Título: Com temor de crise cambial, povo tenta proteger recursos
Autor: Lyons, John
Fonte: Valor Econômico, 27/08/2007, Especial, p. A14

Assim como muitos de seus amigos em Caracas, Alfred e Norma Muñoz estão se preparando para o que acreditam ser inevitável: uma crise cambial causada pelas políticas do presidente Hugo Chávez.

Esse casal de classe média planeja pegar emprestado o máximo que puder de um banco local e comprar um apartamento fora do país. Se o bolívar venezuelano cair em relação ao dólar, calculam, o empréstimo ficará barato para quitar e o apartamento no exterior vai segurar seu valor em dólar. "Além disso, nos dá um lugar para nos refugiarmos se as coisas ficarem muito ruins", diz Muñoz, dono de uma pequena empresa.

No momento, com o preço do petróleo perto de níveis recordes, a economia venezuelana está em franca expansão. Desde 2004, a média de crescimento anual é de 12,6% - a mais rápida da América Latina. É normal esperar três meses para comprar carros novos nas concessionárias de Caracas por causa do aumento da oferta de crédito ao consumidor. O desemprego caiu para menos de 10% pela primeira vez em mais de dez anos.

Mas há sinais de problema. A produção de petróleo está caindo por causa de perdas de pessoal qualificado e redução de investimentos na estatal Petróleos de Venezuela SA, a PDVSA. A inflação está em 19% ao ano, de acordo com o governo venezuelano, apesar de vários economistas do setor privado afirmarem que a taxa chega, na verdade, perto dos 25%, por causa da influência cada vez mais forte do mercado negro em produtos difíceis de obter. Em parte por causa disso, o bolívar, oficialmente fixado a 2.150 por dólar, perdeu cerca de metade de seu valor no mercado negro. Muitos venezuelanos temem que uma desvalorização oficial e uma inflação galopante sejam inevitáveis.

O aperto de crédito global causado por problemas no mercado de financiamento imobiliário dos Estados Unidos pode dar novos motivos para preocupação aos venezuelanos. Isso porque o preço do petróleo pode cair se, como alguns economistas temem, a menor disponibilidade de crédito provocar uma retração econômica mais ampla. Uma queda do petróleo privaria Chávez de receita para bancar seus grandes programas sociais e aceleraria a pressão sobre o bolívar.

Em décadas passadas, declínios da moeda e hiperinflação foram comuns na América Latina, desestabilizando governos e espalhando miséria entre a população carente. De fato, a própria ascensão de Chávez ao poder foi ajudada pelo colapso financeiro e pela inflação galopante de meados dos anos 90 no governo de Rafael Caldera. Eleitores descontentes acabaram apoiando Chávez nas eleições de 1998. Se tais problemas emergirem novamente, eles podem abalar a popularidade de Chávez, assim como diminuir sua influência na região ao forçá-lo a cortar sua ajuda a outros países.

Enquanto o bolívar enfraquece, a moeda de outros países exportadores de petróleo se fortalece. A explicação para a discrepância está, pelo menos em parte, nas políticas econômicas de Chávez. Seus esforços para dirigir a economia em benefício dos pobres produziu imprevistos, os quais ele tem tratado com soluções pouco ortodoxas que, por sua vez, causaram novos problemas. A cada mudança na política econômica, venezuelanos como os Muñoz se convencem mais de que as coisas vão sair de controle.

Desde 2003, Chávez mais que dobrou os gastos do governo em saúde pública gratuita, salários mais altos, subsídios para a gasolina e outros serviços. Isso criou mais demanda por mercadorias e serviços, o que estimulou a inflação. Para tentar contê-la, Chávez expandiu o controle de preços para produtos como carne, açúcar, ovos e leite. Os produtores, por sua vez, se recusaram a vender seus produtos pelos preços tabelados, o que esvaziou as prateleiras dos supermercados. A falta de produtos criou um mercado negro, no qual os preços dispararam.

Essa mistura de falta de produtos, mercado negro e crescimento da inflação não é novidade para os venezuelanos, que passaram por três crises econômicas desde os anos 80. Na mais recente, a quebra de um banco grande ajudou a causar uma crise cambial e uma inflação que superou os 100% em 1996. Para se proteger de uma nova crise, os venezuelanos estão tentando comprar dólares, o que enfraquece ainda mais o bolívar.

"Todos nós sabemos o que vai acontecer, só não sabemos quando", diz David Macedo, que dirige um caminhão de entregas de produtos a mercearias. Quando ele consegue economizar alguns bolívares, vai ao aeroporto de Caracas para comprar dólares de turistas recém-chegados, diz ele. Macedo paga 3.500 bolívares por dólar, muito mais que a taxa de câmbio oficial, que é de 2.150, mas menos que a cotação que prevalece no mercado negro, cerca de 4.300 agora.

