Título: Será que uma recessão não faria bem aos EUA?
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Fonte: Valor Econômico, 27/08/2007, Internacional, p. A10

O falecido Rudi Dornbusch, economista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), comentou certa vez: "Nenhum dos períodos de crescimento no pós-guerra morreu de velhice. Foram, todos, assassinados pelo Fed." Cada uma das recessões desde 1945, à exceção da ocorrida em 2001, foi precedida por forte alta inflacionária que obrigou o banco central americano a elevar os juros. Mas hoje o Fed (Federal Reserve) deixou de ser um serial killer. O BC parece mais motivado a promover transfusões de sangue que a fazer sangrias.

Quando o Fed reduziu sua taxa de redesconto em 17 de agosto, admitiu pela primeira vez que o aperto de crédito poderia prejudicar a economia. Os mercados estão apostando que o Fed em breve reduzirá os juros básicos da economia. Os economistas estão discutindo acaloradamente sobre quanto dano será causado pela queda dos preços das moradias e pela crise financeira no mercado de financiamento imobiliário de alto risco. Mas há uma pergunta raramente colocada: mesmo se um período recessivo estiver em gestação, deveria o Fed tentar impedir a sua manifestação?

A maioria das pessoas julga que a indagação embute laivos de loucura. Segundo senso comum, o Fed não deveria reduzir os juros para socorrer financeiras e investidores, porque isso cria um risco moral e incentiva os participantes a assumir riscos ainda maiores; mas, se problemas financeiros prejudicam gastos e empregos, o Fed deveria reduzir os juros imediatamente, desde que a inflação permaneça baixa. Os presidentes de bancos centrais deveriam nortear-se pela "regra de Taylor" - e fixar os juros reagindo a desvios, da produção e da inflação, de seus níveis desejados.

Mas deveria um banco central tentar evitar recessões sempre ? Alguns economistas argumentam que isso poderia criar uma forma muito mais disseminada de risco moral. Se longos períodos de crescimento ininterrupto levarem as pessoas a acreditarem que o Fed é capaz de evitar quaisquer recessões futuras, consumidores, empresas, investidores e tomadores de empréstimos serão encorajados a assumir maiores riscos, tomando mais empréstimos e poupando menos. Nos últimos 25 anos, a economia americana esteve em recessão apenas 5% do tempo, em comparação com 22% nos 25 anos anteriores. Em parte, isso se deveu a mudanças estruturais bem-vindas, que tornaram a economia mais estável. Mas e se isso ocorreu devido a repetidas injeções de adrenalina sempre que a economia esfriou?

Muitos dos atuais problemas financeiros americanos podem ser atribuídos à moderação da recessão de 2001 após o estouro da bolha de investimentos no setor de internet. Depois de seu mais longo crescimento ininterrupto na história, o Produto Interno Bruto (PIB) dos EUA sequer caiu por dois trimestres consecutivos - definição tradicional de recessão. Argumenta-se comumente que o modesto esfriamento econômico foi resultado benigno da maior flexibilidade da economia americana, de seu melhor controle de estoques e do controle mais firme do Fed sobre a inflação. Mas a economia também recebeu a maior injeção monetária e fiscal de sua história. Ao cortar os juros (mais que o estipulado pela regra de Taylor), o Fed estimulou um boom no preço das moradias que compensou as perdas no mercado acionário e permitiu que as famílias negociassem maiores financiamentos para sustentar seus gastos. E, por pura sorte, os cortes em impostos, planejados quando a economia ainda estava aquecida, inflaram a demanda exatamente no momento certo.

Muitos apostam que o Fed repetirá o truque agora . Uma redução dos juros ajudaria a dar sustentação aos preços das moradias e incentivaria as famílias a continuar tomando empréstimos e a gastar. Mas, após uma farra tão prolongada, será que a economia não seria beneficiada por uma ducha gelada? Contrariamente ao senso comum, não é incumbência de um banco central impedir recessões a qualquer custo. Sua tarefa é manter a inflação baixa (ajudando a aplainar o ciclo econômico), proteger o sistema financeiro e evitar que uma recessão se transforme em profunda queda de atividade econômica.

Os custos econômicos e sociais de uma recessão são dolorosos: desemprego, salários e lucros mais baixos e falências. Essas conseqüências não podem ser desconsideradas levianamente. Mas existem também alguns supostos benefícios. Alguns economistas acreditam que recessões são um fato necessário no crescimento econômico. Joseph Schumpeter argumentava que recessões são um processo de destruição criativa, nos quais empresas ineficientes são erradicadas. Somente permitindo que os "ventos da destruição criativa" soprem livremente poderia ser liberado o capital de empresas agonizantes para novos setores de atividade econômica. Algumas evidências de estudos envolvendo diferentes países sugerem que economias com maior volatilidade em sua produção tendem a exibir crescimentos da produtividade um pouco mais rápidos. As taxas de juros nulas no Japão permitiram que companhias "zumbis" sobrevivessem até a década de 90. No Japão, esse crescimento deprimido da produtividade e o excesso de capacidade minaram a lucratividade de outras empresas.

Outro "benefício" é que uma recessão purga os excessos do boom anterior, deixando a economia mais saudável. O enorme alívio monetário determinado pelo Fed após o estouro da bolha de investimentos no setor de internet postergou esse processo de limpeza e simplesmente substituiu uma bolha por outra, permitindo a manutenção dos desequilíbrios no país (poupança inadequada, endividamento excessivo e enorme déficit em conta corrente). Uma recessão, agora, reduziria o desequilíbrio comercial americano, pois os consumidores finalmente seriam obrigados a diminuir seus gastos. Adiar a correção de excessos passados injetando mais dinheiro e estimulando mais tomadas de empréstimos provavelmente tornará uma futura correção mais dolorosa. O dilema de política monetária com que se defronta o Fed pode não ser entre recessão ou não recessão. Talvez seja entre uma recessão branda agora e uma recessão mais grave mais adiante.

Isso não significa que o Fed deva seguir o conselho de Andrew Mellon, secretário do Tesouro, após o crash de 1929: "Liqüidar a mão-de-obra, liqüidar as bolsas, liqüidar os agricultores e liqüidar o mercado imobiliário... Isso expurgará a podridão do sistema". A produção americana caiu 30% enquanto o Fed nada fez. Como estudioso da Grande Depressão, Ben Bernanke, atual presidente do Fed, não cometerá tal erro. Os bancos centrais devem impedir que recessões transformem-se em depressões profundas, mas pode ser um erro impedi-las totalmente de acontecer.

Evidentemente, mesmo se uma recessão estivesse alinhada com o interesse econômico americano de longo prazo, seria um suicídio político defendê-la. Se um presidente de banco central aventasse a idéia, logo poderia deixar de sê-lo. Mas isso não deveria impedir que economistas sem papas na língua especulassem se uma recessão, de tempos em tempos, não poderia na realidade ser algo saudável.