Título: Instituições, ideologia e interesses na política externa de Dilma
Autor: Pio, Carlos
Fonte: Correio Braziliense, 09/01/2011, Opinião, p. 19

Professor de economia política internacional da Universidade de Brasília (carlospio.wordpress.com) Posse de presidente é momento de festa e confusão. Quando passar a desarrumação inicial, o que fará o governo Dilma no campo da política externa brasileira (PEB), justamente quando o país parece ter chegado ao ponto máximo de sua projeção internacional?

A definição das prioridades do governo ¿ e das estratégias e táticas preferidas para enfrentá-las ¿ dependerá das ideias da presidente e de seus principais assessores. Além disso, a nova PEB também será produto de embates entre o Itamaraty e demais ministérios, de pressões políticas e da influência de organizações da sociedade organizada ¿ sindicatos, empresariado e associações civis. Por fim, as instituições (regras, cultura e tradição) imprimem uma força inercial às ações dos governos, cristalizada em regras escritas, nas rotinas e nos valores viciados dos órgãos públicos e na tradição (a tendência a resolver novos problemas com soluções do passado). Sem aferir ao menos esses três elementos, qualquer análise prospectiva da PEB sob Dilma será superficial ou ingênua.

A Constituição reserva primordialmente ao Executivo a elaboração e a condução da PEB. Por isso o Itamaraty assume um papel quase monopolista na sua condução, o que é facilitado por uma estrutura interna mais hierarquizada que a dos demais ministérios. A rigidez institucional promove a continuidade de determinadas ideias (muitas meramente retóricas), que são repetidas às vezes em clara contradição com ações concretas da nossa diplomacia. Exemplo é a defesa simultânea do desarmamento entre os povos e da exportação de armas altamente letais, como as bombas cluster fabricadas aqui. Além disso, tais princípios pouco servem a uma potência regional que quer participar de negociações para equacionar os graves conflitos mundiais. É o caso da defesa retórica da não intervenção, dos direitos humanos e da paz mundial. Todos são objetivos louváveis, obviamente, mas impossíveis de realizar plenamente quando se considera que existem governos que agridem vizinhos e outros que atentam contra os próprios cidadãos. Diante de casos assim, o apelo a bandeiras como a resolução não violenta de conflitos é estratégia de avestruz.

Desde 2003 estruturou-se na Presidência um outro polo de formulação da PEB, o qual rejeita alguns desses princípios tradicionais. A presidente Dilma optou por reproduzir esse formato e reconduziu ao posto aquele que tem representado a opinião da esquerda do PT sobre temas internacionais. Isso é o que explica, por exemplo, nosso envolvimento em Honduras, ano passado.

Assim, a parte mais significativa das diretrizes da PEB será ditada pelo o que pensam a presidente, seu assessor internacional e o ministro das Relações Exteriores. Outros ministérios também tentarão influenciá-la, especialmente em temas específicos. As negociações climáticas, por exemplo, envolvem necessariamente Ciência & Tecnologia e Meio Ambiente. Por fim, e ainda no plano das ideias, verifica-se crescente engajamento de organizações da sociedade mobilizadas em torno de temas. Uma vez mais, o caso do clima é exemplar: associações empresariais e redes de cientistas tentam influenciar as diretrizes da PEB que orientarão os negociadores brasileiros.

Minha expectativa é que o Itamaraty siga perdendo poder progressivamente na formulação da PEB e na representação dos interesses nacionais. Com vista a legitimar os fundamentos da PEB, ele precisará ampliar cada vez mais a participação de outros órgãos da administração e de atores não governamentais no processo decisório e dividir com outros atores a representação da complexa teia de interesses dos brasileiros.

Há ainda que se levar em conta os grupos econômicos que desejam uma PEB capaz de livrar-lhes de eventuais ameaças externas. Empresas costumam defender seu controle do mercado doméstico, em detrimento dos consumidores. Poucas pressionam para ampliar o acesso a mercados estrangeiros e praticamente nenhuma pela abertura da economia às importações. Esse quadro de referência encaixa-se muito bem às preferências ideológicas de Dilma e da aliança PT-PMDB e reforça minha expectativa de que nossa economia continuará pouco engajada às dinâmicas virtuosas da globalização. Tudo indica que seguiremos muito protegidos e pouco competitivos quando comparados à Índia e à China, aos tigres asiáticos, ao México e ao Chile (e, crescentemente, ao Peru e à Colômbia). Um governo sem convicção liberal e que não sofre pressão modernizante da sociedade não adotará as reformas necessárias para crescermos de forma mais sustentável e integrada à economia global. Essa tem sido a tônica nos últimos 10 anos e deve continuar nos próximos quatro.

Se é correto supor que continuarão a existir conflitos entre órgãos governamentais, empresas e sociedade civil em torno da definição das prioridades da PEB, é evidente que caberá à presidente arbitrar as disputas. E ela o fará considerando tanto fatores objetivos quanto subjetivos. A tensão entre tradição, pragmatismo e partidarismo tenderá a permanecer no núcleo de formulação da PEB, reduzindo sua consistência temporal, temática e geográfica. Mesmo assim, é provável que se mantenham (i) as opções pela integração com os países menos dinâmicos e menos democráticos da América do Sul; (ii) a tentativa de viabilizar alianças com China, Índia, Rússia e África do Sul (Bric, Ibas) para servir de contrapeso à hegemonia dos Estados Unidos; e (iii) a ideia de solidariedade com países pobres que tem nos aproximado de ditaduras africanas e mantido nosso eterno silêncio em relação a Cuba. Alterações importantes à vista parecem ser o positivo distanciamento do Irã e o arrefecimento do (des)propósito de obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.