Título: Desafio Permanente
Autor: Maria Helena Passos
Fonte: Valor Econômico, 25/01/2005, Suplemento, p. F1

Quase sem suas típicas garoas, exportando gente e não ostentando mais o galardão de capital da indústria do país, São Paulo, a cada ano, faz mais jus ao nome de metrópole - com tudo de bom e de ruim que costuma acompanhar o termo. É assim que ela completa 451 anos de idade neste dia 25 de janeiro: como Nova York, Paris, Londres, Tóquio ou a Cidade do México, é hoje eminentemente, um endereço de prestação de serviços. Seus 10,6 milhões de habitantes têm cada vez menos filhos e sua vida cultural é crescentemente mais rica. De quebra, afirma-se como criadora de modas. E, com atraso de décadas, poderá pela primeira vez comemorar seu aniversário com um Plano Diretor, que estréia com força de lei e metas para serem cumpridas até 2012. Mas como os paradoxos são típicos da vida paulistana, seu novo prefeito já congelou a terça parte do orçamento de R$ 15,2 bilhões em seu primeiro ano de mandato, exatamente a fatia que nutriria os investimentos que só serão feitos se surgir dinheiro no caixa. A "metropolização" paulistana, no entanto, tem convivido com uma informalidade cada vez maior. A riqueza que produz, medida pelo Produto Interno Bruto, desce a ladeira. Na estréia do Plano Real, a cidade produziu o equivalente a R$ 107,1 bilhões. Três anos depoi a curva se inverteu: de R$ 130,862 bilhões, os paulistanos chegaram em 2003 com uma produção 10% menor, da ordem de R$ 117,3 bilhões, informa a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano. Igualmente, encolhe o rendimento médio anual per capita de seus cidadãos aposentados, empregados integral, parcial ou precariamente e desempregados socorridos pelo seguro-desemprego, desde 1995. Na época, ele atingiu R$ 10,9 bilhões anuais, como informa a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), em pesquisa conjunta com o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese). Nove anos depois, em 2003, era 21% menor. No primeiro quadrimestre de 2004, ano em que a economia do país se recuperou, a tendência era de estabilidade. O mesmo se deu desde 1999, com o tamanho da família paulistana pesquisada pelas duas entidades: até o ano passado, elas comportavam, em média, 3,3 indivíduos. Esse retrato do mundo do trabalho na cidade torna mais fácil explicar outro fenômeno, que é analisado pela professora Maria Irene Szmrecsányi no livro "História Econômica da Cidade de São Paulo", que a Editora Globo e o jornal Valor Econômico publicaram no ano passado. Descrevendo a evolução populacional da cidade, a professora lembra que, primeiro nos anos 50, mas também depois, nos 60, a imigração respondia por 50% do crescimento populacional da capital. Nos anos 80, conta ela, se constatava "que a população metropolitana crescia a cada duas horas o equivalente ao incremento anual da cidade de São Paulo durante mais de três séculos, desde sua fundação até 1872". A partir da década de 80, essa taxa de crescimento demográfico começou a trajetória de declínio que mantém até hoje. Mesmo assim, a cidade ainda está, como lembra Maria Irene, "entre as três maiores aglomerações do mundo". Nos quatro anos do segundo milênio, a população paulistana cresceu 0,6% ao ano, enquanto a do país evoluiu anualmente 1,9%. Essas taxas, extraídas das projeções realizadas pelo IBGE, refletem mais que o recuo da natalidade e o fato de que a população de regiões pobres como o Nordeste do Brasil já não busca a cidade em busca da felicidade, como ocorre desde os anos 80. Elas resultam também da emigração de paulistanos para municípios vizinhos, sobretudo para Itaquaquecetuba, Poá, Embu e Caieiras.

A população paulistana está crescendo em taxas menores e também há emigração para outros municípios

Na direção inversa, a população encolhe quanto mais central é seu bairro na cidade. Bem ao contrário do que se dava ao tempo das festividades do IV Centenário, em 1954, inesquecíveis para qualquer paulistano acima dos 55 anos de idade. Elas marcaram para sempre a memória de um dos seus filhos que mais motivos tem para comemorar as transformações econômicas recentes de São Paulo. "Me lembro com perfeição do Anhangabaú: o papel picado descendo do céu, aquelas bandeirinhas tremulando nas mãos dos mais velhos, tudo tão bonito...", rememora Márcio Cypriano, presidente do Bradesco. Ele tinha, então, 11 anos e morava na rua Galvão Bueno, na região central de São Paulo. Daquele tempo, em que a Liberdade ainda não era endereço quase exclusivo de orientais, até hoje, aos 61 anos de idade, o executivo, que agora mora com mulher e filhos nos aprazíveis Jardins, colecionou motivos para apreciar sua terra natal. Um dos mais recentes é o fato de que ele acaba de assumir a presidência da entidade que representa o setor da economia predominante na cidade dos dias atuais - a Federação Brasileira de Bancos. O processo vem dos anos 90. Aos poucos, a indústria cedeu espaço para os serviços na febril atividade da paulicéia que, um dia, apelidaram de desvairada. O processo é idêntico ao que ocorre nas metrópoles em todo o mundo, define o urbanista italiano Jorge Wilheim, ex-secretário de Planejamento na gestão Marta Suplicy (PT) e um dos maiores especialistas no assunto. "Isso se dá, sobretudo, porque a modernização da produção leva à sua descentralização", diagnostica. "Os serviços e, em particular a sua prestação, tendem a se multiplicar nos grandes centros, onde a renda concentrada é propícia a demandá-los", explica. No campo dos serviços, os bancos, que concentram em São Paulo suas matrizes e quase 80% dos depósitos colhidos no Estado, são o filão mais privilegiado com a transformação econômica da capital paulista. É que eles formam o único setor que ganha, inclusive, com a expansão da informalidade. "Os trabalhadores sem carteira de trabalho fazem parte da nossa clientela, sem dúvida nenhuma", diz Cypriano. Ele atribui a expansão da presença bancária na cidade à expansão dos produtos oferecidos, que chegam a prover a previdência social do cidadão e até tirar uma casquinha do comércio, com os consórcios para aquisição de bens. "Ainda há indústrias na região urbana em São Paulo", diz Paulo Scaff, paulistano como Cypriano e presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Ainda que o emblemático edifício da entidade, em pleno espigão da paulista, seja freqüentemente citado como abrigo de 80% do PIB, a verdade é que, na cidade, o setor industrial em 2001 já estava reduzido a 37,6% do valor adicionado contabilizado pela Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda sobre arrecadação tributária. A fatia produzida pelo setor de serviços era mais que a metade do bolo: 52%. Abram Szajman, que há décadas, preside a Federação do Comércio do Estado de São Paulo, se ressente da feiúra atual da sua cidade. Ao longo de sua vida, ele assistiu os espaços públicos ficarem mais pobres e mal-tratados, enquanto que os privados melhoravam. "Tratando mal seu habitante, ele se volta contra a cidade, em uma espécie de ciclo vicioso, do qual participam a incompetência e o descaso de nossas autoridades".

