Título: O retrato de um gênio do pop
Autor: Carlos Calado
Fonte: Valor Econômico, 21/01/2005, EU & FIM DE SEMANA, p. 4

A música pop dos últimos 50 anos não seria a mesma sem ele. Cantor de voz e estilo inconfundíveis, Ray Charles (1930-2004) foi o mais brilhante pioneiro da soul music - gênero que uniu a sensualidade profana do rhythm'n'blues com o fervor sagrado do gospel, abrindo caminho para outras correntes do pop negro, como o funk e o hip hop. A biografia desse compositor e pianista revela semelhanças com as de outros músicos negros de sua geração, mas nenhum deles enfrentou tantas adversidades - a infância paupérrima, a cegueira aos sete anos de idade, o vício da heroína ou o violento preconceito racial do Sul dos EUA -- até se estabelecer como um dos artistas mais originais do século 20. Essa dramática trajetória serve de enredo a "Ray", filme protagonizado pelo comediante e ator Jamie Foxx (vencedor do Globo de Ouro de melhor ator de 2004), que tem estréia prevista no Brasil para 4 de fevereiro. Durante os 15 anos que levou para financiar a produção, o diretor Taylor Hackford contou com a colaboração do próprio Ray Charles. O cantor não só leu (em braille) e aprovou o roteiro de James White, como testou a desenvoltura musical de Foxx, que, exatamente como ele, começou a estudar piano aos 3 anos de idade. Detalhes como esse ajudam a explicar a impressionante performance do ator. Além de decalcar os gestos mais característicos, as expressões faciais e mesmo a entonação vocal e o sotaque de Ray, Foxx fez questão de aprender a tocar todas as canções que dubla no filme. E, para transmitir maior veracidade, atuou com uma película nos olhos, que o impedia de enxergar. A semelhança é tamanha, em algumas cenas, que fica difícil evitar o clichê: Foxx parece ter se apoderado da alma de seu personagem. A primeira seqüência do filme sintetiza a trajetória do protagonista. Aos 17 anos, viajando sem acompanhante, nem mesmo uma bengala, o cego Ray Robinson (que depois trocou o sobrenome por Charles, seu segundo nome, para não ser confundido com o campeão de boxe "Sugar" Ray Robinson) é barrado à porta do ônibus no qual pretende cruzar o país. Para convencer o motorista a aceitá-lo, precisa inventar uma mentira. Ao dizer que perdeu a visão na guerra, consegue finalmente um lugar na parte traseira do veículo, reservada aos negros. Para sobreviver num universo tão preconceituoso, Ray só podia contar com a inteligência e seu imenso talento musical. Hackford e seu roteirista optaram, acertadamente, por concentrar a narrativa do filme nas primeiras quatro décadas da vida de Ray Charles, período em que ele enfrentou os maiores desafios para se estabelecer como artista de sucesso. Aos que chegaram a criticar o roteiro do filme, por deixar de fora as décadas mais recentes, nas quais o cantor praticamente só recebeu elogios e homenagens, Hackford respondeu com um argumento consistente: biografias laudatórias costumam ser chatas. Nas entrevistas de divulgação do filme, o cineasta disse também que Ray Charles lhe pediu que contasse sua história sem meias-verdades. De fato, "Ray" consegue captar ao menos em parte a complexidade de seu personagem principal. Assim como usou várias cenas para ressaltar a genialidade artística de Ray, mostrando como ele criou canções que mudaram o cenário musical dos anos 50 e 60, ou mesmo conquistou privilégios profissionais inéditos até então para um músico negro, Hackford não se negou a revelar traços derrisórios da personalidade de seu protagonista: da permanente desconfiança com a qual encarava quase todos à sua volta, até o jeito cafajeste de tratar as mulheres, descartando-as ao ser contrariado. Por sinal, as atrizes Kerry Washington e Regina King também se destacam nos papéis da primeira mulher e da