Título: Agrotropeços ruralistas
Autor: José Eli da Veiga
Fonte: Valor Econômico, 25/01/2005, Opinião, p. A9

Houve dupla e radical mudança no entendimento público dos processos de produção e distribuição das mercadorias de origem biogênica. Isto é, dos sistemas de transformação de plantas e animais em alimentos, fibras e energias. Nos últimos 15 anos, duas noções foram ocupando o vocabulário dos formadores de opinião: agronegócio e agricultura familiar. E certamente vieram para ficar, pois já servem até de pretexto para caça às bruxas na Embrapa. Trata-se, contudo, de processo altamente salutar. Deixou-se de olhar isoladamente para os elos primário, secundário e terciário das cadeias produtivas dependentes de insumos renováveis, para enfatizar os inúmeros vínculos que interligam as atividades à montante dos agricultores, pecuaristas, pescadores, ou madeireiros, àquelas que, na outra ponta, consomem seus produtos finais depois de transformações, transportes, embalagens, atacado, marketing, varejo etc. Simultaneamente, rompeu-se a cegueira social sobre o maior contingente de produtores básicos dessas cadeias, como se todos fossem autarcas "camponeses", produtores "de subsistência", ou sitiantes "não-comerciais", para citar apenas três das insídias que refletem o preconceito dos detratores. É crucial insistir no que há de transcendente nessa nova imagem dos que abastecem a sociedade lidando com seres vivos. Primeiro, porque enquanto não surgir alternativa à transformação biológica de energia solar em alimento e energia (se é que um dia acontecerá! ), a humanidade não poderá dispensar o consumo das plantas e dos animais. Segundo, pelo incremento de auto-estima dos agentes mais informados da agropecuária, da pesca e da exploração florestal, que se sentiam condenados ao desprezo com a rápida redução de suas participações no PIB e no emprego. E terceiro, pela autoconfiança dos que trabalham em regime de economia familiar, numa sociedade que ingenuamente venera a eficiência dos sistemas de produção extensivos, só porque neles a produtividade do trabalho é forçosamente mais elevada. Mesmo assim, também é preciso alertar os próceres do agronegócio - e principalmente de sua terça parte (em produto) baseada na agricultura familiar -- para dois embustes que povoam seus discursos. Não há dúvida que o agronegócio tem sido decisivo para o crescimento econômico puxado por exportações. Mas é necessário colocar na berlinda sua tão propalada participação no PIB (e no emprego), assim como perceber o perigo de tratar a agricultura familiar mais em termos setoriais do que territoriais. É inevitável que estimativas da contribuição do agronegócio ao PIB usem gambiarras, como a inclusão do refino e moagem do sal de cozinha, do engarrafamento e gaseificação de águas minerais, da fabricação de móveis metálicos ou plásticos, da produção de serviços gráficos, e até de edição de livros, revistas, jornais e periódicos. A matriz insumo-produto impede desagregações, forçando os avaliadores a tais expedientes. Mas a distorção que delas decorre talvez nem seja grave, pois pode passar como compensação por opções inversas, também incontornáveis. Por exemplo, a que exclui do agronegócio sua óbvia fatia da indústria farmacêutica.

Nada pode ser mais boboca do que proclamar que "o agronegócio é o setor (sic) que mais emprega no Brasil"

Nem de longe interessam, portanto, picuinhas sobre os cálculos que levam os porta-vozes do agronegócio a martelar nas teclas dos 30% ou 32% do PIB. A questão é bem outra, e de fundo. Se forem coerentes com os pressupostos da taxonomia contábil que propõem, serão obrigados a reconhecer que, além do agronegócio, só existe outro, o mineralnegócio, pois todas as demais cadeias (não decorrentes de atividades agropecuárias, pesqueiras e florestais) têm seus pilares em extrações minerais. Nada pode ser mais boboca, então, do que proclamar que "o agronegócio é o setor (sic) que mais emprega no Brasil". Mesmo que sejam admissíveis os chutes que variam de 30% a 37% dos postos de trabalho, eles obrigam reconhecer que o mineralnegócio emprega entre 63% e 70%. Tais proporções certamente mudarão com a paulatina substituição das fontes energéticas de origem fóssil, mas será um processo de longuíssimo prazo. E que certamente complicará as estimativas, logo que se tornarem economicamente viáveis diversos tipos de aproveitamento direto de energia solar e eólica. Todavia, enquanto esses forem irrisórios, as cadeias produtivas continuarão a ter apenas duas origens: a fotossíntese (na qual se apóia a idéia de agronegócio), e a geidrografia (que legitima análogo discurso sobre o mineralnegócio). Também tem pernas curtas qualquer tentativa de melhorar o "ibope" da agricultura familiar com argumentos produtivistas sobre sua contribuição para o abastecimento alimentar, e agora para o PIB do agronegócio. Principalmente, porque é infinitamente mais importante o papel que seu caráter pluriativo e multifuncional desempenhará nos processos de desenvolvimento. É óbvio que maior inserção da agricultura familiar no agronegócio pode e deve ser incentivada com políticas industriais. O recém-lançado programa do biodiesel, por exemplo, aponta para uma das principais orientações estratégicas que o Brasil deveria ter assumido há muito tempo. Afinal, os energéticos renováveis criam quatro vezes mais empregos do que os não-renováveis. No entanto, boa parte dos atuais agricultores familiares nunca poderá ter estabelecimentos realmente competitivos. E menos ainda integrados às cadeias do agronegócio. Nem por isso eles deixarão de dar crucial contribuição ao desenvolvimento, se conseguirem que seus filhos se tornem empreendedores privados, públicos e sociais capazes de construir a competitividade sistêmica de seu território. E fora do agronegócio existem inúmeras maneiras de obter a renda necessária para realizar tal ambição. Aliás, nos espaços rurais mais dinâmicos do Centro-Sul já é comum encontrar rebentos de agricultores familiares à frente de empreendimentos que não fazem parte do agronegócio, muito embora sejam tão ou mais importantes para o desenvolvimento regional. E felizmente também já deixou de ser raro que sejam profissionais com formação superior.