Título: A propósito do programa de etanol
Autor: Averbug, Por Marcello
Fonte: Valor Econômico, 23/08/2007, Opinião, p. A14

O Brasil e Estados Unidos apostaram alto no etanol. Cada um à sua maneira. Os americanos recorrendo ao milho e nós à cana-de-açúcar. Em ambos os países verifica-se quase unanimidade no louvor a essa alternativa à gasolina. No entanto, sem querer bancar o desmancha prazeres, estou convicto de que a política de diminuição da dependência ao petróleo, na área específica de transporte de passageiros, vem se processando através de uma visão incompleta e conservadora.

Incompleta porque Brasil e Estados Unidos atuam fundamentalmente no lado da oferta de combustível. O correto seria focalizar também o lado da demanda com intensidade superior à atual. Em outras palavras: ampliar investimentos destinados a alterar o modelo prevalecente de transporte urbano, priorizando o sistema coletivo.

Tais investimentos não necessitariam ser, a curto prazo, de tipo ultradispendioso, como o metrô. Apesar de a opção ferroviária ser a ideal, a reestruturação dos serviços de ônibus já constituiria um avanço. Afinal, cada ônibus substitui uns trinta automóveis, desde que seja confortável, seguro e, óbvio, movido por fonte limpa de energia. Onde e quando for possível implementar projetos de metrô e trem suburbano, melhor ainda.

O traço conservador da política vigente provém do fato de manter intacto o modelo baseado no carro individual. Não proponho uma declaração de guerra à indústria automobilística, mas sim mudanças na maneira de usufruir do automóvel, buscando diminuir o número de viagens casa-trabalho-casa. O que seria viabilizado pela maior disponibilidade de transporte coletivo decente.

Embora o entusiasmo despertado pelo etanol se justifique por vários motivos, o aspecto relacionado com as vantagens ecológicas exige melhor avaliação da comunidade internacional, dada a controvérsia ainda persistente nesse campo. De início, convém lembrar que o etanol não é um combustível limpo, por mais que seu efeito poluente seja inferior ao da gasolina.

De acordo com algumas fontes de informação, o que torna o etanol brasileiro vantajoso é seu balanço ecológico neutro em termos da atmosfera global. Isto é: o carbono absorvido da atmosfera pela planta de cana-de-açúcar compensa o dióxido de carbono liberado durante a queima do etanol nos motores dos veículos. Porém, outras fontes apresentam versão diferente. Argumentam que o próprio saldo ambiental do cultivo da cana-de-açúcar é insatisfatório, pois gera resíduos tóxicos que poluem rios e degradam o solo, além de induzir a desmatamentos e queimadas.

-------------------------------------------------------------------------------- No aspecto social, a dúvida é se as condições de trabalho nos canaviais melhorarão com o choque de crescimento do setor --------------------------------------------------------------------------------

Sem a pretensão de destrinchar essa controvérsia, ressalto que, mesmo na hipótese de o balanço ecológico do etanol ser equilibrado, os seguintes fatos deveriam ser considerados: a) a planta que absorve carbono encontra-se nas zonas rurais, distantes dos centros urbanos onde os motores a etanol liberam CO2, isto é, o ar reinante nas cidades pouco se beneficia da limpeza propiciada pela plantação; b) qualquer cultivo agrícola possui o dom de absorver carbono, não apenas o da cana-de-açúcar; c) se, junto com o etanol, fosse ampliada a utilização de outras fontes de energia ainda mais limpas, o balanço ambiental seria positivo e não apenas equilibrado. No solo menos ocupado pela cana-de açúcar, outras plantas estariam absorvendo carbono, enquanto os veículos contaminariam menos a atmosfera.

No momento atual, uma das poucas manifestações promissoras de mudança na demanda de combustível poluente, nos Estados Unidos, é o sucesso comercial dos chamados carros híbridos. Esses veículos funcionam mediante combinação de dois pequenos motores para produzir a força de um grande: um motor elétrico, carregado automaticamente, e o outro, a gasolina. Cada um deles é acionado em ocasiões diferentes, dependendo do modelo. Os resultados em termos de economia de gasolina são nítidos. Em média, os híbridos consomem um litro de gasolina por 21 quilômetros percorridos. Esses índices de consumo melhorarão ao longo do tempo como resultado de pesquisas.

Toyota e Honda são os que mais avançaram na fabricação de híbridos, induzindo General Motors, Ford e Chrysler a também ingressarem nesse mercado. A difusão internacional desse tipo de veículo, associada a investimentos em transporte coletivo, configuraria um processo revolucionário na demanda por combustível. No Brasil, poderia-se pensar no motor híbrido utilizando etanol.

Encarando o etanol não apenas sob o ponto de vista de alternativa ao petróleo, mas também como parte de um esforço para acelerar a recuperação ambiental e melhorar a qualidade de vida urbana, percebemos o quanto as políticas executadas pelos governos brasileiro e americano necessitam reformulação urgente. O presidente Bush adotou a meta de reduzir o uso de gasolina em 20% nos próximos 10 anos através, sobretudo, do etanol, para cuja produção é concedido elevado subsídio. Mas seu alvo principal é a redução da dependência ao petróleo importado, e não a solução dos outros gêneros de estragos resultantes do apego a esse combustível fóssil.

Atenção insuficiente vem sendo dada, no Brasil, a duas questões atadas ao etanol: o impacto sobre a produção de alimentos e o contexto social no cultivo da cana-de-açúcar. O dilema alimento versus biocombustível acabará encontrando resposta na evolução tecnológica, mas seria prudente condicionar a expansão do etanol à coexistência pacífica com o mercado de alimentos. Em relação ao aspecto social, a grande dúvida é se o choque de crescimento do setor contribuirá para melhorar as condições de trabalho nos canaviais.

É compreensível a impetuosidade com que Brasil e EUA se apegaram ao etanol, dada a ainda limitada oferta de alternativas ao petróleo, mas a escassez de medidas destinadas a racionalizar o uso do automóvel e ampliar o transporte coletivo gera danos que comprometem os benefícios provenientes da busca de alternativas ao petróleo.

Marcello Averbug, ex-economista do BNDES e BID, é consultor em Washington.