Título: Pobreza cai e AL cria nova classe média
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Fonte: Valor Econômico, 17/08/2007, Internacional, p. A12

Montanhão é o nome do que não muito tempo atrás não passava de um lixão. Na região sul de São Bernardo do Campo, perto de São Paulo, as casas em Montanhão, de tijolos e blocos de concreto, distribuem-se por morros próximos a uma represa. Com mais de 110 mil pessoas, é uma das poucas áreas da maior região metropolitana brasileira onde a população ainda cresce rapidamente. É ainda uma das mais pobres. Mas nem de longe tão pobre quanto uma década atrás.

A sinuosa rua principal desse bairro tem inúmeros depósitos de materiais de construção, presentes e roupas, restaurantes e vários pequenos mercados. Um deles, o Dia, faz parte de uma rede popular do grupo francês Carrefour. Seu maior concorrente é o Mercado Gonçalves, cujo proprietário, Afonso Gonçalves, é um ex-camelô e eletricista. Desde 1997, sua pequena mercearia cresceu mais de quatro vezes. Ele vende mais de 10 mil produtos diferentes, de Nescafé e pasta de dentes Colgate a carne fresca, pão feito na hora e, trancado numa vitrine, uísque importado. Para Gonçalves, "muita gente aqui é bem pobre, mas muitos estão entrando na classe média".

A vida em lugares como Montanhão ainda é difícil. Esgoto a céu aberto corre perto do supermercado. Morro acima, em meio a várias igrejas evangélicas, algumas casas ainda são de madeira. A criminalidade é um grande problema. Dora Arruda, uma jovem que tem uma pequena barraca onde vende doces e opera uma máquina de fazer chaves na rua principal, diz ter sido assaltada duas vezes e quer mudar para um bairro mais tranqüilo. Alguns moradores reuniram-se para pagar por segurança particular.

Mas há sinais de progresso por toda parte. Novas torres de edifícios, do tipo onipresente em regiões mais ricas de São Paulo, agora são vizinhas das moradias que ainda lembram uma favela. Os serviços públicos estão melhorando: quase todos têm eletricidade, água e esgotos encanados. Novos e modernos ônibus escolares operados pelo município sobem e descem os morros. E o clima de otimismo é palpável. "Cada ano tem sido melhor do que o anterior", diz Arruda. Somando o lucro de sua barraca e o salário do marido, guarda de segurança num banco, eles ganham entre US$ 900 e US$ 1.200 por mês.

Essas pessoas são membros de uma nova classe média que está surgindo quase da noite para o dia em todo o Brasil e em grande parte da América Latina. Dezenas de milhões dessas pessoas são as principais beneficiárias da estabilidade econômica duramente conquistada pela região e pelo recente crescimento econômico. Tendo deixado a pobreza para trás, sua incipiente prosperidade está impulsionando o crescimento rápido de um mercado de consumo de massas numa região historicamente marcada pelo doloroso contraste entre uma pequena elite privilegiada e a maioria pobre. O surgimento desse segmento também promete transformar a política.

Embora pobreza seja mensurável, o termo "classe média" é subjetivo. O tipo de pessoas que, na América Latina, qualificam-se como de classe média tende a situar-se no topo da escala: profissionais liberais ricos, com empregadas domésticas, filhos em escolas particulares e férias na Europa ou Miami. Dos anos 40 à década de 70, um processo de industrialização comandado pelo Estado resultou no crescimento do emprego público e fomentou o surgimento, em alguns países latino-americanos, de uma classe média de administradores, burocratas e de uma "aristocracia" de trabalhadores especializados. Mas as políticas que os fizeram melhorar de vida revelaram-se insustentáveis; eles foram abandonados depois da crise de endividamento de 1982, que motivou uma década de crescimento medíocre e inflação elevada (ver gráfico 1). A partir de então, em parte pelo fato de setores protegidos terem sido privatizados, e também devido à concorrência de importações, esse grupo passou a viver dificuldades. Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), estima que, no Brasil, 7 milhões de pessoas despencaram da classe média desde 1980 (outros 3 milhões ascenderam à classe alta).

