quatro países. Não é pouco. Seja porque as dificuldades de sintonia no plano comercial entre Brasil e Argentina são crescentes, seja porque a idéia de uma política monetária comum, apontando para uma moeda única, entre Brasília, Buenos Aires, Montevidéu e Assunção, levou mais de uma década para ser construída no primeiro mundo europeu. Ex-presidente da Comissão de Assuntos Internacionais no Senado uruguaio, Gargano contesta. Lembra que, nos primeiros sete anos, o Mercosul quase triplicou seu comércio com o Brasil, o que parecia impossível. E que, nos três últimos anos, o fato de o Brasil ter desvalorizado em 100% sua moeda avisando o que fazia só no dia seguinte ao Uruguai, cuja competitividade se esvaiu à metade, e de a Argentina ter rompido com a convertibilidade do peso sem se acertar antes com os sócios, atesta a cabal necessidade de uma coordenação macroeconômica. "Mais que tudo, essa é uma imperiosidade que a economia real impõe aos quatro países. E ela fará possível a constituição de um mecanismo formal de decisão que garanta a coordenação", defende Gargano. Traduzindo: ele planeja propor a criação de um parlamento que articule a política supranacional. O órgão estimularia, por exemplo, a formação de cadeias produtivas que envolvam todos os países. "Por que não buscar no âmbito da produção alimentícia a complementaridade entre os quatro países?", indaga. Mas o Uruguai não pretende mediar os conflitos entre Brasil e Argentina na esfera comercial. "Isso será automaticamente resolvido à medida que as política macroeconômicas se afinarem." Quem olhar as economias do Mercosul talvez se espante com a intenção de Vázquez e a julgue mero discurso político. A uruguaia lhe rende pouco cacife. O PIB do país, hoje na casa de US$ 14 bilhões, é a décima parte do argentino e algo como a quadragésima parte do brasileiro. As exportações para o Brasil mal alcançam meio bilhão de dólares e, para a Argentina, rondam igual patamar. A balança inverte o resultado quando se trata de indicadores sociais. A renda per capita anual é um deles: entre 3,5 milhões de uruguaios, a população com maior nível de instrução da América Latina, atinge US$ 4.600 em 2004, contra US$ 3.684 dos argentinos e US$ 3.068 dos brasileiros. O país importa todo o petróleo que consome e até hoje abriga uma economia fundamentalmente agropecuária e de serviços. Nela, modernidade é coisa rara. E a recessão recente, em 2002/3, levará Vázquez a tomar posse com 500 mil uruguaios vivendo no exterior por falta de oportunidade em sua pátria. Sem dúvida, o Uruguai é o endereço de bem-estar social na América Latina. Sua distribuição de renda é das mais equânimes, com o importante detalhe de que 80% da população são classe média há quase um século. Goza do melhor nível de instrução entre os latinos. Pode ser pouco para quem já foi uma das mais ricas economias latino-americanas no passado - ao lado de Argentina e Venezuela - e foi chamada de Suíça latina. E não é muito quando se fala de blocos econômicos. Mas a presença internacional do Uruguai se faz notar. Dirige uma instituição multilateral: Enrique Iglesias, presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, nasceu lá. Seus três parceiros de bloco não dirigem nenhuma, embora o Brasil tenha presença no segundo escalão da Organização Mundial do Comércio. É para a direção-geral dela, aliás, que em dezembro o embaixador uruguaio na instituição, Carlos Pérez Del Castillo, lançou sua candidatura. A iniciativa se deu no apagar das luzes do governo de Jorge Battle, do partido Colorado, a quem a história reservou o papel de encerrar o ciclo bipartidário que remonta à independência do país e no qual os blancos só governaram por três mandatos. Seu estilo desconcertante fez par nos últimos cinco anos ao quilate da crise em que se meteu o país, de 1999 a 2003 - a mais grave de sua história. Começou em 1999, quando o Brasil desvalorizou o real. Enquanto cediam as importações brasileiras que, àquela altura representavam, junto com as argentinas, a metade das exportações uruguaias, a febre aftosa entrou na pecuária uruguaia e piorou as contas externas do país. Os esforços desesperados do ex-ministro da Economia argentino, Domingo Cavallo, para driblar o fracasso iminente de sua política e a aplicação do "corralito" sobre os depósitos bancários foram o início do pior. Primeiro, o sistema financeiro uruguaio inchou com depósitos de argentinos. Depois, seus bancos de capital argentino fizeram água e o dinheiro migrou para as instituições públicas. Quando os argentinos, sem dinheiro, já lançavam mão das suas economias, iniciaram a corrida bancária. E o Uruguai, desde os anos 70 endereço da livre movimentação de capitais, não agüentou. Em meio a escândalos de corrupção, seis bancos quebraram. Pudera: o dinheiro estrangeiro era mais da metade do que o seu sistema acolhia. No meio desse terremoto, Battle, entrevistado por um repórter argentino da TV Bloomberg, recusou-se a comparar os uruguaios com seus vizinhos do Rio da Prata. Chamou-os de "um bando de ladrões, do primeiro ao último". Pediu compulsórias desculpas, mas a memória política nunca esqueceu o episódio, nem sua declaração de que Menem voltaria à Casa Rosada. Da crise, o Uruguai saiu com empréstimos de US$ 3 bilhões de organismos multilaterais. Metade do FMI, devidamente adiantados pelo governo de George W. Bush graças a lides de Battle, que se diz amigo do colega norte-americano. Não foi suficiente para impedir que, em um processo político interrompido por ditadura de 11 anos, a esquerda, ascendente nas urnas de seis eleições, chegasse ao poder. A oposição atual prefere atribuir sua derrota ao ônus da crise recente. Afinal, ela fez os uruguaios experimentarem o gostinho de ter a mesma renda per capita dos brasileiros. Em 1999, ela era de US$ 6.331, mais que o dobro, portanto. E conhecerem mazelas como desemprego - 20% da população economicamente ativa - e, como no Rio ou em São Paulo, se depararam com homens limpando vidros de carro no semáforo em busca de trocados, ainda que bem melhor vestidos. Em 2004, a economia uruguaia cresceu 12% e as previsões são de que evolua 6% em 2005. Conviverá, porém, com 90% do PIB de dívida pública, externa e interna, e a exigência de obter 4% de superávit fiscal. A memória dolorida do passado recente ajuda a entender porque um Mercosul coordenado é tão importante para o novo governo. Mas o governo Battle, inoperante no bloco, deixou uma pedra no sapato de Vásquez. É a candidatura de Del Castillo a diretor-geral da OMC. Até maio, três dos quatro candidatos serão excluídos. Para se contrapor a Pascoal Lamy, o francês apoiado pela Comunidade Européia, há dois nomes do Mercosul: o Brasil lançou o embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, dias após o anúncio do nome do uruguaio. Depois da posse, há quem diga que o futuro presidente uruguaio pedirá a seu colega brasileiro, Luis Inácio Lula da Silva, que reveja a candidatura de Corrêa. Duas candidaturas enfraquecem a chance latina de fortalecer-se estrategicamente nas disputas comerciais com as nações desenvolvidas. "Preferia que não fosse assim, mas não vou responder a isso", esquiva-se Gargano.