Título: As opções políticas por trás do "apagão aéreo"
Autor: Monteiro, Cristiano F.
Fonte: Valor Econômico, 20/08/2007, Opinião, p. A8

Na busca de diagnósticos para a atual crise do transporte aéreo no Brasil, o debate público tem apontado corretamente para uma série de fatores. Fala-se da falta de investimentos da Infraero e do comando da Aeronáutica na infra-estrutura de apoio ao vôo, devido ao constante contingenciamento de verbas e à prioridade dada pela estatal dos aeroportos ao conforto nos terminais de passageiros, em detrimento da infra-estrutura propriamente dita. Fala-se também da incapacidade da recém-criada Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) em cumprir adequadamente seu papel fiscalizador e regulador do sistema. Por fim, o Ministério da Defesa é questionado quanto a sua competência para dar respostas à crise.

Também o núcleo do Poder Executivo deve ser cobrado na sua responsabilidade por ter deixado a situação ir tão longe. Mas, talvez devido ao caráter dramático que a crise vai assumindo, o debate público parece estar demasiadamente marcado por uma visão de curto prazo, tanto na cobrança de medidas a serem tomadas daqui para a frente, quanto na avaliação do que nos fez chegar onde chegamos. Não obstante, como a triste situação atual tem nos mostrado, o transporte aéreo, por sua natureza, não é dado à lógica do curto prazo. O diagnóstico da crise, portanto, precisa ser feito também num espectro temporal mais amplo.

Por trás das mudanças que fizeram a aviação comercial ter a atual feição, esteve uma opção política que indicou a via do "mercado" como estratégia de desenvolvimento a partir dos anos 1990. No caso do transporte aéreo, o diagnóstico era de que as empresas brasileiras cobravam "tarifas mais altas do mundo", eram "inchadas" e "ineficientes", atendendo apenas à elite econômica. A razão de tantos defeitos era a proteção que recebiam do Estado, por meio do antigo DAC, que exercia uma regulação rígida em relação aos preços e à oferta de vôos, enquanto a sociedade pagava a conta da ineficiência.

O receituário para superar este quadro era relativamente simples: tratava-se de submeter as empresas brasileiras à concorrência, com o objetivo de forçá-las a aumentar sua eficiência, baratear as tarifas e democratizar o acesso ao serviço. Fernando Collor deu os primeiros passos das mudanças e Fernando Henrique radicalizou a agenda de reformas, inclusive com ameaça de abertura do mercado doméstico às empresas estrangeiras.

-------------------------------------------------------------------------------- Modelo elitista de aviação vigente até os anos 1980 deu lugar a uma aviação popularizada, ainda que sem o mesmo glamour --------------------------------------------------------------------------------

Não sem disputas e contradições, a aviação brasileira foi assumindo um perfil cada vez mais competitivo ao longo dos anos 1990, quando tivemos algumas fases de "guerra tarifária", a mais intensa no ano de 1998, muito antes da chegada da Gol com suas barrinhas de cereal. As "guerras" perderam fôlego nos anos seguintes, mas com a recente retomada do crescimento econômico a disputa se intensificou. Assim, o modelo elitista vigente até parte dos anos 1990 deu lugar a uma aviação mais acessível à população, ainda que sem o mesmo glamour. No entanto, o mesmo núcleo político que cobrou das empresas mais eficiência e flexibilidade não se preocupou em oferecer uma contrapartida do Estado, mantendo um aparato engessado para tomar conta de um setor em transformação.

Desta forma, embora tenha tomado a iniciativa de propor a criação da Anac, o governo Fernando Henrique foi incapaz de implementá-la, deixando para seu sucessor a tarefa. Assim, a aviação brasileira passou a primeira metade do século XXI sob a responsabilidade de um DAC politicamente esvaziado, em compasso de espera da criação de seu substituto, enquanto o setor ganhava novo dinamismo. Foi também sob o mandato de Fernando Henrique que foram inaugurados muitos dos terminais estilo shopping center, financiados com um adicional cobrado das empresas aéreas sobre as taxas de utilização da infra-estrutura aeroportuária. Um dos paradoxos desta fase: as mesmas empresas acusadas de ineficientes pelo poder público tiveram que financiar as reformas dos terminais e arcar com os custos derivados das deficiências de infra-estrutura, cuja solução "ficou para depois".

O governo Lula não operou especificamente uma ruptura deste legado. Apesar das resoluções do Conselho Nacional de Aviação Civil (Conac) de 2003 advertindo sobre as dificuldades a caminho, o setor continuou crescendo dentro de uma lógica "de mercado". A crise atual não deixa dúvidas quanto à necessidade de se fazer uma nova escolha, que não se limite às mudanças recentes, de curto prazo, marcadas pela comoção com as longas filas e os acidentes da GOL e da TAM.

É preciso fazer as escolhas de longo prazo de que tanto o setor se ressente. Dentre elas, está a necessidade de se rediscutir a relação entre Estado e mercado. Ao contrário da visão que marcou os anos 1990, do "Estado mínimo", é preciso pensar num Estado bem equipado, com capacidade de planejamento, coordenação e, principalmente, diálogo com a sociedade (aí incluídas as empresas, trabalhadores e outros stakeholders). Certamente estas qualidades faltaram ao Estado brasileiro ao longo destes anos de mudanças, em que o transporte aéreo adquiriu um novo perfil e criou novas demandas, que foram vocalizadas pelas empresas, pelos trabalhadores e entidades do setor, mas que não foram ouvidas por um poder público fechado em si mesmo.

Nestes tempos de retomada do desenvolvimento, a lamentável trajetória recente da aviação comercial torna evidente a necessidade de se discutir novos caminhos, em que o papel do mercado seja equilibrado com o de um aparato estatal que preze pelo conhecimento técnico (que tanta falta parece fazer à direção da Anac), sem abrir mão da transparência e da abertura ao escrutínio público (que tanta falta parece fazer à Aeronáutica e à Infraero). Esta escolha, no entanto, só será feita se for sustentada politicamente, assim como as reformas liberalizantes o foram nos anos 1990. Ao governo atual, cabe investir na busca deste novo caminho, dando mais espaço aos atores do setor, deixando para trás a falta de diálogo e transparência que marcaram a gestão do transporte aéreo até aqui.

Cristiano Fonseca Monteiro é professor da Universidade Federal Fluminense.

E-mail: fonsecamonteiro@yahoo.com.br.