Título: A longa marcha da China para ser uma superpotência militar
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 16/08/2007, Especial, p. A14

A visão é tão estranha quanto a desolação das cercanias. Um grande navio se move através da névoa poluente que cobre o Golfo de Bohai, em cujas margens há uma vastidão de brejos, salinas e criadouros de peixes. Trata-se do porta-aviões Kiev, outrora orgulho da União Soviética. Hoje, é uma atração turística. Visitantes chineses se espremem pelo deck sob guarda-sóis com a marca Pepsi, espelhando talvez uma grande potência do passado e outra, a deles, que está rapidamente em formação.

Dentro do Kiev, o hangar foi dividido em dois. De um lado, visitantes com ar entediado assistem uma variedade de exibições de dança e de trajes representando minorias étnicas. Do outro lado, há um modelo completo do novo J-10 chinês, avião anunciado com grande estardalhaço em janeiro como o jato mais avançado já construído pelos chineses (eles usam turbinas turbofan ucranianas ou russas, mas o governo prefere não propagandear isso). Alguns analistas militares acreditam que uma versão desse jato poderá ser algum dia empregada em um navio chinês.

O Pentágono observa com preocupação as ambições da China em relação a porta-aviões. Desde a década de 80, a China já comprou quatro deles (três da ex-URSS e um da Austrália). Assim como o Kiev, o Minsk (ancorado perto de Hong Kong) se tornou uma atração turística, após ser estudado atentamente por engenheiros navais chineses. O porta-aviões australiano, o Melbourne, foi desmontado. O maior e mais moderno deles, o Varyag, está na cidade portuária de Dalian, no norte da China, para ser reformado. Seu destino é incerto. O Pentágono diz que ele poderá ser colocado em serviço, usado para treinamento de tripulações de porta-aviões, ou se tornar mais um parque temático flutuante.

A supremacia mundial americana não será desafiada pelos porta-aviões remendados chineses. Mesmo que a China colocasse um novo em serviço - algo que analistas acreditam ser improvável antes de 2015 - ele seria inútil na área mais provável de um potencial conflito entre China e EUA, o Estreito de Taiwan. A China poderia lançar seus jatos com maior facilidade do continente. Mas ele seria visto como um símbolo potente da ascensão da China como potência militar. Alguns membros do governo chinês querem levar a bandeira de seu país ainda mais longe como demonstração da ascensão da China. Com o país emergindo como um gigante comercial (cada vez mais dependente do petróleo importado), alguns de seus analistas militares falam da necessidade de proteger rotas marítimas distantes no Estreito de Málaca e além.

Há duas semanas, o Exército de Libertação do Povo da China (ELP), como são conhecidas as Forças Armadas chinesas, celebrou seu 80º aniversário. Ele foi criado como grupo de rebeldes que se levantou contra os então governantes do país. Hoje, seu objetivo é se tornar uma das Forças Armadas mais eficientes do mundo: a ponto de, se preciso, até mesmo manter os americanos afastados. O ELP não tem muita urgência de confrontar diretamente os EUA, mas quer desencorajá-los de proteger Taiwan.

O ritmo das melhorias da China no terreno militar desperta preocupações no Pentágono. Eric McVadon, contra-almirante reformado, disse a uma comissão do Congresso em 2005 que a China havia dado "um passo admirável" na modernização de suas Forças Armadas, necessária para subjugar Taiwan e conter ou enfrentar uma intervenção americana. E o ritmo dessa modernização, disse, "continua com urgência". Pelos padrões do Pentágono, o contra-almirante McVadon é um moderado.

Em seu relatório anual ao Congresso sobre o poderio militar chinês, publicado em maio, o Pentágono disse que "a crescente capacidade militar" do país é um "grande fator" na alteração do equilíbrio militar no Leste da Ásia. E que a capacidade da China de projetar poder em locais distantes continua limitada. Mas repetiu a observação, feita em 2006, de que entre as "potências emergentes" a China tem o "maior potencial para competir militarmente" com os EUA.

De meados da década de 90 para cá, cresceu a preocupação da China com uma possível tentativa de Taiwan de cortar seus laços com o continente. Para instigar medo em qualquer líder taiwanês inclinado a fazer isso, a China vem posicionando mísseis balísticos de curto alcance (SRBMs, na sigla em inglês) na costa diante da ilha - cerca de 100 por ano. O Pentágono diz que há hoje 900 deles, cada vez mais precisos. Se disparados, poderiam destruir a infraestrutura militar de Taiwan tão rápido que uma guerra estaria terminada antes que os EUA pudessem reagir.