vocalista e amante mais estável do cantor. Hackford chega a sugerir no filme uma ligação entre a cegueira de Ray (o suposto glaucoma nunca foi realmente diagnosticado) e a morte acidental de seu irmão mais novo, afogado numa tina de água, um ano antes que ele começasse a perder a visão. Na autobiografia que escreveu em parceria com o jornalista David Ritz ("Brother Ray", publicada em 1978), o cantor não dá indícios de que se sentiria culpado por não ter conseguido salvar o irmão, mas Hackford tem afirmado em entrevistas que ele admitiu essa possibilidade em conversas particulares. Esse suposto trauma psicológico é sugerido por meio de flashbacks, entre cenas da infância miserável de Ray, que cresceu num povoado do Norte da Flórida, para o qual a família mudou-se pouco depois do nascimento do cantor, em Albany, na Geórgia. A determinação da mãe - Aretha Robinson (interpretada pela enérgica Sharen Warren), que enviou o garoto a uma distante escola para cegos e surdos, em St. Augustine, onde ele aprendeu a ler em braille e a tocar vários instrumentos musicais - foi essencial para que ele se tornasse auto-suficiente. E de fato não lhe restou outra alternativa, porque aos 16 anos já tinha se tornado órfão de pai e mãe. Mesmo o envolvimento do cantor com as drogas - tema que Hollywood costuma explorar com mão pesada, a exemplo do que Clint Eastwood fez em "Bird", a cinebiografia do saxofonista Charlie Parker - foi tratado por Hackford com razoável equilíbrio. Claro que ele não perdeu a chance de tentar redimir moralmente seu herói, retratando sua dolorosa passagem por uma clínica de recuperação, em 1965, depois de ser detido por posse de heroína e maconha. Ou de ressaltar sua atitude "faça o que eu digo, não o que eu faço", na cena em ele briga com a vocalista e amante, por perceber que ela também aderira ao vício. Para os fãs do cantor, o maior atrativo do filme está nas cenas que mostram como ele evoluiu musicalmente: a fase inicial, quando ainda emulava os estilos vocais de Nat King Cole e Charles Brown, as primeiras gravações pela pequena gravadora Atlantic, no começo dos anos 50, até a polêmica fusão de R&B e country que ele lançou na década de 60, puxada pelo sucesso "I Can't Stop Loving You". Para isso, Hackford conta com uma bem selecionada trilha sonora, já disponível em edição nacional da Warner, que reúne 16 faixas (seis ao vivo), todas gravadas por Ray Charles entre 1953 e 1976. Quem leu a autobiografia do cantor vai perceber que o filme simplifica ou mesmo romantiza certos episódios, como a cena em que ele e a vocalista Margie cantam "Hit the Road Jack" durante uma discussão amorosa, como num musical da Broadway. Algo semelhante acontece com "I've Got a Woman", marco histórico do soul, que chegou a provocar protestos de religiosos negros, em 1955. Na verdade, ao criá-la, o cantor adaptou fragmentos de uma letra de Renolds Richard, trompetista de sua banda, à melodia de uma canção gospel, mas no filme a nova canção surge como uma comemoração de Ray por ter conquistado sua primeira mulher. Já o episódio da criação de "What'd I Say", que chegou a ser vetada por rádios puritanas, em 1959, é mais fiel à realidade: foi composta de improviso, num clube, porque a banda já tinha tocado todo seu repertório naquela noite, mas o show ainda não terminara. Comparado a "Genius Loves Company", o CD póstumo em que Ray Charles canta em duos com astros atuais da música pop, "Ray" leva uma evidente vantagem. Em vez da melancolia que a voz do cantor denotava nesse álbum-testamento, a trilha do filme mostra-o no auge da carreira, interpretando algumas de suas obras mais vibrantes e geniais. Se lhe pedissem para escolher como gostaria ser lembrado para sempre, o pioneiro da soul music certamente indicaria alguma das canções da trilha de "Ray".