Título: Jamie Foxx é tão bom quanto Ray Charles
Autor: Carlos Calado
Fonte: Valor Econômico, 21/01/2005, EU & FIM DE SEMANA, p. 4

Denzel Washington consolou-se no ombro do amigo Jamie Foxx, quando concorreu ao Oscar por "Hurricane - O Furacão" e perdeu a estatueta para Kevin Spacey, por "Beleza Americana", em 2000. "Aprendi uma lição ao ver Denzel, um homem que respeito tanto, arrasado em quarto de hotel", contou Foxx. Seu intenso desempenho como Ray Charles na cinebiografia "Ray", personificando nas telas todas as nuances dessa lendária figura musical negra, faz dele o favorito ao prêmio de melhor ator que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood vai entregar no dia 27 de fevereiro, no Kodak Theatre. "Não vou me deixar abater, se não for reconhecido. Ninguém entende mesmo o mecanismo do Oscar", disse o ator de 37 anos, em entrevista exclusiva ao Valor. O anúncio dos indicados ao prêmio máximo do cinema só sai no próximo dia 25, mas Foxx já pode se sentir no páreo. Principalmente depois de ter levado para casa, no domingo passado, o Globo de Ouro de melhor ator em comédia ou musical - distinção concedida pela associação de correspondentes estrangeiros de Los Angeles. Bem-humorado, Foxx fez uma rápida imitação do cantor, pianista e compositor cego, antes de se emocionar no seu discurso de agradecimento no palco. "Sempre achei brega lembrar de discriminação em uma hora como essas, mas aconteceu comigo também", contou, com a voz embargada. Naquela noite, Foxx ainda fazia história no Globo, ao concorrer em mais duas categorias: ator de telefilme por "Redemption" e ator coadjuvante por "Colateral". O único adversário capaz de ameaçar a vitória de Foxx no Oscar é Leonardo DiCaprio, que também foi premiado com o Globo, como melhor ator em drama pela performance como o bilionário Howard Hughes. Os dois certamente vão bater de frente no prêmio da Academia, que não faz distinção entre drama e comédia/musical. Mas Foxx leva vantagem por impressionar na composição minuciosa do cantor, reproduzindo a sua fala e os seus gestos. Por mais que DiCaprio tenha se esforçado ao compor o seu personagem, também verídico, quase ninguém se lembra de Hughes. Já o autor de canções como "Hit the Road Jack", "Georgia on My Mind" e "What'd I Say" era uma personalidade querida. A imagem do ícone musical, que morreu de complicações no fígado, aos 73 anos, em junho, ainda está fresca na memória dos membros da Academia. Nem a tradicional predileção da Academia por dramas deve favorecer DiCaprio. Embora "Ray" seja considerado musical na classificação, a performance de Foxx é dramática, à medida que o roteiro aborda os demônios de Ray Charles - como o vício da heroína, a culpa pela morte do irmão caçula (afogado em balde) e os relacionamentos amorosos turbulentos. " Fico feliz por Ray ter visto uma cópia, ainda que não-finalizada do filme, da maneira que ele podia, antes de morrer. É uma celebração da sua vida, com todas as tristezas e alegrias.´´ Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista que Foxx concedeu em Nova York. Valor: O que o impressionou ao conhecer Ray? Jamie Foxx: Ray não era mais aquela figura energética e vibrante. Já estava velho e cansado quando nos encontramos. Mas nem por isso ele foi menos caloroso. Assim que cheguei, ele foi logo me abraçando e me levou ao piano. Disse que eu não precisaria me preocupar em representá-lo. "Se você conseguir tocar blues, certamente chegará a mim", disse. Tocamos juntos, mas eu logo me atrapalhei e errei algumas notas. Ray parou e perguntou como eu podia errar, tendo as teclas bem debaixo dos meus dedos. Disse que eu só precisava respirar fundo e procurar tocar nas notas certas. Sem perceber, Ray abriu os meus