Muita coisa mudou desde 1995 e 96, quando a fraqueza da China diante do poderio americano era enorme. Num acesso de raiva diante da decisão dos EUA, em 1995, de permitir que Lee Teng-hui, o então presidente de Taiwan, fizesse uma visita em grande estilo a sua "alma mater", a Cornel University, a China disparou dez mísseis DF-15s desarmados nas águas da costa de Taiwan. Os americanos, confiantes de que China iria recuar, enviaram dois porta-aviões à região, em sinal de alerta. A tática funcionou. Hoje, os EUA teriam que pensar duas vezes. Douglas Paal, embaixador não-oficial dos EUA em Taiwan de 2002 a 06, diz que "o custo de um conflito certamente aumentou".

Os chineses estão tentando se certificar de que os porta-aviões americanos não conseguiriam chegar perto. O contra-almirante McVadon se preocupa com o desenvolvimento dos mísseis balísticos de médio alcance DF-21 (CSS-5). Com velocidade de reentrada muito maiores que as dos SRBMs, as defesas anti-mísseis de Taiwan teriam muita dificuldade em lidar com eles. Eles poderiam até mesmo serem lançados para além de Taiwan, no Pacífico, para atingir porta-aviões. Isso seria um grande desafio técnico. Mas McVadon diz que os EUA "podem ter motivos para se preocupar" com essa possibilidade dentro de dois anos.

Assim que os mísseis tivessem cumprido sua missão, as Forças Armadas da China poderiam (pelo menos assim esperam) prosseguir com uma variedade de armamentos avançados russos - a maior parte obtida nos últimos dez anos. Em 2006, o Pentágono disse que a China havia importado cerca de US$ 11 bilhões em armas entre 2000 e 2005, principalmente da Rússia.

A China sabe que tem de melhorar muito. Muitos americanos podem não estar entusiasmados com as incursões militares dos EUA nos últimos anos, especialmente com a guerra no Iraque. Mas em numerosos livros e artigos, escritores chineses especializados em assuntos militares vêem muitas coisas nas quais a China pode se inspirar.

Ao menos no papel, os ganhos da China vêm sendo impressionantes. Bem adentro da década de 90, a China tinha um Exército recrutado formado por camponeses pouco letrados que usavam equipamentos baseados em grande parte em projetos soviéticos da década de 50. Agora, a ênfase mudou de tropas terrestres para a Marinha e a Força Aérea, que liderariam um eventual ataque a Taiwan. A China comprou 12 submarinos russos de ataque da classe Kilo, movidos a diesel. Os mais novos deles são equipados com mísseis supersônicos Sizzler que, para muitos analistas, os navios americanos teriam dificuldade em tirar de ação.

Há ainda mísseis supersônicos a bordo de quatro novos destróieres chineses da classe Sovremenny, fabricados sob encomenda pelos russos e projetados para atacar porta-aviões e suas escoltas. E os próprios estaleiros da China não estão perdendo tempo. Numa exposição sobre o 80º aniversário das Forças Armadas, o Museu Militar de Pequim está exibindo o que sites oficiais dizem ser um modelo de um novo submarino nuclear de ataque, o Shang. Esses submarinos possibilitariam à Marinha mergulhar fundo no Pacífico, bem além de Taiwan e, Pequim espera, ajudar a derrotar navios americanos bem antes que eles se aproximem do país. Em 2006, para embaraço dos EUA, um recém-desenvolvido submarino chinês movido a diesel, para missões de curto alcance, emergiu perto do porta-aviões americano Kitty Hawk, junto a Okinawa, sem ser detectado de antemão.

A superioridade aérea americana na região está sendo desafiada por mais de 200 caças avançados russos Su-27 e Su-30, que a China compra desde os anos 90. Alguns deles foram fabricados sob licença na própria China. O Pentágono crê que a China também está interessada em comprar o Su-33, que seria útil para uso em porta-aviões, se a China decidir construir um.

Durante a crise do Estreito de Taiwan, em 1995-96, os EUA tinham a certeza razoável de que, mesmo se houvesse guerra (poucos achavam de fato que iria), eles poderiam lidar com qualquer ameaça do arsenal nuclear da China. Os poucos mísseis estratégicos chineses capazes de atingir o território americano estavam colocados em silos, cujas localização os americanos provavelmente conheciam. As preparações de lançamento demorariam tanto que os americanos teriam tempo de destruí-los. A China vem trabalhando duro para consertar isso. O país tem seis mísseis intercontinentais DF-31 movidos a combustível sólido e que se movimentam por estradas (o que significa que podem ser lançados rapidamente), e acredita-se que estaria desenvolvendo o DF-31A, com alcance maior, que poderia atingir qualquer parte do território americano, além do JL-2, lançado de submarinos (mais fácil de esconder), que poderia ameaçar grande parte dos EUA.

