Título: O PT parte para sua viagem definitiva
Autor: Fábio Santos
Fonte: Valor Econômico, 21/01/2005, EU & FIM DE SEMANA, p. 10

Ao completar 25 anos, em 10 de fevereiro, o PT passa por um "aggiornamento" para adaptar seu programa à realidade de ser governo. É mais uma fase de um processo que o levou da esquerda para o centro do espectro político, da rejeição aos ditos partidos burgueses a uma política de alianças que inclui o PMDB de José Sarney e até mesmo o PP de Paulo Maluf, que o levou, enfim, das bravatas de oposição ao pragmatismo situacionista. Pelo meio do caminho ficou a promessa de "um futuro vermelho numa sociedade perfeita", conforme as palavras irônicas do presidente da legenda, José Genoino. Uma vez no poder, o PT - ou pelo menos boa parte de sua direção nacional - imagina ser necessário resolver as contradições entre a teoria que ainda subsiste em seu ideário e a prática de uma agremiação que nada mais possui de antiestablishment. Como bem lembrou Genoino em entrevista ao Valor, no programa aprovado em 2001, em Recife, durante o último encontro nacional, ainda está presente a "concepção de ruptura". Assim, tudo que o governo Lula pratica na economia carece de sustentação naquele texto, que defendia uma auditoria da dívida externa, o rompimento do acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), a mudança do modelo econômico e outras heresias hoje rejeitadas como se nunca tivessem sido proferidas. Diz o deputado federal paulista Ivan Valente, dirigente da Ação Popular Socialista, uma das correntes petistas mais à esquerda, que "foi tudo feito à revelia do partido". De fato, a virada em direção à ortodoxia econômica foi autorizada apenas pela própria direção partidária, que a implementou, e traduzida na vaga Carta ao Povo Brasileiro, de 2002. Para Genoino, é chegada a hora de assumir por escrito a nova realidade. Em março, o PT deve promover um grande seminário, com a participação de outras legendas, inclusive alguns partidos de esquerda que também já viveram ou vivem a experiência de governar, como o PSOE, o Partido Socialista do espanhol José Luiz Zapatero, e os socialistas chilenos. O presidente do partido afirma que a política econômica - superávit fiscal primário, metas de inflação, câmbio e juros - não deve ser o centro do debate. "Equilíbrio das contas públicas e estabilidade são meios. Isso, seja direita ou seja esquerda, é preciso que se faça. O que queremos é redefinir os nossos parâmetros", diz. "Não podemos apenas ficar administrando demandas, com as quais sempre ficamos inadimplentes", acrescenta. "Já resolvemos a estabilidade. O desafio histórico é resolver o desenvolvimento, entendido não só como crescimento, mas também como a melhora da educação e a democratização dos mercados", diz Genoino, apontando para um nó que o governo federal não consegue desatar. Até setembro, o diretório nacional, assim como os estaduais e municipais, deve ser renovado - por meio de eleições diretas, pela segunda vez. Antes do fim do ano, Genoino espera acumular massa crítica para, no encontro nacional que conclui o processo de eleição interna, promover uma atualização do programa partidário e a definição formal de uma política de alianças mais ampla, dando, portanto, um mandato aos dirigentes nacionais para articular o PT com as demais forças políticas em todos os níveis - "para não repetir Fortaleza", diz, referindo-se à desobediência do diretório local, que lançou Luizianne Lins para a prefeitura da capital cearense à revelia da direção nacional, que apoiou Inácio Arruda, do PCdoB. "Precisamos também equacionar melhor o direito de crítica e de exposição de divergências. Não queremos um partido monolítico, mas também não pode ser a casa da mãe Joana", afirma. Genoino também quer consolidar programaticamente a jornada petista para a institucionalidade. "A esquerda tinha um caminho estratégico que era de ruptura. Hoje, está claro que a mudança da sociedade é processual", afirma. "Revolução pelo voto não vale. Revolução sem risco não existe", diz, caricaturando as alas do partido que ainda professam, cada vez menos, a idéia de "construir o socialismo". O abandono da utopia, algo que começou há muitos anos, traduz-se também num vazio. "O que é ser de esquerda?", pergunta-se o presidente petista. "É estatizar? Acho que não. É fechar a economia? Também creio que não", opina, sem, contudo, responder afirmativamente a sua própria questão. Uma saída para o problema, imagina Genoino, é identificar o partido não mais com um ideal, mas com causas defendidas pela sociedade, como o meio ambiente, a solidariedade, o combate à aids. Mas essas são bandeiras que muitos carregam e quase ninguém ousa atacar. Assim, o que iria diferenciar o PT dos demais? Outra pergunta sem resposta clara. O presidente da legenda oferece uma saída evidentemente insatisfatória quando se tem em mente o governo comandado pelos petistas. "A prática define quem é de esquerda", diz. Toda essa revisão de que fala o presidente do PT não é exatamente nova. A socióloga Rachel Meneguello, que estuda o partido desde os seus primórdios, identifica uma ação contínua, que se inicia já na eleição de 1989, quando, no segundo turno, a legenda precisou atrair apoios e compartilhou seu palanque com outras forças, e chega até à opção pela composição com o PL para a disputa