Título: Pagando pelos erros
Autor: Ribas, Sílvio
Fonte: Correio Braziliense, 12/01/2011, Economia, p. 13

A nova ordem mundial Países ricos, que sempre determinaram políticas econômicas para as nações emergentes, ostentam, agora, defeitos de Terceiro Mundo, como excesso de dívidas e rombos fiscais

O baixo crescimento, as elevadas taxas de desemprego e o crescente desequilíbrio fiscal registrados pelas economias desenvolvidas confirmam uma reviravolta na economia mundial. Após enfrentarem décadas marcadas por crises, os principais países emergentes ¿ China à frente ¿ não só apresentam melhores indicadores macroeconômicos, mas se consolidam como novas locomotivas do globo. Especialistas ouvidos pelo Correio afirmam que as mudanças são irreversíveis e o paradoxo resultante vai cobrar grandes rearranjos de governos. ¿Em 1990, os economistas já sabiam que a economia chinesa seria uma potência. Mas ninguém sequer sonhava com o cenário atual, com países ricos pedindo socorro financeiro internacional e emergentes ditando expectativas¿, ilustra Carlos Langoni, ex-presidente do Banco Central e diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Ele explica que as tendências gerais no plano global deram partida há dez anos com a crise advinda do estouro da bolha especulativa da internet. O surpreende dinamismo apresentado pelos emergentes agora conhecidos pela acrônimo Brics, de Brasil, Rússia, Índia e China, continuou em meio a problemas acumulados pelos países ricos, especialmente depois do estouro da bolha do setor imobiliário dos Estados Unidos, que arrastou o mundo no colapso histórico de 2008.

Langoni sublinha que a atual expansão média do Produto Interno Bruto (PIB, soma de todas riquezas produzidas num país) dos emergentes (6,4%) é o triplo da verificada entre as nações desenvolvidas (2,2%). Enquanto União Europeia e Japão não conseguem crescer além de 1,5% anual, China e Índia estão na casa de 9% e o Brasil tenta se acomodar em 5,5%. ¿Ao longo de 2009 e 2010, o avanço do endividamento público e privado dos países ricos, com destaque para a Zona do Euro, contrasta com números fiscais e comerciais mais confortáveis dos emergentes, sobretudo da América Latina¿, diz.

Superaquecimento

As maiores preocupações desse cenário estão no superaquecimento de economias emergentes, já revelado pela inflação nos preços de alimentos, e na condução dos ajustes fiscais pelos desenvolvidos, que provoca grandes tensões sociais na Europa. O deficit fiscal nominal das contas públicas na Eurozona chega à média de 6,2% do PIB, com pico de 9,6%, caso da Espanha. O chefe de governo espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, afirma que a fatura a ser paga para reduzir o rombo das contas públicas a 6% do PIB será um crescimento econômico minguado, ¿de 2% a 2,5%¿ até 2015.

Para José Roberto Afonso, economista especializado em finanças públicas, o debate fiscal se intensifica nas economias avançadas. ¿Se as atenções foram concentradas nas medidas de estímulos à economia até meados de 2010, o foco mudou para dimensionar a crise nos países ricos e para definir a melhor estratégia de saída¿, anotou. A situação é tão dramática, que governo japonês admite que a situação fiscal do país ¿se aproxima da beira do abismo¿.

Dever de casa

As explicações para o admirável mundo novo da economia, com inversão de papéis entre ricos e emergentes, estão na adoção ou abandono da receita clássica do equilíbrio fiscal. Langoni comenta que os emergentes, sobretudo os latino-americanos, conseguiram, no período entre 2004 e 2005, uma significativa redução na sua vulnerabilidade externa, melhorando os indicadores comerciais e de balança de pagamentos. ¿O câmbio flutuante e as metas trazidas pela brasileira Lei de Responsabilidade Fiscal (1998) tornaram-se padrão na América Latina , com exceção da Venezuela¿, ressalta.

Shelly Shetty, diretora de ratings soberanos e responsável pela avaliação do Brasil para a agência de classificação de riscos Fitch, acredita que a América Latina vem sendo beneficiada pelas taxas de crescimento em aceleração desde a segunda metade da década passada. ¿No geral, os governos adotaram políticas fiscais para reduzir deficits, ainda em fase de consolidação¿, explica, acrescentando que a gestão das dívidas conseguiu também alongar prazos e reduzir a dependência de moeda estrangeira.

Na avaliação da Fitch, a necessidade de financiamento externo da América Latina recuará em 2011 para US$ 398 bilhões, ante os US$ 407 bilhões do ano passado. Cerca de 70% dos recursos representam amortizações de débitos de curto e longo prazos. O montante de 2011 representa 8% do PIB regional, contra 9,1% de 2010. Na comparação com o caso americano, Shelly lembra que os EUA tem ¿forças institucionais¿ para amenizar o duplo deficit (fiscal e comercial), como regras econômicas estáveis e a condição do dólar como reserva monetária. O problema maior do governo norte-americano é o desemprego de quase 10%. Sem trabalho, a máquina da economia dos EUA, o consumo das famílias, atravanca.

Na Europa, sobretudo na Espanha, o quadro é ainda mais dramático. O índice de desocupação encosta nos 20%. A razão é uma só: os países da região não prezaram por uma política econômica sustentável. Langoni afirma que a criação do Banco Central Europeu (BCE), dentro da engenharia financeira do euro, foi insuficiente para coibir rombos orçamentários na região. ¿Faltou um órgão com poderes transnacionais para impedir situações como a da Grécia, com deficits fiscais três vezes superiores aos definidos como teto pela União Europeia, de 3%¿, disse. A conta está sendo paga pelos que sustentam o euro, como a Alemanha, e a primeira vítima da ¿falta de supervisão por Bruxelas¿ é o ¿Estado paternalista do bem-estar social¿.

No topo das decisões

O novo papel das economias emergentes está mudando gradualmente as finanças externas. O Brasil, que foi o maior cliente do Fundo Monetário Internacional (FMI) até 2003, hoje aporta recursos para financiar outros sócios da instituição, com demanda centrada em países ricos. Até 2013, o FMI também sofrerá ajustes para ampliar o peso do voto de emergentes. A influência dos bancos centrais, por sua vez, já se orienta por novas referências. ¿Uma decisão do BC chinês tem hoje repercussão igual ou superior às do Fed (BC dos Estados Unidos)¿, compara Carlos Langoni, ex-presidente do BC brasileiro. Ele prevê que a China, com US$ 2,65 trilhões em reservas, terá papel maior no socorro a países desenvolvidos.

¿Os chineses poderão ajudar mais a Europa do que o FMI¿, arrisca. Langoni acrescenta que, nos próximos seis anos, a Índia deverá crescer mais do que a China, que aproveitará o mercado interno e adotará políticas mais conservadoras. ¿O câmbio artificial chinês não será mais necessário¿, diz.

A economista Maria Lúcia Mantovanini Pádua, coordenadora de Relações Internacionais da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), vê como irreversível a consolidação da nova ordem mundial. ¿Mas só assistimos a um esboço. Cada emergente terá de definir o tipo de inserção que quer¿, afirma. (SR)