-------------------------------------------------------------------------------- A China não tem urgência de confrontar diretamente os EUA, mas quer desencorajá-los de proteger Taiwan --------------------------------------------------------------------------------

Mas qual é a real utilidade de todo esse aparato? Não se sabe muita coisa sobre a capacidade de combate do ELP. Ele é de longe o mais fechado dos grandes Exércitos do mundo. Um das poucas informações abertas na preparação das comemorações é a introdução de novos uniformes para a ocasião: mais justos no corpo e, para desgosto de alguns, mais parecidos com os do Exército americano.

Como os analistas militares chineses estão bem cientes, o poder militar dos EUA não diz respeito apenas à tecnologia. Também envolve treinamento, coordenação entre os diferentes ramos militares (articulação, no jargão), coleta e processamento de informações de inteligência, experiência e moral. A China está lutando para se igualar também nessas áreas. Mas praticamente não tem experiência em combate, fora uma breve e pouco reconhecida incursão no Vietnã, em 1979, e uma grande movimentação para conter o movimento pró-democracia dez anos depois.

A China é mais reservada quanto à sua capacidade de combate do que sobre seu armamento. Não faz manobras em mar profundo, simulando ataques a porta-aviões. Não quer alarmar a região, nem irritar os EUA. Há também o problema de fazer todo o equipamento russo funcionar. Alguns analistas dizem que os chineses não estão totalmente satisfeitos com seus caças Su-27 e Su-30. A manutenção e o fornecimento (pela Rússia) de peças não têm sido fáceis. Um diplomata ocidental diz que a China também está lutando para manter seus destróieres e submarinos russos em boas condições de funcionamento. "Temos que ser cautelosos quando dizemos 'uau'", diz ele sobre os novos equipamentos.

A China está fazendo alguns progressos no esforço de se livrar da dependência dos russos. Após décadas, alguns analistas acreditam que o país começa a usar suas próprias turbinas turbofan, tecnologia essencial para caças sofisticados. Mas a auto-suficiência ainda está longe. Os russos ainda relutam em transferir suas tecnologias mais sofisticadas. "A única coisa confiável que os chineses têm são os mísseis", diz Andrew Yang, do Conselho Chinês de Estudos de Políticas Avançadas de Taiwan.

O Pentágono, apesar de toda sua preocupação, tenta manter canais abertos com a China. As colaborações militares vêm sendo lentamente retomadas após atingirem seu ponto mais baixo em abril de 2001, quando um caça chinês se chocou com um avião espião americano perto da China. Em 2006, pela primeira vez os dois lados realizaram exercícios conjuntos - missões de busca e resgate ao longo das costas dos EUA e da China. Mas foram exercícios simples, e os americanos aprenderam pouco com eles. Os chineses continuam relutantes em se engajar em algo mais complexo, talvez por temerem revelar suas fraquezas.

Os russos vêm conseguindo mais. Dois anos atrás, o ELP fez manobras grande com eles, a primeira com um Exército estrangeiro. Embora não tenha sido anunciada como tal, o objetivo parcial da manobra foi amedrontar Taiwan. Os dois países realizaram bloqueios, capturando campos de pouso e bases anfíbias. Os russos exibiram parte dos armamentos que esperam vender para os chineses.

Outro grande exercício conjunto estaria sendo realizado, de 9 a 17 de agosto nos Urais (umas poucas tropas de outros países também participariam). Mas David Shambaugh, da Universidade George Washington, diz que os russos não têm ficado muito impressionados com as capacidades da China. Depois das manobras conjuntas de 2005, os russos reclamaram da falta de "articulação" do ELP, sua comunicação deficiente e da lentidão de seus tanques.

A China vem sendo muito elogiada no Ocidente por seu envolvimento cada vez maior com as operações de manutenção da paz da ONU. Mas seu envolvimento tem revelado pouca coisa sobre a capacidade de combate da China. Quase todos os 1.600 soldados chineses deslocados para manter a paz em países como Líbano, Congo e Libéria são engenheiros, tropas de transporte e pessoal médico.

Uma série de relatórios publicados pelo governo chinês desde 1998 sobre seu desenvolvimento militar não é muito esclarecedora, especialmente sobre quanto o ELP está gastando e em quê. Pelos cálculos pouco transparentes da China, o ELP teve um aumento médio anual do orçamento de mais de 15% entre 1990 e 2005 (quase 10% em termos reais). Este ano, o orçamento foi elevado em quase 18%. Mas isso parece não incluir importações de armas, gastos com forças de mísseis estratégicos e pesquisa e desenvolvimento. O Instituto Internacional de Estudos Estratégicos de Londres afirma que o nível real dos gastos em 2004 pode ter sido cerca de 1,7 vez maior que o orçamento oficialmente declarado de US$ 26,5 bilhões.

