Título: Salvaguardas, Mercosul e a OMC
Autor: André Areno e Tito Andrade
Fonte: Valor Econômico, 25/01/2005, Opinião, p. A9

As recentes ações da Argentina têm acirrado cada vez mais as discussões acerca do Mercosul. O governo argentino, pressionado pela indústria doméstica, vem reiteradamente impondo barreiras à entrada de determinados produtos brasileiros, e propugna, agora, pela possibilidade de aplicação de salvaguardas em face do Brasil. Tecnicamente, as chamadas cláusulas de salvaguarda consistem em mecanismos de proteção temporária, aos quais os países signatários de acordos de livre comércio podem recorrer na hipótese de surtos imprevistos de importação. O debate acerca da conveniência de permitir a imposição de salvaguardas no âmbito do Mercosul tem-se concentrado em aspectos econômicos e políticos, mas pouco se falou, até agora, dos aspectos jurídicos relativos à pretensão argentina, isto é, do tratamento conferido ao tema nos acordos do Mercosul e da Organização Mundial do Comércio (OMC). O Tratado de Assunção, firmado em 1991, foi o passo inicial para a criação de um mercado comum no Cone Sul. Estabeleceu-se um "período de transição", com término previsto para 1994, no qual seriam implementadas medidas consideradas essenciais para a criação desse mercado, priorizando um amplo programa de liberalização comercial entre os integrantes e a criação de uma tarifa externa comum. Durante esse período, os Estados-partes ainda poderiam lançar mão de salvaguardas entre si, mas desde que limitadas aos produtos incluídos no programa de liberalização, em casos excepcionais e segundo as regras ditadas pelo próprio tratado. Em hipótese alguma a aplicação de cláusulas de salvaguarda poderia estender-se além de 1994. Em 17 de dezembro de 1994, foi firmado o Protocolo de Ouro Preto, que legitimou a criação dos órgãos com capacidade decisória do bloco, e também serviu como marco oficial do término do período de transição e do início da consolidação da união aduaneira. Pode-se, portanto, afirmar que a aplicação de salvaguardas no âmbito do Mercosul está proibida, segundo o Tratado de Assunção. A modificação da regra dependeria de prévia alteração desse instrumento, mediante a celebração de novo acordo regional e da ratificação pelos legislativos de todos os países-membros. Mas como fica a questão perante a OMC? Não poderiam os países-membros do Mercosul utilizar-se do remédio equivalente, previsto no Acordo sobre Salvaguardas, do qual também são signatários? A questão é controvertida, e ainda não foi objeto de análise específica pelo Órgão de Apelação da OMC. De qualquer forma, as disposições constantes no Acordo sobre Salvaguardas e no GATT 1994 parecem oferecer um fundamento sólido para a proposição de que, no caso do Mercosul, não caberia a aplicação de salvaguardas entre os Estados-partes. Em primeiro lugar, cumpre verificar que o artigo XIX do GATT 1994 somente permite a aplicação de salvaguardas se, em decorrência de eventos imprevistos e dos efeitos dos compromissos assumidos por um membro nos termos do acordo, incluindo concessões tarifárias, qualquer produto for importado no território desse membro em quantidades e condições tais que causem ou ameacem causar prejuízo grave a produtores domésticos.

O Tratado de Assunção proíbe a aplicação de salvaguardas no Mercosul; a mudança da regra dependeria de prévia alteração do tratado

Tal dispositivo parece limitar bastante a possibilidade de aplicação de salvaguardas entre os países do Mercosul, porque circunscreve a utilização dessas medidas somente em relação a produtos que tenham sido objeto de liberalização no âmbito do GATT 1994. Em outras palavras, caso um acordo regional sujeite um determinado produto a compromissos de liberalização iguais ou superiores àqueles assumidos através do GATT 1994, então o aumento nas importações decorrentes desses compromissos não poderá ser incluído numa investigação para a imposição de salvaguardas no âmbito da OMC. Conforme o caso, ele poderá ser investigado com base nos mecanismos previstos no próprio acordo regional. Ora, em se tratando de controvérsias no âmbito do Mercosul, isso não será possível, porque as salvaguardas intrabloco não estão autorizadas. Em segundo lugar, deve-se observar que, embora o Acordo sobre Salvaguardas da OMC disponha que os membros que optarem pela aplicação de medidas de salvaguarda deverão fazê-lo em relação ao produto importado, independentemente de sua origem, o artigo XXIV do GATT 1994 oferece fundamentos sólidos para afastar a aplicação dessa regra em relação a produtos originários de países integrantes de zonas de livre comércio ou uniões aduaneiras. Em linhas gerais, esse dispositivo não apenas legitima as uniões aduaneiras e áreas de livre comércio, constituídas de acordo com as regras por ele estabelecidas, mas permite, em última instância, que esses acordos regionais excluam determinadas normas dos acordos da OMC, na medida em que isso se fizer necessário para a existência e manutenção dos próprios acordos regionais. A nosso ver, embora o Mercosul seja uma união aduaneira em consolidação, ele atende aos requisitos exigidos para os acordos regionais nos termos do artigo XXIV. Os seus Estados-partes podem, portanto, argüir a exceção estipulada no artigo XXIV, caso um deles venha a tentar valer-se de regras contidas nos acordos da OMC - no caso, no Acordo sobre Salvaguardas - para impedir o aperfeiçoamento dessa união aduaneira. Portanto, caso a Argentina viesse a impor salvaguardas sobre os demais Estados-partes do Mercosul, ela estaria agindo não apenas em desacordo com as disposições dos acordos constitutivos do bloco, mas, em última instância, com os mandamentos da própria OMC. Vale, por fim, perguntar, a título de reflexão: ao invés de aumentarem a cizânia interna, com a criação de novas barreiras intrabloco, não seria mais interessante que os países-membros do Mercosul unissem esforços na busca de novos mercados, questionando no foro competente as inúmeras barreiras tarifárias