Título: Ano perdido para Orçamento e CPIs
Autor: Rosângela Bittar
Fonte: Valor Econômico, 29/12/2004, Política, p. A6

A elaboração e aprovação do Orçamento da União, tarefa exclusiva do Congresso, e o destino de duas importantes Comissões Parlamentares de Inquérito, instrumento por excelência da ação fiscalizadora de deputados e senadores, pontuaram a degradação das atividades do Legislativo, este ano, e de suas relações institucionais com o Executivo. Não por acaso, nessas duas questões o governo do presidente Lula se envolveu muito e foi responsável por erros, de ação, num caso, e omissão, em outro. A omissão diz respeito ao Orçamento. Há anos o diagnóstico está feito: a elaboração do Orçamento da União é um problema, exposto aos olhos de todos, da sociedade, inclusive, e já foi objeto não só de propostas para construção de um novo modelo de trabalho como, principalmente, objeto de inquérito prolongado e profundo, que culminou com cassações e denúncias de prática de irregularidades por parte de deputados e senadores. Tudo já se disse, nesses anos, quanto a constatação de falhas no processo de elaboração e execução do Orçamento. Quantas vezes se repetiu a crítica de que Orçamento da União é uma peça de ficção? O Orçamento nunca foi aplicado conforme aprovado, os parlamentares só prestam atenção às emendas que destinam verbas para prefeituras de seus redutos eleitorais, o governo subestima receitas para não deixar que o Parlamento influa no projeto elaborado pelo Executivo. O sofrimento - sim, não há outra palavra -que cerca, neste fim de ano, a falsa discussão e aprovação final do Orçamento da União para 2005, porém, levou o governo e alguns parlamentares a decidir investir em uma revolução neste processo a partir do início do novo ano Legislativo. Este governo se diz disposto a fazer uma reforma significativa neste processo. O ministro Aldo Rebelo, da Coordenação Política, defende que a tarefa seja conjunta, do governo e do Parlamento, e que efetivamente se realize ao longo de todo o ano de 2005, nos diferentes momentos de elaboração e execução, para que a lei orçamentária de 2006 seja produzida em novas bases. A um pedido para definir qual o problema central da elaboração do Orçamento o ministro responde: "A tramitação é muito burocratizada, tudo fica para o último período do ano, o Orçamento fica à mercê apenas da Comissão do Orçamento, que concentra tudo. Não há participação dos partidos, dos demais deputados e senadores".

Congresso relegou suas tarefas principais

Uma questão realmente fundamental. O Orçamento, que deveria ser um dos produtos mais nobres do Congresso, se não a principal lei ali anualmente debatida, acaba sendo, no final, um assunto de apenas uma comissão, que divide o trabalho entre seus integrantes e, sobre cada parte, atua de maneira estanque, prepara relatórios setoriais numa semana para serem votados na outra, ficando a obra final para a autoria de um relator, no máximo de um relator e o presidente da comissão, com total interferência do Ministério da Fazenda. Um grupo pequeno passa duas madrugadas às vésperas das festas de fim de ano votando destaques, e finalmente se conclui um Orçamento que não vai ser executado. A função mais importante do Congresso é desempenhada à margem do Congresso. "É preciso ampliar isto para uma participação maior. Senadores experientes têm consciência disso e me convenceram a apontar essas deficiências", diz Aldo Rebelo, que está à frente dos estudos para uma mudança no ano que vem. O ministro já está se dedicando a analisar experiências de outros Parlamentos para comparações. "O Brasil não é o único país onde o Congresso elabora o Orçamento, temos que ver como fazem os Estados Unidos, a França, o Japão, ver como essas democracias com experiência consolidada preparam a matéria orçamentária". Além de não ter sido o ano em que resolveu o problema do Orçamento, por omissão, o Congresso deve se envergonhar deste 2004 também por ter sido o ano em que, por ação, destruiu o instituto das Comissões Parlamentares de Inquérito. Em duas CPIs, as principais iniciativas neste campo do ano que termina, o governo Lula contribuiu decisivamente para desmoralizar o instrumento que é também um dos principais com que conta o Congresso para exercer bem suas funções. A forma como o governo, para proteger o ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu, impediu a instalação de uma CPI para apurar os desmandos de Waldomiro Diniz, subchefe da Casa Civil da Presidência da República encarregado das relações com o Congresso, representou uma violência contra a atribuição de investigação do Parlamento. Neste caso, o governo contou com a participação decisiva do presidente do Senado, José Sarney, que no manuseio de sofismas regimentais enterrou a CPI do Waldomiro e acabou por desmoralizar as CPIs que muitas glórias já deram ao Congresso. A segunda, e não menos destruidora, foi a Comissão Parlamentar de Inquérito criada para apurar evasão de divisas, conhecida como CPI do Banestado. Nesta, governo e oposição dividiram a presidência e a relatoria, e os desmandos ocorreram em todas as fases da investigação, chegando-se ao fim do ano sem ter votado o relatório final, do PT, assessorado pelo Palácio do Planalto, nem o voto em separado do PSDB, em que o presidente da CPI contesta o relator. O relator José Mentor conseguiu quebrar sigilos de dezenas de pessoas, trabalho que se revelou tão inútil para a comissão quanto providencial para deixar expostas por aí, não se sabe onde, acessíveis a quem, as vidas financeiras de brasileiros que nada têm a ver com a disputa de poder entre os dois partidos. O PSDB, na presidência do grupo, foi incapaz de conter, com os instrumentos do Parlamento, os excessos do relator, e as presidências do Senado e da Câmara nada fizeram para evitar que a disputa eleitoral desmoralizasse completamente as CPIs, em que agora ninguém mais confia.