Título: Energia elétrica: diversificar as fontes para não faltar
Autor: Rezende, Sergio M. e Hubner, Nelson
Fonte: Valor Econômico, 16/08/2007, Opinião, p. A12

Os debates provocados pelo anúncio do governo federal de concluir a usina nuclear de Angra III têm sido caracterizados mais pela emoção do que pela razão. Por isso é importante colocar a questão das fontes nucleares num âmbito mais amplo, uma vez que a sociedade ainda tem pouca informação sobre as questões envolvendo esta fonte de energia.

A energia elétrica é, hoje, um insumo essencial para qualquer país. Na primeira metade do século 20, a geração e distribuição de energia no Brasil foram concedidos à empresas privadas, a maioria estrangeiras. Elas construíram um sistema de geração, quase todo baseado em fontes hidrelétricas, disponíveis em abundância no país; implantaram uma malha de distribuição satisfatória e fizeram os investimentos para ampliar o sistema na medida que o país crescia.

No entanto, a partir da década de 1940, o crescimento industrial e a urbanização fizeram a demanda por energia crescer muito e as empresas deixaram de atender as necessidades. Os "blackouts" e os períodos de racionamento eram freqüentes quando os níveis dos reservatórios estavam baixos.

Diante da escassez de investimentos privados, Getúlio Vargas iniciou a estatização do setor com a idealização da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) e da usina de Paulo Afonso. O processo foi aprofundado com a construção de Furnas, a primeira usina de grande porte do país (1.200 MW), por Juscelino Kubitschek, e a criação da Eletrobrás, em 1962, por João Goulart.

A Eletrobrás tornou-se a controladora do sistema elétrico e fez muitos investimentos nas décadas de 60 a 80 para construir usinas hidrelétricas e linhas de transmissão. Ela também investiu na formação de engenheiros e técnicos que deram autonomia tecnológica em toda a cadeia do setor. E passou a fazer planos de longo prazo para ampliar a oferta de energia. O primeiro foi elaborado em 1978-79, com o horizonte de 1995. O quarto e último em 1991-92, com visão em 2015. Neste processo, uma das ações mais importantes é a decisão de construir usinas, pois elas demandam anos e têm custos elevados.

Por isso o Brasil chegou à metade da década de 1990 com um sistema de geração que atendia às suas necessidades, com certa folga para permitir crescimento. A geração era quase toda baseada em hidroeletricidade, contando com grandes, médias e pequenas usinas. A maior delas é a de Itaipu, com potência instalada de 14.000 MW. A maioria tem potência inferior a 2.000 MW, mas há outras de grande porte, como Tucuruí, com 8.370 MW; Paulo Afonso, com 4.300 MW; Ilha Solteira, com 3.440 MW; e Xingó, com 3.165 MW.

-------------------------------------------------------------------------------- Brasil chegou à metade da década de 90 com sistema de geração que atendia às suas necessidades, com folga para o crescimento --------------------------------------------------------------------------------

O quadro mudou na segunda metade da década de 90, quando o governo decidiu reestruturar o setor tendo como metas principais declaradas trazer investimentos privados, reduzir as tarifas e melhorar os serviços. Contudo, em vez de atrair recursos, optou-se pela privatização do setor com a venda de ativos. Porém, um dos maiores erros do processo foi a extinção do Grupo Coordenador de Planejamento do Sistema (GCPS) da Eletrobrás. As conseqüências dessas ações são conhecidas, com destaque para a crise de energia de 2001, resultado direto da falta de planejamento e de investimentos na expansão do sistema.

A situação hoje é muito diferente. Em março de 2004, o governo criou a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Uma de suas finalidades é justamente planejar o setor. Em 25 de junho último a EPE apresentou ao Conselho de Política Energética o Plano Nacional de Energia 2030. A novidade em relação aos planos da Eletrobrás é que ele apresenta cenários e propostas para toda a matriz energética, considerando todas fontes e aplicações.

No caso da energia elétrica, prevê que a base da matriz continuará sendo a hidroeletricidade. Ela passa de uma capacidade instalada de 68.600 MW, em 2005, para 156.300 MW, em 2030. Entretanto, a EPE indica que após 2020 a opção hidrelétrica se torna escassa e será preciso diversificar a matriz energética. Apesar do aumento planejado, a participação das fontes hidrelétricas cairá de 91% da matriz elétrica em 2005 para 78% em 2030. Os outros 22% serão provenientes de outras fontes, principalmente de usinas térmicas funcionando de forma continua, na base do sistema, e dentre elas a termonuclear. Outras opções sempre mencionadas, como a energia eólica, também terão incremento no uso. Porém, como funcionam de forma intermitente, têm alto custo e apresentam problemas técnicos, terão participação limitada. Anualmente, a EPE prepara o Plano Decenal de Expansão de Energia para o MME onde são atualizados os dados de mercado e previstas todas as ações em termos de implantação de novas usinas e linhas de transmissão.

Portanto, no debate atual há um equívoco em contrapor a geração nuclear com a hidrelétrica, ou com as outras fontes alternativas, pois as atuais usinas Angra I e II produzem cerca de 2.000 MW, apenas 2% da capacidade de geração elétrica do sistema. As principais razões para ampliar participação de usinas termonucleares na matriz energética são: 1) podem estar mais próximas dos centros consumidores, o que diminui o custo e as perdas elétricas nas linhas de transmissão; 2) operam de forma contínua e não têm efeitos de sazonalidade, razão pela qual Angra I e II foram essenciais para minimizar os efeitos da crise de 2001 na região Sudeste; 3) estudos indicam uma tarifa competitiva para as usinas termonucleares, abaixo das tarifas de outras fontes térmicas e muito menores que as de fontes alternativas, como a eólica e a solar; 4) não emitem gases de efeito estufa, assim são as mais indicadas para preservar o meio ambiente no longo prazo.

Uma preocupação dos ambientalistas diz respeito aos rejeitos das usinas, isto é, o combustível nuclear após o uso. É importante esclarecer que o volume desses rejeitos é muito reduzido se comparado a outras atividades. Equivale a 1.500 m3 numa usina nuclear de 1.000 MW operando por 60 anos. Ou seja, os resíduos de 20 usinas, em 60 anos, cabem em um campo de futebol escavado com cinco metros de profundidade.

Finalmente, um argumento muito importante para o Brasil não deixar de utilizar esta forma de energia é que o país tem reservas de urânio suficientes para alimentar Angra I, II e III por 500 anos! E detém a tecnologia para seu processamento e uso final.

O Plano de Energia prevê que em 2030 as fontes nucleares podem atingir até 3% da capacidade de geração do país, um percentual ainda pequeno para caracterizar uma mudança na política energética. Entretanto, não usá-las por preconceito ou má informação não é uma medida inteligente. Ela contribuirá para a diversificação da matriz energética, fator fundamental para dar robustez ao sistema e para garantir que não faltará energia para o Brasil crescer e se desenvolver.

Sergio Machado Rezende é ministro da Ciência e Tecnologia.

Nelson Hubner é ministro de Minas e Energia e presidente do Conselho Nacional de Política Energética.