A classe média que está surgindo agora é bem diferente. Seria mais bem definida como classe média baixa. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso destaca que essa classe está mais relacionada com o mercado que com o Estado. Muitos de seus membros possuem pequenas empresas, como Gonçalves. Outros prestam serviço a empresas de maior porte. O economista José Roberto Mendonça de Barros cita um grande número de pequenas empresas prestadoras de serviços que assessoram grandes empresas agrícolas brasileiras nas áreas de informática e biotecnologia. A diferença é sintetizada nas mudanças vistas em São Bernardo do Campo. Uma geração atrás, a região era o coração da indústria automobilística, onde Luiz Inácio Lula da Silva liderou greves dos metalúrgicos. Hoje, a cidade vive do setor de serviços.

No México, diz o cientista político Jorge Castañeda, parte da nova classe média veio da economia informal ou é oriunda de novos setores ou empresas prestadoras de serviços. Essa classe é menos concentrada na Cidade do México e é mais rude, cultural e socialmente, constituída por gente de pele mais morena e menor estatura, mais caracteristicamente mexicana do que seus predecessores, diz ele.

Essas tendências estão mais avançadas no Chile. Mas são mais acentuadas no Brasil e no México, onde vive mais de metade dos 560 milhões de habitantes da América Latina. No Brasil, entre 2000 e 2005, o número de domicílios com renda anual entre US$ 5,9 mil e US$ 22 mil cresceu 50%, de 14,5 milhões para 22,3 milhões, ao passo que os que ganham menos de US$ 3 mil por ano caíram sensivelmente para apenas 1,3 milhões (ver arte 2). No México, de acordo com Alejandro Hope, da GEA, uma firma de consultoria na Cidade do México, o número de famílias com renda mensal de US$ 600 a US$ 1,6 mil cresceu de 5,7 milhões em 1996 para 10,7 milhões em 2006.

Algo semelhante começa a acontecer na Colômbia e no Peru. Na Argentina, o declínio do que havia sido predominantemente um país de classe média até os anos 70 atingiu seu ápice durante o colapso econômico de 2001-02, quando a maioria dos argentinos caiu abaixo da linha de pobreza. Mas uma rápida recuperação econômica provocou uma revitalização da classe média. Ernesto Kritz, um economista em Buenos Aires, estima que cerca de 40% das famílias argentinas, em comparação com apenas 20% em 2003, têm uma renda mensal de US$ 1 mil, que ele considera necessária para um estilo de vida de classe média.

Na América Latina como um todo, segundo o Banco Santander, cerca de 15 milhões de famílias deixaram de ser pobres de 2002 a 2006. Se a tendência se mantiver, até 2010 uma pequena maioria na região terá entrado na classe média, com rendas anuais superiores a US$ 12 mil em termos de paridade de poder de compra. No México, aproximadamente 15 milhões de um total de 27 milhões de famílias poderão ter rendas de classe média até 2012, avalia Hope.

Existem vários fatores por trás dessas tendências. O primeiro é que, desde 2004, as economias da região têm crescido a uma taxa média anual de 5%. Isso não é espetacular, mas não é ruim (a população cresce a uma taxa de apenas 1,4% ao ano). Além disso, o crescimento está exercendo um impacto social muito maior na comparação com o passado.

No começo da década de 1990, a América Latina presenciou uma explosão de crescimento puxado pelo ingresso de capitais e acompanhado de taxas de câmbio supervalorizadas. Essa combinação teve o efeito de impulsionar o preço relativo de serviços não negociáveis, assim como as rendas das pessoas na economia informal. O período atual é diferente, diz Guillermo Perry, economista-chefe do Banco Mundial para a América Latina. As exportações permanecem em crescimento acelerado, em parte devido aos preços mais altos pagos pelas matérias-primas latino-americanas. O crescimento das exportações, porém, também ocorre na esteira de uma rodada de desvalorizações e de duas décadas de reforma econômica de abertura de mercados.

Desta vez, o crescimento está gerando mais empregos no setor formal. No México, a economia se expandiu em 4,8% no ano passado e gerou 900 mil postos de trabalho, coerente com o crescimento da força de trabalho. No Brasil, da mesma maneira, a proporção da força de trabalho informal está começando a encolher.

Outro novo elemento são as políticas sociais inovadoras. No México e no Brasil, 1 em cada 5 famílias recebe uma pequena bolsa mensal do governo, contanto que mantenha suas crianças na escola e as levem a exames de saúde. Por fim, em alguns países as remessas dos latino-americanos que emigraram ajudam as suas famílias mais pobres na terra natal.

