Título: Internet e auto-regulação: responsabilidade e crimes
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 26/01/2005, Legislação & Tributos, p. E2

Na Idade Média, predominava o direito romano formalista e tradicional, a influência da Igreja contra a usura, além de diferentes regras, pesos e medidas em cada feudo. Nesse cenário desfavorável ao desenvolvimento do comércio, os comerciantes unem-se em corporações e ligas, cristalizando regras emergentes na forma do direito comercial, a partir de normas produzidas pelos próprios comerciantes e decisões dos cônsules - juízes eleitos pela corporação para resolver disputas comerciais. Ao invés de solidificar uma realidade paralela e rival, essas criações foram posteriormente reconhecidas e codificadas pelo direito. Chega a sociedade da informação séculos depois. Diante da dita crise do Estado soberano, não raro são discutidas propostas de auto-regulação para as relações intermediadas pela internet, buscando agilidade, constante atualização com o progresso tecnológico e garantia de conhecimento específico de importantes peculiaridades do setor econômico para a normatização de suas relações jurídicas. Apesar de apresentar grandes vantagens, não se deve esquecer que sua estrutura somente será firme na medida da solidez do interesse em que as condutas previstas sejam respeitadas. De fato, as técnicas coercitivas que a auto-regulação conta, por si só, não seriam suficientes para a desejada segurança jurídica. A conformidade da conduta às regras da auto-regulação somente é observada enquanto existe uma conveniência, um equilíbrio favorável no sistema de "sticks and carrots", das possíveis punições e dos benefícios que podem ser auferidos. Dentre esses vetores podemos apontar a reputação do agente perante o mercado, a necessidade de contínuo relacionamento empresarial com outros agentes e a adoção de padrões mínimos para obtenção de selos de qualidade. Ilustrando esse argumento, lembramos de um episódio ocorrido no ano 2000, quando uma empresa americana pontocom do setor de brinquedos, para saldar suas dívidas, pretendeu vender o banco de dados de seus consumidores, contrariamente ao pré-estabelecido não apenas por sua política de privacidade, mas também em desacordo com regras mínimas de qualidade exigidas por um selo de certificação de uma organização respeitada pelo mercado. Somente com a intervenção do Federal Trade Commission e sua identificação de aí existir uma prática desleal de comércio é que a ação foi impedida. A legislação tradicional, no caso, foi essencial para a manutenção da ordem jurídica.

A legislação tradicional é fundamental para o tratamento das operações intermediadas por meio da internet

A legislação tradicional é fundamental para o tratamento das operações intermediadas pela internet, assim como se observou no desenvolvimento do direito comercial, quando a ordem jurídica não apenas incorporou mas inclusive se transformou ao reconhecer os acordos firmados entre os mercadores. Não há que se falar em zonas insulares de aplicação jurídica, em uma nêmese entre a legislação e a auto-regulação. O direito é aplicável a todos, indistintamente do setor econômico a que se refere. A existência de regras específicas e desenvoltas - como o Código Brasileiro de Auto-regulamentação Publicitária, para tomar um exemplo bem conhecido - não afasta princípios como o da legalidade e do devido processo legal. Isso significa que os conflitos emergentes pela inobservância de regras da auto-regulação são solucionados pelo direito vigente. Onde está a sociedade, está o direito. O brocardo latino é ainda aplicável para a mais atual modalidade de comunicação e interação social: as redes sociais digitais, que ganharam uma grande aceitação do mercado brasileiro, sendo o Orkut, Multiply, LinkedIn, 1Grau, entre outros, alguns dos software que se destacaram neste ano. Talvez induzidos pelo engano de estarem protegidos pelo meio digital, diversos indivíduos vêm, por esses meios, conduzindo discussões em afronta aos bons costumes acompanhadas de informações injuriosas, caluniosas ou que induzem terceiros a erros, como pela personificação de celebridades ou mesmo de pessoas não famosas. Estes aspectos podem culminar em obrigações indenizatórias, além do envolvimento em ações penais, independentemente da existência de um cuidadoso método de vigilância dos administradores desses sistemas, que podem impor a suspensão temporária ou mesmo o cancelamento das contas quando verificado o não-cumprimento dos seus termos de uso. Apesar das grandes vantagens e praticidades de uma ação junto à administração do sistema, caso este não apresente a efetividade desejada, sempre é válida a consideração de medidas judiciais. Nesse sentido, aqueles que oferecem sistemas de interação social devem tomar as devidas precauções para não serem, sem razão, conduzidos a litígios judiciais ou até mesmo condenados injustificadamente. Deve-se orientar esses prestadores de serviços para que implementem de antemão métodos que facilitem a prova judicial, mostrando que sua atuação é responsável e buscando o respeito ao consumidor brasileiro.