Os venezuelanos mais ricos descobriram que podem usar cartões de crédito para explorar a diferença entre as taxas de câmbio oficial e do mercado negro. Alguns têm viajado a Aruba, uma ilha próxima, e comprado US$ 5.000 em fichas de cassinos - o máximo para compras no cartão permitido pelo governo venezuelano -, de acordo com uma pessoa que agencia as viagens. Eles trocam as fichas por dólares e, quando voltam para casa, compram bolívares suficientes no mercado negro para pagar suas dívidas no cartão, diz essa pessoa. Eles embolsam o resto - cerca de US$ 2.300 pelo câmbio atual, mais do que o suficiente para pagar a viagem.

Quando a população espera uma crise, fica mais difícil para o governo evitar uma. Se os comerciantes acreditarem que as políticas de combate à inflação vão fracassar, eles tentarão aumentar os preços independentemente do que o governo fizer. O exemplo mais recente disso é a Argentina: em 2001, os argentinos perderam a confiança na capacidade do governo de evitar a moratória e começaram a sacar em massa seus depósitos dos bancos, o que acabou acelerando a crise econômica e o colapso cambial que eles temiam.

Na Venezuela, Chávez chegou ao poder com a promessa de usar os recursos do petróleo para ajudar a população carente. Seus problemas econômicos começaram depois de uma tentativa de golpe em 2002 e uma greve de trabalhadores da PDVSA. A turbulência econômica estimulou muitos venezuelanos a tirar dinheiro do país, o que ameaçou causar uma crise no sistema bancário. Para combater a fuga de capital, Chávez baniu transferências de dinheiro ao exterior e compras em dólar.

Quando o petróleo subiu, Chávez elevou os gastos do governo, o que o ajudou a conquistar votos em 2004 e 2006. Mas os controles de capital aprisionaram os gastos dentro da Venezuela, o que quadruplicou a quantidade de bolívares em circulação. A base monetária inflada minou o bolívar e alimentou a inflação.

O governo Chávez entende o perigo e promete conter a inflação antes que ela saia do controle. Em julho, ele começou a exigir que os bancos pagassem mais juros sobre depósitos bancários, com o objetivo de deixar o bolívar mais atraente e estimular a poupança. Mas a nova taxa de juros é apenas metade da taxa de inflação. O ministro das Finanças, Rodrigo Cabezas, diz que o governo vai moderar os gastos pela primeira vez em anos e vai fixar a taxa oficial de câmbio pelo menos até 2009. "Não temos planos de desvalorização", diz.

Poucos economistas que acompanham a Venezuela prevêem profundos problemas financeiros, ao menos enquanto o preço do petróleo continuar alto. As economias da América Latina geralmente encalham quando elas não conseguem pagar suas contas de importação e serviços de dívida. A Venezuela não enfrenta esse problema no momento.

Mas as perspectivas de longo prazo são nebulosas. Mark Weisbrot, um dos diretores do Centro para Pesquisa Política e Econômica, um centro de estudos em Washington que em geral apóia Chávez, diz que o governo tem tempo de ajudar o crescimento econômico investindo na indústria fora do setor petrolífero. Outros economistas são mais pessimistas. Eles criticam o governo por não estar investindo suficientemente em melhoras de longo prazo, como na construção de fábricas, e que o governo continua muito dependente da receita do petróleo.

"Não sabemos quando a crise vai ocorrer", diz Alberto Ramos, um economista especializado em América Latina da Goldman Sachs. "Mas Chávez está dirigindo na contramão."

Muitos venezuelanos estão se preparando para o pior. O controle que Chávez exerce no Legislativo, nos tribunais e no Exército faz com que seja pouco provável que o governo seja forçado a mudar sua rota econômica. Na semana passada, Chávez propôs reformas constitucionais que acabariam com a autonomia do banco central e eliminariam o limite de mandato presidencial - uma jogada que, segundo críticos, é sua aposta para se tornar presidente vitalício. As preocupações sobre o futuro incentivaram milhares de venezuelanos com mais recursos a sair do país nos últimos anos em direção a Miami e centros petrolíferos como Houston, nos EUA, e a província canadense de Alberta.

No ano que vem, Chávez planeja relançar o bolívar com três zeros a menos e chamá-lo de "bolívar forte". O plano inclui o relançamento de uma moeda de 12,5 centavos, chamada "la locha", um regresso aos dias do líder militar latino-americano Simón Bolívar - o ídolo de Chávez. Durante meses, o governo insistiu em que a "reconversão" da moeda resolveria muitos dos problemas do país, como a inflação. O plano foi menosprezado e, em julho, um assessor de Chávez reconheceu que ele "não vai ter nenhum efeito primário no fenômeno da inflação".

Enquanto a inflação sempre atinge os pobres, diminuindo seu poder de compra, algumas das políticas para contê-la adotadas por Chávez estão ajudando bancos, corretoras de valores e outros venezuelanos ricos. Com os controles de capital que limitam a quantidade de bolívares que podem ser transferidos para o exterior, os depósitos bancários aumentaram sete vezes desde 2002. Empresas do setor financeiro têm lucrado ajudando venezuelanos a mandar seu dinheiro para fora do país legalmente com a troca de dívidas. Usando bolívares, o cliente compra um título venezuelano negociado em bolsas estrangeiras e depois o vende, recebendo como pagamento papéis de dívida em dólar, como os títulos do Tesouro americano. O pagamento é depositado em contas fora do país.

