Título: ONGs em pé de guerra com Brasília
Autor: Cynthia Malta
Fonte: Valor Econômico, 27/01/2005, Brasil, p. A2

O Terceiro Setor está em pé de guerra com o governo. No primeiro ano da administração petista, em setembro de 2003, representantes de organizações não-governamentais (ONGs) foram recebidos pelo presidente Lula em Brasília e deixaram o Palácio do Planalto com a promessa de que participariam das discussões para o aperfeiçoamento do marco legal do setor. Um ano e três meses depois, eles reclamam que não foi cumprido o combinado. E temem que seja aprovado no Congresso um projeto de lei que, em sua opinião, aumenta a burocracia e desestimula a mobilização da sociedade civil. Acreditam que o objetivo principal desse projeto é exercer maior controle sobre um setor que cresce rapidamente e que é olhado com desconfiança pelo governo. As ONGs vêm ganhando peso. Em seis anos, de 1996 a 2002, o número de fundações privadas e associações sem fins lucrativos cresceu 157%, passando de 105 mil para 276 mil, segundo estudo inédito feito pelo IBGE em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, a Associação Brasileira das ONGs (Abong) e o Grupo de Instituições, Fundações e Empresas (Gife). As ONGs, que em 1996 empregavam 1 milhão de pessoas, trabalhavam com 1,5 milhão em 2002. Este crescimento no Brasil não é algo isolado. A tendência é mundial. O montante de verbas operado por essas entidades não é pequeno. As 270 entidades da Abong recebem por ano cerca de R$ 150 milhões, sendo metade do exterior. As 71 associadas ao Gife gastaram em 2004 cerca de R$ 800 milhões. O valor mais importante é, de longe, aquele gasto pelos governos federal, estaduais e municipais em projetos de cunho social tocados em parceria com ONGs. Este valor está na casa dos bilhões de reais. Saber como essa montanha de dinheiro é gasta, de forma transparente e clara, é, claro, importante. As ONGs sérias, com história e resultados para mostrar, sabem disso. Por isso, querem discutir melhorias do marco legal, para evitar que entidades picaretas se multipliquem no país. Foi com esse objetivo que se reuniram com o presidente Lula em 2003. Do encontro participou o diretor-presidente da Abong, Jorge Eduardo Saavedra Durão. "Pedimos ao presidente Lula que fosse revisto o marco legal das ONGs. O presidente determinou, então, que um grupo de trabalho, com a nossa participação, fosse formado. Nunca chegamos a isso". A Secretaria Geral da Presidência da República, encarregada de cuidar do tema, "chegou à conclusão que o governo não tinha posição sobre o assunto e resolveu criar um grupo interministerial, sem a nossa participação, sem a participação da sociedade civil", diz Durão. O grupo, de 11 ministérios, reuniu-se com a Abong e o Gife, segundo Durão, apenas uma vez em 2004. "Eu sinto decepção com este governo. Achei que ele governaria mais próximo da sociedade civil", diz Helio Mattar, diretor-presidente do Instituto Akatu. "O governo não tem um canal aberto, permanente, para discutir o assunto", afirma o consultor jurídico do Gife, Eduardo Szazi. O ministro Luiz Dulci, titular da Secretaria Geral da Presidência da República, informou que vai criar um grupo de trabalho em parceria com representantes das ONGs "o mais breve possível". A decisão, informada ao Valor por um assessor de Dulci, é oportuna já que desde ontem o ministro acompanha o presidente Lula no Fórum Social de Porto Alegre.

Dulci, de bandeira branca, quer conversar

Dulci e Lula estão rodeados de ONGs na capital gaúcha e, já que as vaias são inevitáveis, retomar o diálogo sobre o marco legal do Terceiro Setor é atitude com grandes chances de ser bem recebida. (Ver também página A8) Ao longo de 2004 tramitaram no Congresso alguns projetos que tratavam de regulamentar as atividades das ONGs. No final de junho um deles foi aprovado pelo Senado - o do senador César Borges (PFL-BA) que trabalhou num texto original do senador Mozarildo Cavalcanti (PPS-RR) - e enviado à Câmara Federal. A Comissão de Trabalho e Administração Pública da Câmara, encarregada de analisar o mérito do projeto, não deu parecer e propôs que ele fosse analisado por várias comissões. Como o assunto é delicado, é possível que seja criada uma comissão especial na Câmara para avaliar o texto do senador baiano. Um dos pontos que as ONGs criticam no projeto de lei é a criação do Cadastro Nacional Único, montado a partir de dados a serem recolhidos pelo Ministério da Justiça. "Já há vários cadastros no país. Esse novo cria mais burocracia e mais gastos", diz Alexandre Ciconello, advogado da Abong. As ONGs estão listadas na Receita Federal, a partir das declarações de imposto de renda, no Conselho Nacional de Assistência Social e na Relação Anual de Informações Sociais (Rais). Cadastro, portanto, é o que não falta. O projeto de lei também determina que o Ministério Público fiscalize as finanças das ONGs sem que denúncias sejam feitas. "A prestação de contas já é feita para quem envia os recursos para as ONGs e quando a verba é pública há a fiscalização dos tribunais de contas da União, dos Estados e dos Municípios", diz Ciconello. "Tememos que a fiscalização a priori se transforme numa tutelagem das ONGs", observa. O consultor jurídico do Gife lembra que há dois tipos de entidades sem fins lucrativos no país: as associações e as fundações. Estas já prestam contas uma vez ao ano ao MP e as associações, se manejam recurso privado, não devem ser fiscalizadas pelo MP pois, nesse caso, se daria a interferência do público no privado. O aperfeiçoamento do marco legal, propõem a Abong e o Gife, poderia ser feito a partir da lei 9.970, de março de 1999, que criou criou as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips). Até ontem, o Ministério da Justiça havia chancelado 726 Oscips, número considerado baixo. Em alguns pontos, essa lei é mais avançada do que a que vigora na União Européia. Uma Oscip tem a obrigação, por exemplo, de prestar contas a qualquer cidadão e não apenas aos associados. Um avanço, diz Szazi, seria adotar um relatório de atividades das Oscips mais detalhado, a exemplo do usado nos Estados Unidos.