Título: Indústria de gás natural e estratégia competitiva do agente dominante
Autor: Cecchi, Por José Cesário e Moreira, Tathiany R.
Fonte: Valor Econômico, 27/08/2007, Opinião, p. A12

Tradicionalmente caracterizada como um monopólio natural, em razão das economias de escala geradas, a atividade de transporte de gás natural encerra elementos que evidenciam seu caráter de indústria de rede: altos custos fixos irrecuperáveis; especificidade dos ativos; longo prazo de maturação dos investimentos; interesse econômico e social; entre outros. Tais características constituíram-se relevantes barreiras à entrada de novos agentes no setor, em benefício da primeira firma a se instalar, incitando uma regulação expressa do monopólio.

A regulamentação vigente, por seu turno, se por um lado contribuiu com a dissolução do monopólio legal da Petrobras e a desverticalização do setor, por outro, ainda apresenta importantes lacunas que não podem prescindir de um tratamento específico, no sentido de fazer valer efetivamente os objetivos previstos na Lei nº 9.478, principalmente, o de fomentar a competição no suprimento de gás natural e na sua comercialização junto aos consumidores finais.

Neste âmbito, a ausência de limitação à participação cruzada, sustentada na preocupação de que a mesma pudesse dificultar os investimentos em um contexto de reduzido grau de maturidade da indústria gasífera nacional, deve ser de imediato revista.

Isso porque o proprietário das instalações de transporte dutoviário possui interesses empresariais próprios, que nem sempre são compatíveis com os interesses do carregador/comercializador interessado em utilizar esta infra-estrutura, sobretudo se há concorrência nos segmentos upstream e downstream. Neste caso, tendo o carregador participação acionária majoritária na empresa transportadora, o mesmo tentará impedir ou dificultar o acesso do concorrente aos dutos de transporte, a fim de fortalecer sua posição estratégica no segmento competitivo a montante e a jusante.

De outro modo, se o transportador fosse verdadeiramente independente, sua racionalidade econômica seria no sentido de maximizar o uso da capacidade da rede, permitindo, e mesmo incentivando, o acesso de terceiros onde houvesse capacidade disponível ou ociosa.

Corrobora o exposto o comportamento do carregador dominante no setor - a Petrobras, que, utilizando-se de seu predomínio sobre a propriedade da infra-estrutura de dutos, busca erguer barreiras à entrada de novos atores no fornecimento de gás natural, com o objetivo de proteger e aumentar seus interesses de reserva de mercado.

-------------------------------------------------------------------------------- É urgente que se aproveite a oportunidade aberta com a discussão da Lei do Gás Natural no Congresso para se corrigir as falhas --------------------------------------------------------------------------------

Nesse sentido, deve-se remeter à constituição das firmas transportadoras da malha nacional, com autorizações de construção e/ou operação emitidas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP. De um total de 12 transportadoras constituídas, seis foram estruturadas com participação acionária majoritária da Petrobras e três com participação de até 50% de capital acionário desta estatal.

Cumpre mencionar, ademais, o exemplo das firmas atuantes no segmento de E&P, que, não conseguindo competir no segmento downstream, em razão das dificuldades de acesso, e não sendo a atividade de comercialização seu core business, acabam sendo obrigadas a vender o gás produzido apenas para a Petrobras.

Vale advertir, dado o observado, que as ações das transportadoras subsidiárias da estatal petrolífera, operando de acordo com as diretrizes empresariais de sua proprietária, não condizem com as de um transportador independente, que, como visto, persegue a utilização ótima de suas instalações e, assim, a maximização de seus lucros. Mas, ao invés disso, retrata um comportamento que reflete muito mais receio do que predisposição à uma atuação competitiva da estatal na atividade de transporte de gás natural, revelando uma estratégia de reforço e propagação de seu domínio por toda a cadeia de valor desta indústria.

Por fim, cabe aludir ao fato de que, em virtude do comportamento estratégico adotado pela Petrobras - constituindo diversas firmas transportadoras subsidiárias -, algumas destas acabam por operar o mesmo trecho físico da rede dutoviária de escoamento de gás natural. Por esta razão, o ente regulador torna-se obrigado a realizar mais de um Concurso Público de Alocação de Capacidade (CPAC) para a mesma malha de gasodutos, ao invés da opção mais razoável de se adotar um único procedimento legal para a ampliação e/ou construção de novos dutos.

Dessa forma, para fins exemplificativos, tem-se que: em havendo uma descoberta de gás natural na Bacia de Campos e o carregador desejar comercializá-lo junto a uma distribuidora localizada na região Nordeste, o mesmo deverá solicitar livre acesso ou manifestar interesse em adquirir capacidade de transporte firme em, no mínimo, três transportadoras. Ou seja, o carregador precisará firmar contratos de serviço de transporte firme (com vistas a simplificar o exemplo, não se está considerando o período de exclusividade de seis anos, garantido pela Resolução ANP nº 27/05, para os projetos em processo de licenciamento ambiental ou de declaração de utilidade pública na data de publicação deste regulamento) com a Transportadora Gasene S.A., operadora do duto Cabiúnas-Vitória e Cacimbas-Catu; com a Transportadora Capixaba de Gás S.A. - TCG, operadora do duto Cacimbas-Vitória; e com o Consórcio Malhas Nordeste Sudeste, que opera o duto ao longo do município de Catu, na Bahia, até o Estado do Ceará.

As dificuldades de coordenação deste processo, bem como os custos associados à formalização dos contratos de serviço de transporte firme, por certo, inibem qualquer potencial agente a entrar no mercado de fornecimento de gás natural.

Visto está, portanto, a atuação deliberada do Sistema Petrobras no sentido de dificultar a competição no suprimento deste energético. É, pois, urgente que se aproveite a oportunidade aberta, com a discussão da Lei do Gás Natural no Congresso, para se corrigir as falhas na regulamentação vigente, inserindo os mecanismos adequados à promoção de eficiência nos segmentos de monopólio natural - dessa forma prevenindo abusos de poder de mercado - e à promoção de competição nos segmentos potencialmente competitivos.