O projeto de construção do Bairro Novo, que ocupará 1 milhão de metros quadrados, será escolhido em concurso

Aglomeração urbana de 1.509 quilômetros quadrados, com pouco mais de 16.300 quilômetros de vias públicas dos quais, pelo menos 18% não eram pavimentados em 1998, São Paulo é a segunda maior área de mata atlântica preservada (21% do município) entre as capitais dessa região ambiental, que inclui 2.815 municípios espalhados por dez Estados, informa o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Duro mesmo é transitar por sua malha viária. Os congestionamentos, que não raro impõem horas para trajetos que não deveriam durar mais que vinte minutos, refletem uma cidade onde há 2,47 habitantes por automóvel, o transporte coletivo diminuiu seu movimento de passageiros em 34% de 1990 a 2003 e o metrô, com extensão de apenas 54 quilômetros, precisaria ser três vezes mais abrangente do que é. Com uma nova gestão no poder municipal, sob o comando de José Serra (PSDB), os investimentos de 2005, orçados em R$ 1,9 bilhão, estão suspensos até que novos recursos entrem no caixa porque a gestão anterior deixou um déficit de R$ 2,15 bilhões. O valor é equivalente a 14% do orçamento e não é tudo o que a nova administração congelou. O montante chega a R$ 4,8 bilhões. Inclui R$ 2,3 bilhões que compõem 40% da rubrica custeio e R$ 600 milhões de pagamentos de dívidas e encargos. O secretário de Finanças, Mauro Ricardo Costa, pretende cortar gastos, além de "aumentar a arrecadação sem elevar alíquotas de impostos e perseguir eficiência na tributação municipal. Contamos também, que a Justiça decida em nosso favor e permita à Prefeitura tributar a utilização do subsolo de São Paulo", informa. Em cifrões, isso não é pouco. Ronda uma receita de mais R$ 100 milhões por ano, que sairão de empresas como as prestadoras de serviços públicos e privados Sabesp, Eletropaulo e Net. Para o Plano Diretor virar realidade, "quatro das 17 operações urbanas consorciadas, que implicam intervenções para desenvolvimento urbano com a participação pública e privada, já existem na cidade - Faria Lima, Centro e Água Espraiada - ou estão em fase de implantação, caso do Bairro Novo, uma área de 1 milhão de metros quadrados desocupados na Água Branca, em fase de concurso para a implantação de um projeto formulado na Empresa Municipal de Urbanização (Emurb)", afirma Wilheim, o ex-secretário do Planejamento. Trata-se de um marco: na história da cidade, foi a primeira vez que a Prefeitura se meteu a criar um bairro. Entre as demais operações consorciadas, ele ressalta a importância das diagonais Sul e Norte, que se estendem da Serra da Cantareira a Pirituba/Perus. Há ainda operações relevantes como a de Jacu-Pêssego, na zona Leste, região bastante carente, por onde deve passar a ligação entre o Aeroporto de Guarulhos e o município de Mauá, importantíssima para desafogar o tráfego das avenidas marginais. O objetivo final foi tentar prover um bem-estar mínimo à enorme massa de paulistanos excluídos e aumentar o espaço público da cidade. Para tanto, o Plano traça metas de longo prazo - 2012 - e ações estratégicas que deverão estar concluídas em 2006, ainda na gestão do prefeito José Serra. Os esforços para ampliar a inclusão estão entre estas. A expansão de espaços culturais e de esporte também. Entre as metas finais, está um dos maiores desafios: a drenagem da cidade, dona da maior área de solo impermeável do mundo. A administração Serra se inclui no rol de gestões municipais recentes a quem os fatos contribuíram para dar uma boa oportunidade. Trata-se da menor pressão demográfica. Ela torna menos difícil reorganizar o desenvolvimento e consertar as mazelas de São Paulo, histórico sinônimo de urbe mal-tratada.