Título: "Viés" contra o investimento público
Autor: Maria Clara R. M.
Fonte: Valor Econômico, 27/01/2005, Opinião, p. A11

Vira e mexe, a drástica queda dos investimentos públicos observada nos últimos anos na América Latina volta à mesa de debates. Iniciativas aqui e ali - casos do Chile e do México - têm buscado soluções para encaixar de forma equilibrada nos orçamentos dos governos aquele tipo de gasto, considerado por muitos como um bicho diferente das despesas chamadas de "correntes". Não há ainda, porém, um tratamento contábil formal e definitivo para a questão à luz dos programas de ajuste fiscal patrocinados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e avalizados por outros organismos e instituições multilaterais. Idéias não faltam, deve-se registrar, como ficou claro esta semana em Santiago do Chile, onde a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), ligada à ONU, reuniu especialistas de diversas partes do mundo no XVII Seminário Regional de Política Fiscal. O encontro, de quatro dias, foi dedicado à importância do investimento em infra-estrutura, o papel que o setor público tem no segmento e a formas de viabilizar a contabilização desse tipo de despesa sem contaminar o ajuste fiscal. A bem da verdade, deve-se deixar também registrado que não se chegou a nenhuma conclusão definitiva. O tema é polêmico, complexo e, não raro, acaba sua discussão enveredando para o perigoso efeito de eventuais pressões políticas sobre os investimentos públicos. Visto de outro ângulo, no entanto, esses investimentos têm sido cada vez mais associados com perspectivas de crescimento de longo prazo e, mais recentemente, até com melhoria na distribuição de renda. Estudo apresentado no seminário confirma evidências naquele sentido. "The Effects of Infrastructure Development on Growth and Income Distribution" (Efeitos do Desenvolvimento da Infra-estrutura no Crescimento e na Distribuição da Renda), de César Calderón, da divisão de pesquisa econômica do Banco Central do Chile, e Luis Servén, do Banco Mundial, considerou dados de um universo de 121 países, no período entre 1960 e 2000, e chegou às seguintes conclusões: 1) o volume do estoque de infra-estrutura tem significativo efeito positivo no crescimento econômico no longo prazo; 2) a quantidade e a qualidade da infra-estrutura têm robusto impacto negativo na desigualdade da renda. Ou seja, a desigualdade declina não apenas com maior volume de infra-estrutura, mas também com o aperfeiçoamento da qualidade desses serviços, sendo que a renda é ainda melhor distribuída quando há melhoria no acesso à água saudável. Este trabalho de Calderón e Servén é o desdobramento aprofundado de um estudo que ambos haviam concluído ano passado, já mencionado nesta coluna. Eles agora confirmam e ampliam seus achados. Chamam a atenção para a significância não apenas empírica dos resultados, mas também econômica: "se todos os países da América Latina se alinhassem aos líderes da região em termos de quantidade e de qualidade de infra-estrutura (Costa Rica e Chile), o ganho no crescimento per capita no longo prazo representaria algo entre 1,1% e 4,8% por ano, enquanto o coeficiente de Gini (que mede a desigualdade da renda) decresceria entre 0,02 e 0,10". Se alinhados com a média dos países do Leste Asiático no segmento da infra-estrutura, os ganhos dos países latinos seriam, em média, muito maiores.

O FMI prefere continuar trabalhando com o balanço integrado das contas do setor público e com o conceito de dívida bruta

A questão que se coloca para os governos dos países da região parece ser a de sempre. Quem vai investir no melhoramento da infra-estrutura dos países latino americanos? O setor privado tem sido refratário a tudo o que representa "longo prazo" na região (recorde-se o impacto do calote da dívida externa argentina com efeitos indiretos de desconfiança externa até sobre o Brasil). Isso passa pelo receio de mudança de regras no meio do caminho, só para ficar no básico do básico. Além disso, há carência de poupança privada local para bancar esses investimentos. O setor público não tem dinheiro. Ou melhor, parece ter dinheiro para gastos correntes, ainda que esses cresçam de forma expressiva, como tem sido o caso no Brasil, mas não para despesas com investimento. Afora esse "detalhe" fundamental, há importante aspecto metodológico a ser resolvido. Como tratar os investimentos nas contas do governo? A diretora do departamento de Assuntos Fiscais do FMI, Teresa Ter-Minassian, participou do encontro. Falou no painel sobre "Flexibilidade Fiscal para a Inversão em Infra-estrutura" e constatou que a queda observada nos investimentos públicos tem sido apenas parcialmente compensada pelos investimentos privados. No entanto, foi cautelosa com respeito às idéias que buscam dar tratamento fiscal especial ao investimento público, de modo a abrir espaço para esse tipo de inversão em meio aos programas de ajuste. Teresa fez ressalvas à proposta que prevê a fixação de meta apenas para gastos correntes, deixando de fora os investimentos. Para ela, a sugestão tem mais desvantagens do que vantagens. Os benefícios, do ponto de vista do FMI, seriam apenas dois: espalhar os custos do investimento público ao longo do período de maturação (como, aliás, faz o setor privado) e reconhecer que esse tipo de gasto, quando produtivo, agrega ao estoque de capital do setor público. Mas vê como desvantagens, entre outros, o fato de encorajar a prática de "contabilidade criativa", além do conflito com políticas de controle do excesso de demanda e eventuais brechas para financiamento de curto prazo que aqueles projetos poderiam envolver. O FMI, portanto, prefere continuar trabalhando com o balanço integrado das contas do setor público e com o conceito de dívida bruta, que inclui todo o tipo de endividamento, inclusive o destinado ao investimento. Admite apenas o uso de mecanismos que reduzam a volatilidade e a contabilidade pró-cíclica da política fiscal. Ainda assim, o conceito é cercado de cuidados, pois seu sucesso depende da disposição dos governos em fazer sacrifícios fiscais maiores justamente quando a economia está em rota de crescimento (para compensar o impacto da fase de relaxamento fiscal dos períodos de retração). Embora não conclusivo, o seminário colocou luz no debate e trouxe a público interessante trabalho de Ricardo Martner, chefe da área fiscal da Cepal, e de sua assistente, Varinia Tramben. "Opções para enfrentar o viés antiinversão pública" faz um apanhado das experiências no setor, incluindo a da Grã-Bretanha, e alinha algumas das propostas em discussão nessa área. Fazem uma crítica aos bancos multilaterais de desenvolvimento, que têm reduzido empréstimos a projetos de infra-estrutura. O BID, destacam, desembolsou, em 2000, 60% dos recursos aprovados em seu orçamento para projetos de investimento na região, mas aquela fatia caiu ainda mais, chegando a 30% em 2003.