O resultado é que tanto no Brasil como no México a renda da metade mais pobre da população está crescendo num ritmo mais veloz do que a média. Nos dois países, a pobreza está registrando queda contínua e a distribuição de renda está se tornando menos desigual. No México, embora o crescimento tenha sido apenas moderado, a pobreza, definida como renda insuficiente para alimentar uma família, caiu de 37% para 14% ao longo da década até 2006.

Os dados apurados pela Comissão Econômica da ONU para a América Latina e o Caribe podem ter feito uma avaliação moderada da queda regional na taxa de pobreza, já que eles se baseiam em pesquisados que respondem confiantemente quando indagados sobre suas rendas. O consumo pode ser um guia mais útil. O outro fator crucial que está mudando a América Latina é a inflação baixa, alcançada porque a maioria dos governos renunciou aos gastos geradores de déficits e porque a liberalização do comércio barateou muitos produtos. A inflação baixa beneficia mais os pobres que os ricos, que podem encontrar maneiras de proteger o valor das suas rendas. Ademais, o crédito retornava à medida que caíam as taxas de juros. O crédito ainda está muito mais escasso na comparação com os países desenvolvidos, mas está crescendo velozmente: no Brasil, por exemplo, o estoque de crédito aumentou de 21% do PIB em 2002 para 32% do PIB.

O crédito começa tipicamente com empréstimos para carros e bens duráveis e se move para financiamento imobiliário. No México, o valor dos novos financiamentos tem crescido em cerca de 35% ao ano. Isso, por sua vez, estimulou um surto na construção de novos projetos residenciais para famílias de classe média baixa.

As vendas de carros, computadores e eletroeletrônicos novos no Brasil e no México atingiram níveis recordes. Grande parte da demanda adicional veio da nova classe média. Um estudo de 2005 sobre famílias de baixa renda em quatro ex-favelas em São Paulo, conduzido pelo Instituto Fernand Braudel, instituição de pesquisas interdisciplinares na cidade, constatou que todas as famílias pesquisadas tinham geladeiras e TV a cores (frequentemente mais de uma), praticamente metade tinha telefones celulares, 30% tinham tocadores de DVD e 29% possuíam um carro.

Tracy Davis, do escritório da McKinsey em São Paulo, assinala que as classes sociais D a B2 (com rendas anuais que variam de US$ 3 mil a US$ 22 mil) eram responsáveis por 69% do consumo total no Brasil em 2005, numa alta em relação aos 51% registrados dez anos antes. A mulher média nessas classes sociais possui 13 calças jeans no seu guarda-roupa, afirma.

Eles também gastam com animais de estimação. "Hoje em dia as pessoas tratam os seus cães e gatos como se eles pertencessem à alta classe média: são alimentados com ração e os levam ao veterinário", diz Gonçalves. Eles também estão voando pela primeira vez. Uma das causas dos problemas recentes ocorridos no setor aéreo do Brasil tem sido o seu crescimento acelerado. No México, Castañeda menciona uma pesquisa realizada no ano passado por uma nova empresa aérea de baixo custo, que apurou que 47% dos seus passageiros jamais haviam voado antes.

Todas essas tendências positivas são recentes e permanecem frágeis. Mendonça de Barros observa que no Brasil, até muito recentemente, um universitário formado poderia esperar ganhar menos de R$ 2 mil por mês no seu primeiro emprego - praticamente o mesmo que o salário de um motorista de ônibus. Muitos daqueles que abriram caminho à custa de muito esforço para sair da pobreza poderiam ser derrubados mais uma vez se houvesse uma repetição dos colapsos financeiros que a região sofreu nas décadas de 1980 e 1990.

As novas classes médias têm mais instrução que seus pais e até freqüentaram universidades privadas. Mas são menos educados que as velhas classes médias que se beneficiaram de universidades públicas elitistas, o que dificulta a ascensão às classes médias altas.

Não obstante, a direção da mudança está clara. "Estamos nos movendo na direção de uma sociedade de classe média numa velocidade maior do que poderíamos ter imaginado há 20 anos", disse Cardoso. "Minha aposta é que estamos cruzando o limiar."

Se assim for, o fato acarreta implicações de vulto para a política. Hope encontra uma forte correlação no México entre ser dono de casa própria e apoiar o Partido da Ação Nacional, de centro-direita. A velha classe média acreditava na proteção do Estado. A nova classe média é mais autoconfiante e se beneficiou da estabilidade econômica. Considerando que ela tem muito a perder com o aventureirismo político, também poderá se tornar uma força para a manutenção da estabilidade política.