Título: Iraquianos vão às urnas em clima de guerra civil
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 26/01/2005, Opinião, p. A10

As eleições no Iraque marcarão o primeiro passo do calendário estabelecido pelas tropas de ocupação dos Estados Unidos para a entrega do poder a um governo legitimamente eleito. Em princípio, 15 milhões de eleitores escolherão no próximo domingo uma Assembléia Nacional de 275 representantes, encarregada de escrever a Constituição do país e encaminhar a escolha definitiva dos mandatários em novo pleito a ser realizado este ano. Mas como tudo que consta do script do governo americano desde a invasão do Iraque tem dado errado, o próprio resultado da votação pode trazer novos problemas para os EUA - como a quase certa consolidação da guerra civil entre os sunitas e o resto do país. Os estrategistas americanos não contavam com a extrema complexidade das forças que desencadearam ao invadir o Iraque. Esperavam o júbilo e a união do país após a queda do sanguinário Saddam Hussein, mas não com uma insurreição nacionalista, que uniu provisoriamente sunitas e xiitas contra as tropas de ocupação. A carta das eleições dividiu a resistência iraquiana e escancarou o caminho para a insurgência dos sunitas, que estiveram no poder no reinado de Saddam. Seguir o calendário e levar os iraquianos às urnas em 30 de janeiro tornou-se a única forma de erigir algo parecido com um poder legítimo, ainda que em condições infernais. Os EUA e tropas aliadas continuam lutando sozinhos. As forças armadas iraquianas têm sido devastadas por ataques terroristas, se amotinado diante de combates duros ou simplesmente debandado e têm servido de foco de infiltração para os rebeldes, que conseguem chegar mais facilmente a alvos escolhidos. Apenas uma pequena quantidade das tropas tem treinamento suficiente para enfrentar as tarefas de zelar pela segurança interna e participar de batalhas contra os insurgentes. Diante disso, nada garante que daqui a seis meses, por exemplo, o clima para eleições seria muito diferente ou melhor do que é agora. E ele é extremamente adverso. Quarenta por cento das áreas eleitorais são consideradas inseguras. Uma onda de atentados eliminou o abastecimento de combustível e de água em cidades como Bagdá. Os candidatos não fazem campanha com medo dos assassinatos, e vários deles já foram crivados de balas depois que colocaram suas fotos em propagandas. Comitês eleitorais são alvos prioritários dos terroristas, que ameaçam a vida de quem se aventurar às cabines de votação no domingo. As listas de votação são fechadas e, a rigor, o nível de conhecimento sobre os candidatos é quase nulo. O braço iraquiano da Al-Qaeda declarou guerra às eleições, para a qual conta com o apoio de várias importantes correntes sunitas. Ao que tudo indica, os sunitas, aproximadamente 20% da população, terão baixa representação da Assembléia, dado o boicote sistemático ao pleito. Por outro lado, a baixa representação será um argumento a mais para os radicais se lançarem a novos ataques contra as lideranças xiitas e o novo governo provisório que sairá das urnas. Ainda assim, xiitas, que são 60% da população, e curdos, outros 20%, têm interesse em levar adiante as eleições, o que dá alguma legitimidade à votação. A maioria das vagas da Assembléia Nacional, disputada por 84 partidos e alianças, ficará nas mãos de duas frentes xiitas. A primeira, a Aliança Iraquiana Unida, foi construída em torno do prestígio do aiatolá Ali Al-Sistani, ligado ao Irã, e conta com o apoio importante do Congresso Nacional Iraquiano, de Ahmed Chalabi e o partido Dawa. Seu principal concorrente é o Acordo Nacional Iraquiano, do primeiro-ministro Iyad Allawi. É uma ironia do destino que os EUA patrocinem um governo xiita no Iraque enquanto demonizam outro no Irã e tenham laços estratégicos com os regimes sunitas da poderosa Arábia Saudita, Jordânia e Egito. A ironia pode se converter em algo muito mais sério se as correntes xiitas, especialmente as que gravitam em torno de Sistani, optarem por um regime religioso ao estilo iraniano, que se tornaria hostil aos EUA. Vários líderes da Aliança Iraquiana têm negado esta possibilidade, já que ela contraria os interesses dos EUA, que são os fiadores das eleições. Mas a chance de evolução de um governo eleito para um regime islâmico duro no futuro existe e se acrescenta à enorme lista de desafios à política americana na região. As eleições são um princípio tênue de uma solução de longo prazo, em que a própria permanência das tropas americanas é uma parte do problema.