presidencial de 2002. De acordo com a socióloga, ao longo desses anos, as experiências em prefeituras e governos estaduais fizeram o partido mudar sua relação com o Estado. "O PT entendeu que não se governa de forma isolada, sem apoio", diz a professora e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Quem se surpreendeu, depois da vitória de Lula, com a disposição de estar mais ao centro não conhecia o movimento que vinha ocorrendo já havia dez anos." Tudo isso, claro, não se deu sem muitos embates internos. O PT, afinal, sempre foi heterogêneo: nasceu da união de sindicalistas pragmáticos e intelectuais com a Igreja Católica progressista e grupos de esquerda não-stalinistas, muitos dos quais pertencentes à chamada 4ª Internacional Socialista, que abrigava os diversos movimentos trotskistas do mundo. Estes, como rememora o também sociólogo Leôncio Martins Rodrigues, viam no então líder sindical Luiz Inácio da Silva "o operário que eles poderiam influenciar, a pedra bruta a ser lapidada". Aconteceu o contrário, na verdade, e o ex-peão e seus aliados levaram o partido, pouco a pouco, para onde está hoje. "Lula é um político genial, pragmático, teve o bom senso de não se deixar levar por ideologia. Ele nunca defendeu plataforma nenhuma", comenta Rodrigues, um dos que participaram da histórica reunião no Colégio Sion, na qual foi criada a sigla há 25 anos. Era, como apontou Rachel Meneguello, uma trajetória esperada. Desde o início, o PT entrou no jogo democrático, aceitando e utilizando suas regras, ainda que, para consumo interno ou externo, as criticasse. Era inevitável que deixasse progressivamente de ser o que Giovanni Sartori chamou de "partido anti-sistema", que costuma exercer uma oposição irresponsável, por não ter compromisso com a governabilidade. Em "Partidos e Sistemas Partidários" (Jorge Zahar Editor, 1982), o teórico italiano mostra que, em geral, a dinâmica desse tipo de agremiação, uma vez tendo aderido à competição por votos, lentamente passa da deslegitimação para a relegitimação do sistema. Se essa transição não poderia surpreender, o mesmo não se pode dizer da profundidade e rapidez da transformação, que não levou mais que uma década, e o fervor com que, em apenas alguns meses, o comando petista abraçou o que antes denunciava. Tudo isso só foi possível com o crescente aumento do controle sobre a máquina partidária por parte do grupo que se autodenomina Campo Majoritário - reúne as tendências chamadas Articulação, Democracia Radical e PT de Luta e de Massas - e que teve 55,5% dos votos na primeira eleição direta do Diretório Nacional, em 2001. Ao lado de correntes mais centristas, o Campo Majoritário domina quase 70% da direção do partido. Articulada principalmente por José Dirceu e José Genoino em torno da candidatura presidencial de Lula, a primeira grande vitória dessa coligação foi derrotar o slogan "Fora FHC" no segundo congresso do PT, em 1999. "Ali, definimos uma concepção de partido", lembra Genoino. Em sua interpretação, até 1998 o PT estava condenado à oposição, pois não conseguia ultrapassar a marca de um terço do eleitorado, teto que o tinha feito perder três disputas presidenciais. Definiu-se ali a estratégia de ampliar as alianças para a direita, sem abandonar a retórica da ruptura, como pregava o texto saído do encontro de Recife, em 2001 - até porque isso rendia votos. Já é hora de mudar também aí, diz Genoino. A explicação é que, em 2006, o discurso terá de ser bastante diferente. O controle exercido pelo Campo Majoritário não é total, mas a esquerda petista não tem esperanças de reverter o equilíbrio interno de forças. Sob a justificativa de ser mais democrática que a eleição por meio de delegados, a escolha dos dirigentes das diversas instâncias partidárias pelo voto direto dá aos líderes de maior visibilidade nacional, justamente aqueles que compõem a maioria do comando petista, melhores condições de sucesso. "Eles têm maior capacidade de mobilização institucional, maior facilidade de arregimentar filiados", diz o deputado Ivan Valente. Agora, com a caneta de presidente nas mãos, essa vantagem é ainda maior. Todo esse movimento não se dá sem questionamentos. Genoino admite que existe um certo "mal-estar" em setores que costumavam apoiar o partido. "É natural que o movimento social fique à esquerda do governo", diz. Rejeita, porém, a possibilidade de que o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), por exemplo, venha a romper com o partido. "Se não for um governo do PT, é ainda pior. Vão querer o pior?", pergunta Genoino, já sabendo a resposta. Novas defecções, como as da senadora Heloisa Helena (AL) e da deputada federal Luciana Genro (RS), que formaram o Partido Socialismo e Liberdade-PSOL, ou um racha de grandes proporções também são altamente improváveis. "Tem eleição no ano que vem. Político não se suicida", argumenta Genoino, com quem Valente faz coro. "Sair do PT nesse momento é errado, mesmo que seja muito grave o que está ocorrendo. Não se pode aniquilar do imaginário popular o projeto de mudança, mas o momento é de resistência", diz o deputado federal. O PT seguirá, portanto, executando a operação quem tem posto em prática. No governo, ocupa o centro e faz o que antes considerava de direita, sem que, por isso, perca o apoio da esquerda. Está pronto para os próximos 25 anos.