olhos. Sua história é uma das mais belas metáforas da vida que já ouvi. Valor: Ray mostrou-se preocupado com o retrato que você faria dele nas telas? Foxx: Não. Provavelmente porque ele confiava em Taylor Hackford (o diretor do filme), que havia me escolhido. Não senti que Ray abriu as portas de sua casa para me julgar ou mesmo orientar. Ele só queria mesmo me conhecer. Fiquei emocionado ao receber a sua bênção. O encontro foi muito mais proveitoso para mim, por me dar a chance de sentir a sua energia. " Ray´´ não é uma cinebiografia comum. Mais do que refazer a trajetória do músico, ela procura captar o seu espírito. Valor: Como recebeu a notícia da morte de Ray? Foxx: Foi duro. Principalmente porque nos últimos seis meses de sua vida todos sabiam que ele estava chegando ao fim. Ray fez questão de avisar de seu estado de saúde crítico. Foi um período triste, mas, ao mesmo tempo, elevado espiritualmente. Quincy Jones, seu grande amigo, chegou a gravar vários CDs e vídeos de conversas com Ray. Ele deixou claro que estava feliz com tudo o que tinha feito na vida. E essa não é uma maneira ruim de partir deste mundo: em paz. Valor: Como conseguiu reproduzir com perfeição a voz e os maneirismos do músico? Foxx: Durante três anos eu assisti a vídeos com suas entrevistas e apresentações. Foi um trabalho minucioso de observação. Graças a isso, pude cantar em alguns momentos do filme, ainda que a platéia pense que estou fazendo playback sobre a voz de Ray. Valor: Como foi atuar sem ver, usando uma prótese durante a filmagem? Foxx: A cegueira foi complicada, já que eu não tinha como trapacear. Eu ficava cerca de 14 horas por dia com os olhos fechados e a prótese sobre o rosto. Até mesmo na hora do almoço. Muitas vezes o pessoal da equipe esquecia que eu não estava enxergando e me deixava para trás. Eu tinha de pedir ajuda para ir até a comida. Inicialmente, a experiência foi assustadora. Foi como mergulhar numa piscina escura. Fui me acostumando aos poucos, passando a perceber como o som fica mais intenso quando não podemos contar com a visão. Na hora de cantar, parecia que a música estava nas minhas veias. Valor: A imagem que você tinha de Ray mudou com a experiência? Foxx: Sim. Antes eu só conhecia as suas musicas. Sem entender a dinâmica da sua vida, não imaginava como ele tinha sido um homem admirável e corajoso. "Georgia on My Mind", por exemplo, não era apenas uma bela canção. Mas sim uma mensagem a todas as pessoas ignorantes, que deixavam o racismo atrapalhar as suas vidas. Se quase tudo é branco e preto na nossa cultura hoje, imagino como deve ter sido ainda mais difícil nos anos 50 e 60. Mas Ray não se conformava. Ele fez historia ao tocar com orquestras de brancos, incluindo alemães. Hoje vejo não só a lenda, com todas as suas idiossincrasias, mas também o herói. Valor: Por que o filme levou 15 anos para sair? Foxx: A idéia de cinebiografias sobre personalidades negras são difíceis de vender aos estúdios de Hollywood. Mesmo quando o filme já estava pronto foi duro conseguir distribuidor. Há pouco mais de um ano, ninguém queria. O único que se interessou foi Ron Meyer, presidente da Universal. Isso porque, quando ele tinha 15 anos, costumava driblar a segurança para ver as performances de Ray. Além disso, os produtores e o diretor demoraram para juntar todos os elementos para o filme. Fico feliz porque, se " Ray´´ tivesse sido rodado antes, eu não teria tido essa oportunidade. Valor: Está preparado para ter os estúdios a seus pés? Foxx: Muita coisa mudou. Tenho recebido roteiros decentes e não mais aquelas porcarias. Durante muitos anos só me chamavam para viver personagens sem nome, de tão insignificantes. Eram chamados no roteiro de " negros boa pinta´´ (risos).