Um plano de Chávez para reforçar a divisa venezuelana com a venda de bônus em dólar foi praticamente um tiro pela culatra. O governo imaginava que fazer a população usar bolívares para comprar os bônus tiraria a moeda de circulação, aumentando o seu valor. Mas compradores espertos notaram que poderiam comprar as obrigações em dólar do governo pela taxa de câmbio oficial, e depois revendê-la na bolsa oficial de Caracas, onde as obrigações são negociadas por valores bem mais próximos das altas taxas do mercado negro.

O governo tentou beneficiar os pequenos investidores primeiro ao dizer que as ordens de compra de menos de US$ 3 mil feitas por pessoas físicas seriam atendidas antes. As corretoras pagaram a empregadas domésticas, porteiros e outros trabalhadores cerca de US$ 50 cada um para que cedessem seus direitos sobre os bônus, diz Pedro Torres, um intermediário que é pago pelas corretoras para encontrar trabalhadores venezuelanos dispostos a ceder seus diretos. Ele diz que conseguiu 170 pessoas para a mais recente venda de bônus, este ano.

Alguns venezuelanos também têm usado os títulos em dólar para especular contra o bolívar. Eles compram as obrigações com empréstimos de bancos locais e as revendem a taxas de mercado negro, embolsando a diferença. Ao explorar a diferença entre o câmbio do banco central e o do mercado, os investidores estão na prática ganhando dólares às custas das reservas venezuelanas.

A pressão pela queda da moeda não termina aí. Como as regras bancárias do governo Chávez têm mantido baratos os empréstimos, os venezuelanos têm um incentivo de tomar dinheiro emprestado não só para comprar títulos, mas também outros produtos. Eles tomam empréstimos para poder comprar produtos como lava-louças e relógios caros, que preservam valor. Esses empréstimos também colocam mais dinheiro em circulação, agindo contra os objetivos antiinflacionários do governo.

"Chávez é o primeiro presidente a fazer propaganda, organizar e incitar uma corrida contra sua própria moeda", diz Alejandro Grisanto, um economista que se opõe ao presidente venezuelano. Ele estima que pelo menos dois terços da última emissão de bônus em dólar foram comprados com dinheiro de crédito, inclusive os que ele mesmo comprou. Cabezas, o ministro das Finanças, negou-se a comentar o assunto.

Numa concessionária Fiat lotada de gente em Las Mercedes, um bairro sofisticado de Caracas, os compradores põem seus nomes em listas de espera de três meses. Eles querem tanto comprar que não se importam com o modelo ou a cor, desde que possam comprar logo, diz a gerente de vendas Beatríz Machado. Alguns Fiats usados são vendidos por mais do que modelos novos porque estão acessíveis imediatamente, acrescenta ela.

"Eles não querem um carro. Querem um lugar para colocar o dinheiro deles", diz Machado, que usa uma camisa e brincos vermelhos para mostrar seu apoio a Chávez, que, segunda ela, ajuda os pobres. Ela também tem dúvidas em relação à economia e diz que gasta seus bolívares rapidamente. Com um empréstimo em bolívares, ela comprou um apartamento e um carro. Recentemente, diz, ela estocou sua adega com champanhe e uísque importados.

Os maiores perdedores talvez sejam os pobres, muitos dos quais apóiam Chávez. Antonio Buitrago, um taxista de 57 anos, diz que Chávez ajudou seu filho a andar de novo. No ano passado, depois de um acidente de carro que deixou o jovem gravemente ferido, o governo pagou pelo tratamento médico e uma viagem a Cuba para reabilitação. "Acredito que Chávez vá cuidar de mim", diz Buitrago.

Mas Buitrago diz que sua vida está ficando mais difícil. Ele está entre os 45% da população que, de acordo com a estimativa de uma empresa de pesquisa de opinião, tiveram dificuldade de encontrar frango e leite este ano. Ele não pode pagar os preços do mercado negro e portanto pega longas filas em mercados que vendem alimentos subsidiados. Ele deposita o que consegue economizar no banco, onde o dinheiro é consumido pela inflação, porque diz que comprar dólar no mercado negro é pouco patriótico.

Numa recente feira "Expo Crédito" em Caracas, as pessoas formavam enormes filas no salão de conferências. Pessoas de classe média-alta esperavam ao lado de homens vestidos com uniformes militares ou do corpo de bombeiros para pedir cartões de crédito. O slogan da feira era "Crédito para Tudo".

O engenheiro Denis Naranjo dizia estar avaliando as opções. Ele quer pegar um empréstimo, mas não tem certeza se deve comprar um imóvel ou carros. O que ele realmente precisa, diz, é de uma conta corrente nos EUA. "Na Venezuela, as coisas estão sempre mudando", explica. "Você tem que ter um plano, e tem que ser flexível." (Colaborou Raul Gallegos)