Essa estimativa tornaria os gastos da China parecidos com os da França em 2004. Mas o poder de compra diferente do dólar nos dois países - assim como o aumento de dois dígitos nos gastos da China desde então - colocam o total da China bem acima. Pequim está lutando para profissionalizar mais seu Exército - mantendo os homens em serviço por mais tempo e atraindo recrutas com grau de instrução melhor. Isso é difícil numa época em que a economia civil está em crescimento acelerado e os salários estão subindo. O ELP está tendo que gastar muito mais com salários e melhores condições para seus 2,3 milhões de homens.

Manter o Exército satisfeito é uma preocupação dos lideres chineses, que não se esquecem de como o ELP salvou o partido de uma possível destruição durante os tumultos de 1989. Na década de 90, eles encorajaram unidades militares a administrar empresas para fazerem mais dinheiro por conta própria. No fim da década, vendo que isso alimentava a corrupção, ordenaram ao ELP que transferisse suas empresas para o controle civil. Orçamentos maiores estão agora ajudando o ELP a compensar parte dos lucros perdidos.

O Partido Comunista ainda vê o Exército como uma proteção contra o tipo de levante que derrubou regimes comunistas em outras partes do mundo. Os líderes chineses rejeitam sugestões (que teriam o apoio de alguns oficiais) de que o ELP deveria ser colocado sobre controle do Estado, e não do partido. O ELP está cheio de espiões do partido que monitoram a lealdade dos oficiais. Mas o partido também dá ao Exército uma liberdade considerável para tocar seus próprios assuntos. Ele se preocupa com a corrupção militar, mas pouco faz contra isso, pelo menos abertamente (numa rara exceção, um militar de alta patente da Marinha foi expulso em 2006 por aceitar suborno). A cultura de sigilo do ELP permitiu a disseminação não monitorada da sars (doença respiratória freqüentemente fatal) no sistema médico do Exército em 2003.

O ELP conhece suas fraquezas. E tem poucas ilusões de que a China pode competir militarmente palmo a palmo com os americanos. A determinação da antiga URSS de fazer isso é amplamente vista na China como a causa de seu colapso. Em vez disso, a China enfatiza o armamento e a doutrina que possam ser usados para derrotar um inimigo bem mais poderoso, usando "capacidades assimétricas".

A idéia é explorar os supostos pontos fracos dos EUA, como sua dependência dos satélites e redes de informação. A bem sucedida destruição pela China em janeiro (ainda que atrapalhada e diplomaticamente danosa) de um de seus velhos satélites com um míssil teve a clara intenção de demonstrar esse poder. Alguns analistas acreditam que chineses vem tentando, com a ajuda do Estado, invadir computadores do Pentágono. Richard Lawless, funcionário do Pentágono, disse recentemente que a China desenvolveu uma capacidade "muito sofisticada" de atacar sistemas de computadores e da internet dos Estados Unidos.

O receio do Pentágono é que líderes militares enamorados da nova tecnologia possam subestimar as conseqüências diplomáticas de tentar fazer isso. Alguns chineses também vêem um problema aí. O teste anti-satélites reacendeu a discussão acadêmica na China sobre a necessidade de estabelecer um conselho de segurança nacional ao estilo americano, que ajudaria a melhorar a coordenação entre os planejadores militares e as autoridades responsáveis pela formulação da política externa da China.

Mas os EUA acham difícil dizer bruscamente à China que ela deve parar de fazer o que outros também estão fazendo (incluindo a Índia, que possui porta-aviões e caças russos). Em maio, o almirante Timothy Keating, comandante do Comando do Pacífico dos EUA, disse que o interesse da China nos porta-aviões é "compreensível". Disse até que, se a China optar por desenvolvê-los, os EUA poderiam "ajudá-los até o ponto que eles desejam e o ponto em que formos capazes". Mas observou que "isso não é tão fácil quanto parece".

Um funcionário de alta patente do Pentágono sugeriu posteriormente que o almirante Keating havia sido mal interpretado. Construir um porta-aviões para as Forças Armadas chinesas seria ir longe demais. Mas os dois lados agora estão discutindo a criação de uma "hotline" militar. Os americanos querem continuar cautelosamente amigos do dragão, à medida que ele fica mais forte.